Quarta, 12 de fevereiro de 2014
Da PúblicaAgência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
A repórter Laura Capriglione mostra o que a Fifa e o governo africano
varreram pra baixo do tapete durante a Copa da África do Sul
Durante a Copa do Mundo da África do Sul, o centro do Johannesburgo
era o lugar perfeito para não estar. Naquele junho de 2010, guias
turísticos faziam questão de advertir: “À noite, não vá!”
O normal ali é a polícia se retirar assim que o sol se põe e o
comércio baixa as portas. Sem lei, os quarteirões ficam, então,
entregues ao submundo do tráfico, a usuários em busca de droga, aos
loucos, aos sem-teto, aos refugiados de tantos países africanos.
Naquele mês, não. O que não faltava era polícia. Vai que um turista desavisado resolvesse dar um rolé pelas ruas…
Mobilização
do Exército para conter qualquer eventual tentativa
de manifestação durante a Copa. A foto foi tirada no dia da
abertura da Copa, a caminho do Soccer City.
(Foto: Laura Capriglione)
de manifestação durante a Copa. A foto foi tirada no dia da
abertura da Copa, a caminho do Soccer City.
(Foto: Laura Capriglione)
Como repórter cobrindo a Copa do Mundo, eu tinha sido convidada com
outros colegas pelo bispo da Igreja Metodista Sul-Africana, Paul Verryn,
a conhecer uma situação que julguei impossível de ver exposta aos olhos
da mídia de todo o mundo, em uma cidade-sede da Copa do Mundo.
Nem havíamos bem estacionado o carro, quando duas viaturas
aproximaram-se ansiosas. De dentro de uma delas, saiu o sargento Nzama
Ngobeni que foi logo advertindo: “Eu, se fosse você, não entraria aí.
Tudo pode acontecer em um lugar como esse”. Fomos.
Acompanhados por um assistente de Verryn, entramos na escuridão do
prédio, onde pelo menos 2.000 pessoas acotovelavam-se no chão, em um
frio de 0ºC. No lugar de colchões, papelão.
O cheiro azedo de urina e suor, misturado a alguns restos de comida,
criava uma atmosfera nauseante. Como faltasse espaço no chão, vários
homens tinham de dormir nas escadarias do prédio. Mas os degraus
estreitos não permitiam a acomodação na largura. O jeito era enrolar-se
no cobertor fino e, como uma múmia, tentar se equilibrar –a cabeça em
degraus mais altos, os pés nos mais baixos. Qualquer movimento em falso e
o corpo escorregava; às vezes atropelando outro albergado no lugar.
Cercados pela polícia, os sem-teto da Igreja Metodista eram os
últimos remanescentes da “faxina” promovida pelo governo de modo a
retirar da cidade-sede da Copa do Mundo, os milhares de sem-tetos que
vivem nas ruas de Johannesburgo, principalmente no centro. A maioria
deles foi desovada em subúrbios, como Brixton e Illovo. Os renitentes
2.000 que permaneceram na igreja, boa parte refugiados zimbabuanos,
moçambicanos e congoleses, não saíram por receio de perder em definitivo
o contato com seus parentes distantes _a igreja de Verryn é referência
internacional no acolhimento de refugiados.
Apesar dos gastos astronômicos com a construção dos estádios (R$ 5
bi), nenhum tostão foi endereçado pelo governo para os abrigados na
igreja sitiada pela polícia. Sem víveres, sem remédios, eles acabariam
“optando” por sair. Ressalte-se que também não havia, então, um só
albergue público na cidade.
Mas eles ficaram, graças aos convênios da igreja com ONGs, como os
Médicos Sem Fronteiras, que providenciaram também assistência médica e
psicológica (a Aids é epidêmica nessa parte da África e muitos
refugiados foram vítimas com suas famílias de massacres e perseguições).
Distância obscena
Apenas 13,5 km pela Oxford Road separam a igreja do bispo Verryn das
Torres Michelangelo, de Sandton City, um luxuriante templo de consumo.
Tão perto, tão longe. Como dizia o bispo Verryn, “a distância entre os
ricos e os pobres neste país é mesmo obscena”. Ele explicava: “Apenas 4%
tem 40% da riqueza da África do Sul; 60% vivem com menos de U$ 100 por
mês”.
Sandton é o lugar menos africano de Johannesburgo. O hotel-âncora do
lugar chama-se Michelangelo e parece apoteose de escola de samba, em seu
estilo florentino fake, com estátuas de anjos renascentistas, afrescos
no teto, colunatas e mármore falso. Quando se consegue ultrapassar as
lojas Gucci, Cartier ou Montblanc, ah!, aí se encontra uma estátua de 6
metros de altura retratando um Nelson Mandela risonho. Sim, Mandela ou o
Congresso Nacional Africano não metem mais medo nos brancos ricos da
África do Sul.
Excluído o centro da cidade em horário comercial, em Johannesburgo
não há pessoas andando nas calçadas. Aliás, quase nem calçadas há. Não
há faixas de pedestres, porque pedestres não há. Medo da violência
urbana. E de estupros. E das gangues de estupradores (o país é conhecido
como campeão mundial nessa modalidade de crime).
O resultado é que as pessoas só andam de carro –uns carrões, aliás. É
Volvo e Mercedes pra tudo quanto é lado. Os pobres andam de van –umas
vans podres, estilo (hiper)lotação. Quase não tem ônibus também –as
empresas providenciam o transporte de seus funcionários; pegam-nos de
manhã em casa e levam-nos de volta à noite. Quem não estiver empregado,
não sai do bairro. Simples. Não tem essa de mobilidade urbana.
Mas como assim? Não foi o Congresso Nacional Africano, o principal
movimento contra o regime racista do apartheid, depois transformado em
partido de esquerda, que ganhou as eleições de 1994? Não eram eles que
vinham governando o país fazia 16 anos então?
As coisas ficavam mais estranhas ainda quando se olhavam as casas. A
África do Sul é o sonho de consumo das empresas de segurança privada. Em
bairros lindos, como o que cerca a Universidade de Pretória, na cidade
que é o centro administrativo do país, onde treinou a seleção argentina,
tudo é arborizado, como se fossem os Jardins de São Paulo, e as sólidas
casas térreas espalhadas em terrenos amplos ostentam placas sinistras:
“Reação armada.” Como ilustração, uma arma apontando para você.
As placas são afixadas em cercas que mostram toda a criatividade dos
projetistas a serviço das empresas de segurança. Esqueça aquela cerca
caretíssima, feita de arame farpado, ou mesmo as concertinas (espirais
de aço com lâminas cortantes), já populares no Brasil. Johannesburgo tem
cerca com milhares de pontas em formato de estrelas, de tesouras, de
anzóis que se enfiam na pele do invasor (se o cara quiser escapar, só
arrancando um naco da própria carne). Deve ser um luxo, porque essas só
se vê em casas grandonas.
Mas, voltando às placas ameaçadoras, tem uma empresa de segurança que
se chama Piranha –assim mesmo, como em português. O pessoal que
trabalha lá diz que é uma mensagem para os bandidos: “Se você entrar
nestas águas, prepare-se para ser jantado vivo.”
Quem não vive nessas casas, mas não é pobre, opta pelos condomínios
fechados. Tem muitas alphavilles espalhadas pela cidade mesmo –e não só
nos subúrbios. Segurança é o negócio lá.
Foi nesse cenário de paranoia com a violência, as cidades perdendo a
característica de centros de convivência com o diferente, que a Fifa
deitou e rolou em 2010 e nos anos anteriores de preparação. Moradores
sem-teto da Cidade do Cabo foram removidos para uma favela improvisada
com contêineres de zinco, bem longe da vista dos aficionados por
futebol.
Cidade de latinha
A esse campo de concentração com 3.000 almas deram o nome de
Blikkiesdorp, que, em afrikkans (dialeto derivado do holandês,
desenvolvido pelos colonos brancos) significa “Cidade de Latinha”.
Exatos 30 km separam o bairro de contêineres do centro da Cidade do
Cabo, outra sede da Copa, uma espécie de Rio de Janeiro sul-africana.
Lá, em vez de Pão de Açúcar, a beleza natural local é a fabulosa
Montanha da Mesa, ou Table Mountain, que domina todo o cenário.
Na cidade maravilhosa africana construiu-se o estádio Green Point,
com capacidade para 55 mil torcedores, ao custo de US$ 600 milhões. Fica
quase vizinho ao refinado shopping Victoria & Albert, onde se
localiza o restaurante Green Dolphin, que à noite oferece jazz do bom,
ao vivo.
A Copa do Mundo foi a chance de a cidade se ver livre dos pobres
inconvenientes. Era para ser um abrigo provisório, enquanto se
construíssem habitações dignas. Mas os pobres seguem no mesmo local,
morrendo de frio no inverno e assando no verão.
Os banheiros são coletivos e grupos de mulheres denunciaram que eles
se transformaram em armadilhas usadas pelas gangues de estupradores. O
jeito foi derrubar as paredes de vários desses banheiros, para evitar as
tocaias. Ia-se ao banheiro a céu aberto, embrulhada em mil panos, mas
era melhor isso do que aquilo.
A África do Sul levou ao paroxismo o desperdício explícito com a
Copa. Porno-desperdício. Lá, o esporte mais bem equipado é o rúgbi, o
preferido da elite branca. Não por acaso, foi com o rúgbi que Nelson
Mandela, em 1995, na final da Copa do Mundo da modalidade, selou a idéia
de uma nação arco-íris, todas as cores, todas as etnias, todas as
classes vivendo em paz e liberdade. Essa história é o tema do filme
“Invictus” (2009), dirigido por Clint Eastwood.
Em Durban, esquina do mundo, onde conviveram Gandhi e o adolescente
Fernando Pessoa, se investiram U$ 350 milhões para construir o magnífico
estádio Moses Mabhida, com capacidade para 69.957 torcedores, bem ao
lado de um… estádio de rúgbi, o Kings Park Stadium, com capacidade para
55.000 espectadores.
Resultado: o estádio da Copa, hoje um verdadeiro elefante branco,
vale a visita apenas por causa do passeio em um trenzinho, o SkyCar,
preso ao arco que lhe sustenta a estrutura. “A vista da cidade é
magnífica!”, descrevem os usuários do site TripAdvisor. Podiam ter
construído apenas o arco!
Camelôs e artesãos proibidos de trabalhar
Ah!, mas sempre tem a possibilidade de os pobres se beneficiarem pelo
impulsionamento do comércio de rua ou do artesanato, dirão alguns.
Bem, além de cuidar para que nada e nem ninguém estragasse a
cenografia imaculada do show (o evento de 2010 na África do Sul foi
transmitido para 204 países por 245 canais diferentes), a Fifa impôs,
por exemplo, o monopólio de frases, como “África do Sul 2010”, ou “Copa
da África”, ou “Copa do Mundo”.
O futebol, na África do Sul, historicamente, é coisa de proletário
negro, trabalhador nas minas de ouro e diamantes. É por isso que um dos
adereços principais dos torcedores sul-africanos são os capacetes de
peão de obra, devidamente decorados com as cores dos times.
Chamados de marakapas, os capacetes são recortados e pintados.
Transformam-se em adereços de cabeça. Naturalmente, fizeram-se capacetes
com cata-vento, flor, bandeira sul-africana, miniatura de jogador. Mas
ai do artesão que fizesse uma marakapa com as expressões monopolizadas
pela Fifa. Tinha toda a produção apreendida.
Perto dos estádios, nas áreas reservadas aos torcedores, havia mais
proibições. Por exemplo, barracas de comida e bebida só podiam vender as
marcas patrocinadoras da Copa. Como nenhum vendedor ambulante de tripas
de carneiro com papa de milho, os “boerewors” com “pap”, típicos da
África do Sul, havia pago a cota de patrocínio, os turistas nas
imediações dos elefantes brancos se viram privados de saborear as
iguarias –assim como se tentou fazer com as baianas do acarajé na Bahia.
Em vez disso, só Coca-cola, Budweiser, McDonald’s. Tudo devidamente
autorizado.
Soccer City, estádio de Johannesburgo, em forma de cerâmica africana,
com capacidade para 95 mil pessoas, chegou a ser apresentado pelo
marketing da Fifa como uma forma de aproximar a Copa dos pobres do
bairro negro de Soweto, sede de tantos combates contra o regime racista
do apartheid.
Os moradores do bairro não se esquecem do chamado Levante de Soweto,
do dia 16 de junho de 1976, quando a população negra insurgiu-se contra o
assassinato pela polícia do menino Hector Pieterson, de apenas 12 anos.
A repressão massacrou entre 30 e 500 pessoas, a depender da fonte.
Todas negras, com certeza.
Em Soweto, sem som nas caixas
Mas a aproximação foi apenas física –Soccer City está a 19 km de
Soweto. Excluída do estádio por conta do alto preço dos ingressos, a
torcida pela seleção dos Bafana Bafana (moleques em zulu, apelido do
time sul-africano, que jogaria contra o Uruguai) teve mesmo foi de se
concentrar no parque Thokoza, perto de onde Pieterson foi assassinado.
Aliás, o dia do jogo era inspirador, mesmo dia do sacrifício de
Pieterson, 34 anos antes.
Soweto: durante os jogos, não havia caixa de som
por lá, bem diferente das fan fests.
(Foto: Laura Capriglione)
por lá, bem diferente das fan fests.
(Foto: Laura Capriglione)
Não havia som nas caixas. Só mesmo os gritos dos torcedores. Umas
poucas barracas ofereciam o ensopado de “boerewors” com “pap”. A
qualidade da imagem era ruim. Soweto cantou o hino Nkosi Sikelel’I
Afrika, ”Deus Abençoe a África”, o mesmo cantado em 1976, no protesto em
que Pieterson caiu morto. Quando o atacante Forlán fez o primeiro gol,
as vuvuzelas do parque silenciaram. Acabou a Copa para a África do Sul e
sobrou muito pouco.