Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 11 de junho de 2015

180 dias em Bangu. Parte II

Quinta, 11 de junho de 2015
Leia também:  180 dias em Bangu (Primeira Parte)
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IGOR MENDES -
Rio, 04 de Junho de 2015- 183 dias de detenção:
[Para Tribuna da Imprensa online]
[Para campanha dos presos políticos em geral]


As idas em vindas do Fórum são das lembranças mais duras da experiência da prisão até aqui. Como eu estava, durante todo o período das audiências, sem visitas dos meus familiares (a carteira de visitação do meu pai só ficou pronta passados cem dias da minha detenção), vê-los, bem como às companheiras e aos companheiros, era um grande alento, mas mesmo assim contraditório: podia olhá-los, trocar alguns acenos, mas sem jamais manter qualquer contato físico, de modo que tinha constantemente a sensação, esquisita, de estar num aquário. Além disso, todo aquele ambiente limpíssimo, organizadíssimo, de pessoas “respeitáveis” e bem vestidas contrastava tanto com nossa condição dos detentos, com o tratamento hostil recebido no traslado do presídio até o Fórum, com a miséria de tudo que cerca o sistema penitenciário, que esse contraste revoltava, e revoltava a ponto de doer.
Para que todos entendam: mais de uma vez cheguei ao Fórum em péssimo estado, e numa especificamente quase desmaiado. Nessa oportunidade, Fábio e Caio estavam comigo (literalmente: estávamos algemados uns nos outros). Entramos na viatura, ainda em Bangu, por volta das 10:00h e “viajamos” em pé, porque ela já estava lotada. Era um dia típico de janeiro, com o verão carioca no auge, daqueles em que a sensação térmica aproxima-se dos 50ºC. O caminhão, blindado, é como um cofre: não há luz, apenas alguns pequenos buracos nas chapas de ferro dos quais pode-se adivinhar alguns trechos das ruas. Há um sistema de ventilação, no teto, mas nesse dia escaldante, propositalmente, ele foi mantido desligado. Para piorar, ainda ficamos parados um tempão- é normal o veículo ir parando de presídio em presídio, e não é raro os guardas pararem pra almoçar. Alguns gritaram, mas nada aconteceu, e de resto a vida na prisão nos ensina que as coisas sempre podem piorar (vi, em mais de uma ocasião, presos levarem socos no rosto por terem supostamente encarado um agente, ou serem algemados até o talo, com as mãos para trás, pela mesma razão). Chegamos ao Fórum às 13:00h, com a camisa molhada como se acabássemos de dar um mergulho no mar, e depois ficamos tremendo de frio com o ar-condicionado potente do Tribunal...
No Fórum, especificamente, verdade seja dita, os policiais geralmente nos trataram com correção. No princípio preocupavam-se muito com o nosso ato de erguer os punhos, algumas vezes chegamos a entrar no recinto das audiências tendo as mãos, além de algemadas, seguradas com força, mas depois de um tempo simplesmente desistiram- e, o que não deixa de ser significativo, tendo assistido praticamente todas as audiências, muitos se convenceram da injustiça contra nós cometida, e com alguns cheguei a conversar sobre política. Essa atitude não se resume a eles: acredito que todos aqueles que, por razões de trabalho, acompanhavam o processo e se convenceram, no mínimo, que não éramos de forma alguma o perigoso bando antissocial pintado por nossos acusadores. Era perceptível como, semana após semana, sua indiferença se transformava em olhares preocupados, e depois numa sincera solidariedade. Essa será sempre, para mim, uma lembrança indelével a respeito do nosso processo, mais valiosa do que qualquer sentença fria, permeada por termos técnicos- que nada têm de imparciais, aliás.
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Acreditem, também é possível sorrir.
Na verdade, apesar da monotonia aparente, a prisão não é um deserto de emoções. Ao contrário, tendo tão pouco com o que preencher nosso cotidiano, nossa energia tende a voltar-se para pensamentos e sensações mais íntimos, que se revestem de uma intensidade difícil de conceber quando se está na correria: às vezes cega do dia-a-dia aí fora. A nossa humanidade, acho, fica mais aguçada, nem que seja pelo contraste com toda a desumanidade e indiferença que cercam esse lugar. Karl Marx coloca isso em termos científicos, em algum ponto da sua obra: a filosofia desabrocha normalmente em períodos de declínio, e não de florescimento, das forças materiais de uma dada sociedade.
Voltando. Lembro de um preso apelidado de “Grilo”, que vivia me pedindo folhas de papel (para vendê-las como envelope para cartas), o qual insistia em falar “quentina” em de “cantina”. Mais de uma vez vi alguém tentando explicar-lhe a pronúncia correta, ao que ele respondia com um olhar curioso, e seguia em frente como sempre. Acredito que, na sua opinião, ele estava certo e todos aqueles intrometidos estavam errados... Quando, no campeonato carioca, o meu amado Botafogo enfrentou o Flamengo, fui colocado diante de uma situação delicada: só havia eu e mais um botafoguense na galeria inteira- contra uma legião de rubro- negros. Perder seria fatal, afinal, eu seria a única vítima da sua alegria implacável, sobretudo após uma semana com provocações de parte a parte. Acontece que, claro, nós ganhamos! E eu, tido como pessoa extremamente calma, fiz como todos, nessa situação: fui para a porta da cela, balancei a grade e gritei feito um louco. Acho que, pelas expressões dos meus “rivais”, um tanto surpresas, além de contrariadas, eles reviram um pouco seu conceito a meu respeito... Há outra história, hilária, desta vez com um guarda. Meus advogados trouxera-me de presente o célebre livro “Guerra e Paz”, do escritor Russo Liev Tolstói. Antes de entregar-me o volume, o agente me perguntou com a maior seriedade:
- De que trata o livro?
- Trata da invasão de Napoleão à Rússia, em 1812, respondi.
- Napoleão?, inquiriu o Sr. Fulano, exatamente como alguém que se lembra de um conhecido não visto há muito tempo.
- É, Napoleão, repliquei sem maior entusiasmo.
- Napoleão, um sujeito bom!
Fiquem em silêncio, espantado pela resposta entusiasmada, e apesar da curiosidade para descobrir o que inspirava, no carcereiro de Bangu, tanta admiração pelo Imperador francês, preferi não prolongar a conversa- eu só queria o meu livro. Como eu nada disse, prosseguiu o guarda, com entusiasmo ainda maior:
- Soube que ele não quis invadir Israel...
Puxa! Por essa eu não esperava. Não deixa de ser uma justificativa espirituosa. Das duas, uma: ou supõe ele ter sido Napoleão algum personagem bíblico do Velho Testamento, ou então o transportou, magicamente, para o século XX, afinal, nós sabemos, o Estado de Israel foi criado pela ONU em 1948...
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Cecília Meireles fala, em algum poema, que a liberdade é algo que ninguém consegue definir, mas ao mesmo tempo não há ninguém que não entenda (esse é o sentido, claro que a frase é mais bonita, mas não me lembro dela literalmente). Engels fala que é atuar com conhecimento de causa, em linguagem filosófica, é a “compreensão da necessidade”. Mao, complementando-o, numa anotação sua filosófica pouco conhecida, diz que a liberdade é não apenas a compreensão, mas a transformação da necessidade- retoma, assim, com outros termos, o próprio Marx, para quem não basta interpretar o mundo, há que transformá-lo.
Ela, em todo caso, pode ser cerceada, sequestrada, vilipendiada, mas não aniquilada: se temos convicção do que estamos fazendo, se acreditamos que o preço pago por isso é uma contingência inevitável (e temporária) para atingir objetivos que nos parecem cada vez mais justo, se conservamos a capacidade de nos indignar com as péssimas condições de vida a que está submetido nosso povo, e se enxergarmos a necessidade de lutar contra essas condições, ao invés de ficar com os braços cruzados, isso significa que, apesar de tudo, continuamos livres.  Mais livres, certamente, que os que fingem não ver que nossa sociedade “moderna” converte-se, ela própria, numa grande prisão. Para os pobres, para os desempregados, para as mulheres trabalhadoras, para os camponeses, para os povos indígenas, e até para uma “classe média” contaminada pela futilidade e consumismo desenfreados, que sua renda é cada vez mais incapaz de manter. Uma prisão para os palestinos, cujo território foi convertido num imenso campo de concentração; para os imigrantes africanos, que morrem em barcos à caminho da Europa, que teve na pilhagem daquele continente talvez a fonte principal da sua “civilização”, para os latino-americanos que perecem tentando atravessar o deserto para chegar aos Estados Unidos. São só alguns exemplos. Muitos livros já foram escritos a respeito desses e de muitos outros.
Sei que alguns querem a nossa condenação para amedrontar a juventude que retoma crescentemente o engajamento político; outros buscam, com esta, satisfazer os interesses de uma minoria corrupta, que não admite qualquer contestação aos seus privilégios. É possível que sejam alguns, nesse meio, além de arrivistas, fascistas convictos. Foi-me perguntado, em juízo, se eu era a favor do “Estado de direito” ou de uma revolução, pergunta que ignora, naturalmente, que o próprio Estado de direito- que, de resto, é uma ficção para a maioria da população, privada do acesso aos direitos mais elementares- foi fruto de uma série de revoluções.
Todos os dias é difícil acordar olhando para as grades, sabendo haver longas horas pela frente. Mas, depois, sempre que me recordo pelo quê, e, sobretudo, por quem e com quem estamos lutando, as forças se renovam. É verdade que tudo passa nessa vida, mas essa afirmação já implica que uma coisa permanece: a mudança de todas as coisas. Essa nunca passará.
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Para Karlayne e Elisa, onde estiverem, força e um grande abraço.
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