Leia também: 180 dias em Bangu (Primeira Parte)
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IGOR MENDES -
Rio, 04 de Junho de 2015- 183 dias de detenção:
Rio, 04 de Junho de 2015- 183 dias de detenção:
[Para
Tribuna da Imprensa online]
[Para
campanha dos presos políticos em geral]
As idas em vindas do Fórum são das lembranças mais duras da experiência da prisão até aqui. Como eu estava, durante todo o período das audiências, sem visitas dos meus familiares (a carteira de visitação do meu pai só ficou pronta passados cem dias da minha detenção), vê-los, bem como às companheiras e aos companheiros, era um grande alento, mas mesmo assim contraditório: podia olhá-los, trocar alguns acenos, mas sem jamais manter qualquer contato físico, de modo que tinha constantemente a sensação, esquisita, de estar num aquário. Além disso, todo aquele ambiente limpíssimo, organizadíssimo, de pessoas “respeitáveis” e bem vestidas contrastava tanto com nossa condição dos detentos, com o tratamento hostil recebido no traslado do presídio até o Fórum, com a miséria de tudo que cerca o sistema penitenciário, que esse contraste revoltava, e revoltava a ponto de doer.
As idas em vindas do Fórum são das lembranças mais duras da experiência da prisão até aqui. Como eu estava, durante todo o período das audiências, sem visitas dos meus familiares (a carteira de visitação do meu pai só ficou pronta passados cem dias da minha detenção), vê-los, bem como às companheiras e aos companheiros, era um grande alento, mas mesmo assim contraditório: podia olhá-los, trocar alguns acenos, mas sem jamais manter qualquer contato físico, de modo que tinha constantemente a sensação, esquisita, de estar num aquário. Além disso, todo aquele ambiente limpíssimo, organizadíssimo, de pessoas “respeitáveis” e bem vestidas contrastava tanto com nossa condição dos detentos, com o tratamento hostil recebido no traslado do presídio até o Fórum, com a miséria de tudo que cerca o sistema penitenciário, que esse contraste revoltava, e revoltava a ponto de doer.
Para que todos entendam: mais de uma vez cheguei ao Fórum em
péssimo estado, e numa especificamente quase desmaiado. Nessa oportunidade,
Fábio e Caio estavam comigo (literalmente: estávamos algemados uns nos outros).
Entramos na viatura, ainda em Bangu, por volta das 10:00h e “viajamos” em pé,
porque ela já estava lotada. Era um dia típico de janeiro, com o verão carioca
no auge, daqueles em que a sensação térmica aproxima-se dos 50ºC. O caminhão,
blindado, é como um cofre: não há luz, apenas alguns pequenos buracos nas
chapas de ferro dos quais pode-se adivinhar alguns trechos das ruas. Há um
sistema de ventilação, no teto, mas nesse dia escaldante, propositalmente, ele
foi mantido desligado. Para piorar, ainda ficamos parados um tempão- é normal o
veículo ir parando de presídio em presídio, e não é raro os guardas pararem pra
almoçar. Alguns gritaram, mas nada aconteceu, e de resto a vida na prisão nos
ensina que as coisas sempre podem piorar (vi, em mais de uma ocasião, presos
levarem socos no rosto por terem supostamente encarado um agente, ou serem
algemados até o talo, com as mãos para trás, pela mesma razão). Chegamos ao
Fórum às 13:00h, com a camisa molhada como se acabássemos de dar um mergulho no
mar, e depois ficamos tremendo de frio com o ar-condicionado potente do
Tribunal...
No Fórum, especificamente, verdade seja dita, os policiais
geralmente nos trataram com correção. No princípio preocupavam-se muito com o
nosso ato de erguer os punhos, algumas vezes chegamos a entrar no recinto das
audiências tendo as mãos, além de algemadas, seguradas com força, mas depois de
um tempo simplesmente desistiram- e, o que não deixa de ser significativo, tendo
assistido praticamente todas as audiências, muitos se convenceram da injustiça
contra nós cometida, e com alguns cheguei a conversar sobre política. Essa
atitude não se resume a eles: acredito que todos aqueles que, por razões de
trabalho, acompanhavam o processo e se convenceram, no mínimo, que não éramos
de forma alguma o perigoso bando antissocial pintado por nossos acusadores. Era
perceptível como, semana após semana, sua indiferença se transformava em
olhares preocupados, e depois numa sincera solidariedade. Essa será sempre,
para mim, uma lembrança indelével a respeito do nosso processo, mais valiosa do
que qualquer sentença fria, permeada por termos técnicos- que nada têm de
imparciais, aliás.
*
Acreditem, também é possível sorrir.
Na verdade, apesar da monotonia aparente, a prisão não é um
deserto de emoções. Ao contrário, tendo tão pouco com o que preencher nosso
cotidiano, nossa energia tende a voltar-se para pensamentos e sensações mais
íntimos, que se revestem de uma intensidade difícil de conceber quando se está
na correria: às vezes cega do dia-a-dia aí fora. A nossa humanidade, acho, fica
mais aguçada, nem que seja pelo contraste com toda a desumanidade e indiferença
que cercam esse lugar. Karl Marx coloca isso em termos científicos, em algum
ponto da sua obra: a filosofia desabrocha normalmente em períodos de declínio,
e não de florescimento, das forças materiais de uma dada sociedade.
Voltando. Lembro de um preso apelidado de “Grilo”, que vivia
me pedindo folhas de papel (para vendê-las como envelope para cartas), o qual
insistia em falar “quentina” em de “cantina”. Mais de uma vez vi alguém
tentando explicar-lhe a pronúncia correta, ao que ele respondia com um olhar
curioso, e seguia em frente como sempre. Acredito que, na sua opinião, ele estava
certo e todos aqueles intrometidos estavam errados... Quando, no campeonato
carioca, o meu amado Botafogo enfrentou o Flamengo, fui colocado diante de uma
situação delicada: só havia eu e mais um botafoguense na galeria inteira-
contra uma legião de rubro- negros. Perder seria fatal, afinal, eu seria a
única vítima da sua alegria implacável, sobretudo após uma semana com
provocações de parte a parte. Acontece que, claro, nós ganhamos! E eu, tido
como pessoa extremamente calma, fiz como todos, nessa situação: fui para a
porta da cela, balancei a grade e gritei feito um louco. Acho que, pelas
expressões dos meus “rivais”, um tanto surpresas, além de contrariadas, eles
reviram um pouco seu conceito a meu respeito... Há outra história, hilária,
desta vez com um guarda. Meus advogados trouxera-me de presente o célebre livro
“Guerra e Paz”, do escritor Russo Liev Tolstói. Antes de entregar-me o volume,
o agente me perguntou com a maior seriedade:
- De que trata o livro?
- Trata da invasão de Napoleão à Rússia, em 1812, respondi.
- Napoleão?, inquiriu o Sr. Fulano, exatamente como alguém
que se lembra de um conhecido não visto há muito tempo.
- É, Napoleão, repliquei sem maior entusiasmo.
- Napoleão, um sujeito bom!
Fiquem em silêncio, espantado pela resposta entusiasmada, e
apesar da curiosidade para descobrir o que inspirava, no carcereiro de Bangu,
tanta admiração pelo Imperador francês, preferi não prolongar a conversa- eu só
queria o meu livro. Como eu nada disse, prosseguiu o guarda, com entusiasmo ainda
maior:
- Soube que ele não quis invadir Israel...
Puxa! Por essa eu não esperava. Não deixa de ser uma
justificativa espirituosa. Das duas, uma: ou supõe ele ter sido Napoleão algum
personagem bíblico do Velho Testamento, ou então o transportou, magicamente,
para o século XX, afinal, nós sabemos, o Estado de Israel foi criado pela ONU
em 1948...
*
Cecília Meireles fala, em algum poema, que a liberdade é algo
que ninguém consegue definir, mas ao mesmo tempo não há ninguém que não entenda
(esse é o sentido, claro que a frase é mais bonita, mas não me lembro dela
literalmente). Engels fala que é atuar com conhecimento de causa, em linguagem
filosófica, é a “compreensão da necessidade”. Mao, complementando-o, numa
anotação sua filosófica pouco conhecida, diz que a liberdade é não apenas a
compreensão, mas a transformação da necessidade- retoma, assim, com outros
termos, o próprio Marx, para quem não basta interpretar o mundo, há que
transformá-lo.
Ela, em todo caso, pode ser cerceada, sequestrada,
vilipendiada, mas não aniquilada: se temos convicção do que estamos fazendo, se
acreditamos que o preço pago por isso é uma contingência inevitável (e
temporária) para atingir objetivos que nos parecem cada vez mais justo, se
conservamos a capacidade de nos indignar com as péssimas condições de vida a
que está submetido nosso povo, e se enxergarmos a necessidade de lutar contra
essas condições, ao invés de ficar com os braços cruzados, isso significa que,
apesar de tudo, continuamos livres. Mais
livres, certamente, que os que fingem não ver que nossa sociedade “moderna”
converte-se, ela própria, numa grande prisão. Para os pobres, para os
desempregados, para as mulheres trabalhadoras, para os camponeses, para os
povos indígenas, e até para uma “classe média” contaminada pela futilidade e
consumismo desenfreados, que sua renda é cada vez mais incapaz de manter. Uma
prisão para os palestinos, cujo território foi convertido num imenso campo de
concentração; para os imigrantes africanos, que morrem em barcos à caminho da
Europa, que teve na pilhagem daquele continente talvez a fonte principal da sua
“civilização”, para os latino-americanos que perecem tentando atravessar o
deserto para chegar aos Estados Unidos. São só alguns
exemplos. Muitos livros já foram escritos a respeito desses e de muitos outros.
Sei que alguns querem a nossa condenação para amedrontar a
juventude que retoma crescentemente o engajamento político; outros buscam, com
esta, satisfazer os interesses de uma minoria corrupta, que não admite qualquer
contestação aos seus privilégios. É possível que sejam alguns, nesse meio, além
de arrivistas, fascistas convictos. Foi-me perguntado, em juízo, se eu era a
favor do “Estado de direito” ou de uma revolução, pergunta que ignora,
naturalmente, que o próprio Estado de direito- que, de resto, é uma ficção para
a maioria da população, privada do acesso aos direitos mais elementares- foi
fruto de uma série de revoluções.
Todos os dias é difícil acordar olhando para as grades,
sabendo haver longas horas pela frente. Mas, depois, sempre que me recordo pelo
quê, e, sobretudo, por quem e com quem estamos lutando, as forças
se renovam. É verdade que tudo passa nessa vida, mas essa afirmação já implica
que uma coisa permanece: a mudança de todas as coisas. Essa nunca passará.
*
Para
Karlayne e Elisa, onde estiverem, força e um grande abraço.
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