Sexta, 23 de maio de 2014
Do Correio da Cidadania
Escrito por Paulo Passarinho, economista.
Em sexta, 23 de Maio de 2014
O Brasil encontra-se em um momento extremamente delicado.
Após vinte anos da experiência da abertura liberal, estamos vivendo um quadro
que combina incerteza econômica, descrença com a institucionalidade vigente e
crescente tensão social, por conta da incapacidade da sociedade de encontrar
respostas para gravíssimos e diversos problemas sociais que, sem soluções,
apenas se agravam.
As manifestações que surpreenderam o país no ano passado
não foram raios em céu azul. Refletiram o descontentamento reprimido e iludido
por uma era de imposturas, em que o controle da inflação, a redução da miséria,
a recuperação do poder de compra dos salários mais baixos – puxada pelos
reajustes reais do salário-mínimo – e a expansão do emprego de baixa
qualificação foram apresentados como indicadores insofismáveis de uma nova era,
de desenvolvimento e combate às desigualdades.
Rigorosamente, essas mudanças, que de fato ocorreram e
beneficiaram os “de baixo”, infelizmente tiveram o efeito de legitimar o modelo
econômico introduzido no país com a eleição de Collor, com a sua pregação pela
abertura econômica e a redução do papel do Estado, e consolidado com as
reformas patrocinadas especialmente por FHC.
Lula, com muita habilidade e faro político, construiu um
pacto social em torno justamente desse modelo. Garantiu ganhos aos mais pobres
e manteve o arcabouço jurídico, político e econômico que interessa aos bancos,
multinacionais e agronegócio – setores dominantes e estratégicos de um modelo
que aprofunda a dependência produtiva, tecnológica e científica do país e,
consequentemente, o nosso subdesenvolvimento.
Uma das consequências mais graves desse processo foi a
transformação que o lulismo provocou no bloco de forças – de esquerda – que
desde a segunda metade dos anos 1970 havia iniciado um percurso que acabou por
levá-lo ao governo federal. A metamorfose política e ideológica do PT, do PCdoB
e do PSB – combinada com a crise do trabalhismo brizolista - deixou um vazio à
esquerda no cenário político.
O momento atual reflete em boa medida este vazio. As
contestações aos partidos e sindicatos, observadas nas jornadas de junho do ano
passado, são um exemplo desse fenômeno. A verdadeira rebelião de muitas bases
de trabalhadores, conforme temos visto com frequência, atropelando direções
sindicais pouco combativas, mostram, igualmente, a insatisfação dos que querem
lutar por uma nova ordem e acabam por não encontrar canais de representação à
altura da disposição de luta presente.
Contudo, há no Brasil uma esquerda partidária que não se
rendeu, procura manter os seus vínculos com os movimentos sociais e, em
especial, com os trabalhadores em luta. Entretanto, carece hoje de maior
representatividade. O lulismo continua absolutamente hegemônico no movimento
sindical e apenas o PSOL, dentre os partidos realmente de esquerda, dispõe de
representação parlamentar no Senado e na Câmara Federal, ainda que extremamente
minoritária.
Além disso, essa esquerda partidária, é forçoso
reconhecer, em boa medida guarda uma grande dificuldade em compreender e
dialogar com os movimentos sociais que vêm tomando as ruas do país, embalando
uma juventude com pautas de reivindicações as mais variadas, formas de luta e
manifestação inovadoras, muita disposição e energia, mas em sua maioria
desvinculada e até mesmo refratária à política partidária.
Mas, talvez, a maior dificuldade que essa esquerda
legítima apresenta – e que reforça a sua incapacidade em aproveitar o atual
momento para se fortalecer – seja a sua incapacidade em formular um programa
adequado às condições que a realidade brasileira apresenta, com suas imensas
contradições e as exigências que cotidianamente reforçam a luta popular.
Bandeiras como a defesa de um “governo dos trabalhadores”, do “poder popular”
ou de um genérico “socialismo” são por demais abstratas, propagandísticas e
distantes do atual nível de consciência, organização e estágio em que se
encontram as lutas concretas dos trabalhadores.
Na maior parte das vezes, aprisionadas a uma visão doutrinária
e academicista, as direções desses partidos resistem em apresentar propostas
objetivas de reformas da atual institucionalidade, em especial, no campo da
economia. Possivelmente, em função do temor de um posicionamento desse tipo vir
a ser confundido com o vulgar revisionismo – tão caro e desastroso na história
da esquerda –, esses partidos se mostram tão pouco ousados em avançar
objetivamente na defesa, por exemplo, de um novo modelo macroeconômico, que dê
respaldo a um conjunto de outras reformas estruturais que os brasileiros em
luta vêm exigindo.
A próxima disputa presidencial abre, potencialmente, uma
enorme possibilidade de se apresentarem propostas sistêmicas, para se enfrentar
a atual crise brasileira, que se manifesta da esfera econômica até o âmbito da
representação política dos cidadãos, passando pelo conjunto das políticas
sociais e de responsabilidade do Estado.
Por que, portanto, não se avançar com propostas que, a
partir de uma mudança substantiva da política econômica da abertura financeira,
dos juros altos e do câmbio valorizado – que nos amarra e nos atrasa desde os
anos 1990 –, abra de fato uma nova conjuntura no país?
A partir de uma nova política macroeconômica, abrir-se-ia
a oportunidade de enfrentarmos as graves deformações que temos observado do
atual modelo de desenvolvimento – calcado nos interesses das grandes
corporações financeiras – e que têm nos condenado ao subdesenvolvimento.
Nosso atual subdesenvolvimento se traduz, por exemplo, na
desnacionalização e regressão tecnológica do nosso parque industrial e na
dependência a um modelo de política agrícola voltado às exportações e
sustentado por um padrão tecnológico atrasado, baseado em pesada carga de
fertilizantes químicos e agrotóxicos. Modelo que - além de inviabilizar uma
reforma agrária popular, baseada na agroecologia - envenena nossas terras, rios
e a saúde de milhões de brasileiros.
A necessária mudança da política econômica terá de nos
permitir enfrentar – com recursos orçamentários – uma urgente revolução no
padrão de prestação de serviços sociais pelo Estado, com políticas universais e
de alta qualidade, conforme reivindicam milhões que se manifestam a favor de um
“padrão FIFA” para as políticas de saúde, de educação ou de mobilidade urbana.
Mas, acima de tudo, a própria campanha eleitoral desse
ano, mais do que nunca, nos permitirá denunciar o domínio econômico do processo
eleitoral e a defesa de um novo modelo de financiamento das eleições e de
eleição dos chamados representantes do povo, para os poderes Legislativo e
Executivo. As propostas elaboradas pelo Movimento de Combate à Corrupção
Eleitoral, e já incorporadas por um conjunto significativo de entidades da
sociedade civil e movimentos sociais, nos permitiriam avançar para um novo
modelo de eleições, onde a vontade popular, e não a força do dinheiro, fosse o
seu vetor determinante.
Por tudo isso, me parece essencial que esses partidos
realmente da esquerda, uma esquerda que não se rendeu ao lulismo, procurassem
um caminho de unidade tática. Não se trata de pretender que cada uma dessas
organizações políticas abandone os seus respectivos programas e suas formas
próprias de organização. Apenas constato que estamos diante de dramáticos
desafios.
Considerando o paupérrimo quadro partidário a que estamos
reduzidos, apenas essas esquerdas, com sensibilidade e sintonia às aspirações
populares que surgem nas ruas e locais de trabalho os mais variados, poderão
evitar o acelerado processo de crise de legitimidade política que vivemos.