Sábado, 26 de fevereiro de 2011
Por Ivan de Carvalho

Pior
do que a esqualidez biafriana do reajuste proposto pelo governo Dilma Rousseff
e concedido pelo Congresso Nacional é, certamente, o artigo do projeto enviado
pelo Executivo que estabelece que nos próximos anos – até 2014, quando termina
o atual mandato da presidente Dilma Rousseff – o valor do salário mínimo será
fixado anualmente, não mais por lei, mas por simples decretos assinados pela
presidente.
Inaugura-se,
assim, ao que parece, uma nova figura jurídica no direito público brasileiro.
Já tínhamos a Medida Provisória, um estranho invento, que vem perturbando
seriamente o já complicadíssimo sistema jurídico nacional. Antes da Medida
Provisória, fora inventada a Lei Delegada, instituto pelo qual o Legislativo,
talvez com preguiça de cumprir seus deveres, delega ao Executivo poder para
legislar sobre um determinado assunto.
Há
diferença talvez importante entre Medida Provisória e Lei Delegada. Na
primeira, o Executivo edita a MP, que passa a ter vigência imediata, mesmo
enquanto tramita no Legislativo, onde precisa ser discutida e votada. Caso seja
rejeitada, podem ser criados sérios problemas de direito e materiais, uma vez
que o que estava valendo e sendo executado deixa de valer e, evidentemente, em
um grande número de casos, não se pode desfazer o que foi executado. Por isto,
entre outros motivos, a Medida Provisória é um aleijão jurídico, usado à larga
pelo Executivo federal.
Quanto
à Lei Delegada, o processo é, talvez possamos dizer assim, inverso. Primeiro, o
Legislativo abre mão de sua atribuição fundamental, atribuindo ao Executivo
legislar em nome dele. Então o Executivo legisla (faz uma reforma
administrativa, por exemplo) e o que estabeleceu não é submetido ao crivo do
Poder Legislativo, que lá no início do processo assinou um cheque em branco. A Lei Delegada, embora
já haja sido uma tradição brasileira, depois superada pela Medida Provisória, também
é um aleijão jurídico.
Os
dois aleijões trabalham a favor da hipertrofia do Poder Executivo em detrimento
do Poder Legislativo. E no caso da Medida Provisória, em que pesem os
protestos, vem sendo usada em profusão e com conteúdos que extrapolam
claramente seus limites constitucionais, tornando-se assim instrumento de
usurpação de poder do Legislativo pelo Executivo. Infelizmente, o Congresso
Nacional, até hoje, não teve a coragem de acabar com essa safadeza autoritária
praticada contra ele com sua cumplicidade e graças a ela.
Agora,
inventou o Executivo e o Congresso submeteu-se à fixação do valor do salário
mínimo anualmente por decreto, embora na Constituição esteja expresso que tal
valor será, anualmente, “fixado em lei”. Como diria o genial José Genoíno,
ex-presidente nacional do PT, “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra
coisa”. Lei é lei e decreto é decreto. Mas já foi dado a conhecer (que
celeridade!) um parecer da Advocacia Geral da União assegurando que, no caso,
tanto faz, porque em lei o Congresso já fixou os critérios para fixação do
valor e então aos decretos do Executivo sobre apenas decretar o resultado dos
cálculos.
Ora,
claro, não é bem assim. Pois, politicamente, o tema é furtado ao debate e
votação anual do Congresso, o que só pode beneficiar o governo, nunca a
oposição ou os assalariados. E, juridicamente, retira-se do Congresso a
possibilidade de, a cada ano, ter a oportunidade legislativa de, querendo,
modificar os critérios atualmente estabelecidos, o que mudaria, naturalmente, o
resultado dos cálculos e, portanto, o reajuste do salário mínimo.
Mais
um aleijão. Se o STF, que a isso será chamado, não o excluir.
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Este artigo foi publicado
originalmente na Tribuna da Bahia deste sábado.
Ivan de Carvalho é jornalista
baiano.