Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

O fim de Mubarak

Sábado, 12 de fevereiro de 2011 
Por Ivan de Carvalho
    Escrevendo numa sexta-feira sob a influência de um resto de gripe e para um leitor que só hoje, um sábado, dia de flanar, poderá ser alcançado, tentarei pegar leve pela segunda vez esta semana (na primeira vez, foi só por conta da gripe, então forte). Mas está aí a renúncia de Hosni Mubarak. E há que tratar disto.

    Quando eu era criança, vivia na cidade de Itiúba, na região do Sisal, nordeste baiano. As alternativas rotineiras de lazer noturno para a população da pequena cidade eram mínimas. O Cine Itiúba, de Humberto Pinto de Carvalho, exibia filmes duas noites por semana. O salão da Rádio Cultural de Itiúba, onde jovens podiam dançar todas as noites. O Bar Central, de Carlos Pires, e o Bar de Zé Dantas, para os biriteiros e os jogadores de sinuca ou bilhar. A parada de cinco a dez minutos do trem de passageiros da Ferrovia Federal Leste Brasileiro, quatro noites por semana. O namoro besta pelas beiradas da Avenida Getúlio Vargas, depois Lomanto Júnior e ainda mais tarde, Getúlio Vargas outra vez. E os namoros furtivos que só Deus e o Diabo e alguns privilegiados (não eu, que droga) sabiam onde aconteciam.

    Assim, a chegada de um circo na cidade era uma festa. E certa vez armou-se na Praça Nova (que não existe mais, porque a prefeitura deu ao Banco do Brasil, que a ocupou com uma agência e casas para seus funcionários) o Circo de Pedro Coruja. Isso foi tempos antes do Circo Molambo, que não vem ao caso.
A principal atração do Circo de Pedro Coruja era Maria Pureza, uma dançarina de rumba. Mas ela não vem ao caso também. Só entrou nessas linhas porque dançava de biquíni, naqueles tempos, no interior brabo, um espanto e um arraso, muitas madames furiosas, falando mal pelos cantos, mas sem dar bandeira para os maridos, assíduos freqüentadores do circo.

   A segunda maior atração do Circo de Pedro Coruja era uma peça teatral. Ou circense, sei lá. Uma pessoa morrera. Mulher, se lembro. Seu fantasma passava lépido, envolto em lençol branco como compete a fantasmas, em frente ao fundo negro do cenário. O mistério era se a morte teria sido natural ou um homicídio. Na peça, questionava-se do começo ao fim se ocorrera “morte matada” ou “morte morrida”. Não recordo a alternativa vencedora.

   Mas, e Mubarak? Na quinta-feira, quando eram imensas as pressões para que renunciasse, quando o comando militar reuniu-se pela primeira vez sem sua presença – ele era o comandante-em-chefe das Forças Armadas – ele foi à TV no fim da noite (o que mostra a dificuldade de sua decisão) e, imitando Dom Pedro I, disse ao povo que ficaria. Implicitamente, anunciou que morreria, mas de “morte morrida”. Em setembro, como prevê a Constituição, o país elegeria outro presidente. Mubarak não se candidataria (seu filho também não) e passaria o cargo ao sucessor eleito. Mas desde logo transferiria poderes ao vice-presidente, Omar Suleiman. Talvez pensasse em ficar na presidência quase que só como uma figura decorativa, para dar uma impressão de preservação do Estado e da ordem.

   No entanto, a força das manifestações populares de rejeição, a pressão internacional, a preocupação dos militares em não se indisporem com a população, a pressão final dos Estados Unidos (não querem as coisas fora de controle) junto aos militares egípcios por intermédio do Pentágono, tudo isso levou Mubarak a capitular. Levou-o ontem, horas depois do discurso da véspera, à renúncia, à “morte matada”.

   Ante o que ocorre no Egito, impõe-se outro dilema: nascerá a democracia no país dos faraós ou morrerá a paz no Oriente Médio – e, sabe Deus, no mundo? Os próximos anos, nos 22 países árabes e nos 57 muçulmanos, deverão dar a resposta.
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia deste sábado.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.