Sábado,
21 de setembro de 2019
Da
21/09/19 por Brenda Marques*, especial para
Ponte
No
Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, eu só quero ser respeitada e
vista como quem sou
Brenda
Marques: ‘Não sou coitada, nem exemplo’ | Foto: arquivo pessoal
Eu tinha acabado de fazer uma tatuagem junto
com minha amiga Luísa e nós estávamos em uma estação da linha verde do metrô de
São Paulo. Desci até a plataforma pelas escadas. Não lembro se o elevador
estava quebrado ou se nós não achamos ele.
O trem chegou e embarcamos. Me acomodei no
assento preferencial. Luísa ficou de pé na minha frente e começamos a
conversar, animadas, sobre nosso dia.
De repente, o homem sentado ao meu lado nos
interrompeu: “Fica com esse panetone pra você”, ele ofereceu, olhando para mim
e estendendo a caixa que estava em seu colo. Respondi, de imediato e surpresa:
“Eu não quero, obrigada!”. Ele insistiu, eu recusei novamente. Obstinado a
fazer caridade a qualquer custo, ele tirou cinquenta reais da carteira: “Então
toma”, disse ele estendendo a nota para mim.
Eu e Luísa estávamos incrédulas. “Eu não
quero! Pega esse dinheiro e dá para quem precisa!”, respondi. Eu estava mais
desacreditada do que irritada com a situação. Por fim, chegamos à estação de
destino.
O que fez aquele desconhecido bater o olho em
mim e julgar que sou digna de caridade? Imagino que o fato de eu ser quem sou:
uma mulher com deficiência que usa muletas. Mal sabia que eu estava toda feliz
por ter feito minha segunda tatuagem – o simbolo do feminino logo abaixo dos
seios – e que é graças às muletas que posso dar rolê em qualquer lugar.
Também é comum – quando eu estou andando na
rua, no metrô ou esperando o ônibus – pessoas desconhecidas me abordarem para
fazer o seguinte convite: “Todo domingo tem culto na minha igreja. Vai lá que
Deus vai te curar!”.
Sei que as intenções são boas e que a
interpretação literal da bíblia faz muitos cristãos pensarem que sou doente,
inválida. Eu tenho uma condição de vida que é a deficiência. Ela difere dos
padrões sociais de normalidade. Mas não faz de mim uma enferma que necessita de
um milagre. Só faz de mim quem sou.
No começo de julho, eu estava encostada no
ponto de ônibus do terminal Tucuruvi, na zona norte de São Paulo. Tinha
comprado um pão de batata e uma água no metrô, para ver se assim melhorava da
ressaca, fruto da festa de aniversário do meu tio na noite anterior.
Fiquei aliviada quando o ônibus chegou.
Ajeitei as muletas e subi os degraus. Como de praxe, sentei na frente, em um
dos bancos preferenciais. Uma senhora de cabelo todo grisalho e olhos claros
sentou ao meu lado. “Tadinha. Você é tão bonita!”, comentou, olhando para mim.
Sorri, amarelo.
Que bom que ela me achava bonita mesmo com
cara de ressaca e lápis preto borrado no olho. Mas a pergunta é: por que eu não
seria bonita? Quando fui descer do ônibus, ela ainda disse: “Você vai ficar boa
logo”. Mais uma vez: não era sobre ser uma jovem que exagerou na bebida, mas
sim sobre ser uma mulher com deficiência.
Outro estereótipo que também incomoda é o
famoso, e tão reproduzido na imprensa, “exemplo de superação”. Até familiares e
amigos costumam se referir a mim dessa maneira.
A palavra superação pressupõe algo a ser
superado: uma situação difícil, um obstáculo, um peso que se carrega. Mas a
deficiência é uma característica minha, não algo ruim que eu tenha que superar.
É verdade que essa característica me faz ter algumas limitações físicas, mas
aprendi desde pequena a lidar com elas graças à educação que recebi de minha
avó. Além disso, todas foram amenizadas com anos de fisioterapia.
Foi um longo caminho desde conseguir ter
controle sobre o meu pescoço e saliva até andar por todo lugar com o auxílio de
duas muletas. Minhas fiéis companheiras que já foram azuis, cinzas e hoje são
vermelhas descascadas.
Com as muletas eu saí da AACD. Com as muletas
eu ia para a escola e para a hidroterapia. Com as muletas fui para a faculdade
e o estágio. Com as muletas me formei e hoje trabalho com jornalismo.
Durante os jogos olímpicos, estava na redação
quando li um título que incomodou: “Canoísta do Brasil no Pan namora modelo que
teve perna amputada”. Fiquei me perguntando até quando nós, jornalistas, vamos
ter que escrever noticias a partir do viés “capacitista”. Acho que até a
sociedade entender que não há nada de anormal, estranho ou esplendoroso em
alguém sem deficiência se apaixonar por uma pessoa com deficiência. Quem disse
que não é possível amar a diversidade do outro?
Dia desses, minha mãe me mostrou as fotos de
um colega de trabalho dela junto com a esposa, que é cadeirante. Ela estava
surpresa, pois não sabia da condição de vida da mulher. “Legal né, filha?
Pessoas assim são evoluídas, não acha?”, ela me perguntou, se referindo ao
rapaz.
Só ouvi. Nada respondi. “Ou eu estou sendo
equivocada?”, emendou. Ela percebeu. “Equivocada”, respondi, rompendo o
silêncio.
Na última terça-feira (17/9), saí do trabalho
às 17h. Fui andando, como sempre, até a estação Barra Funda, na linha vermelha
do metrô de SP. O sol daquele fim de tarde me encheu de ânimo pelo caminho.
Passei pela catraca, peguei o elevador e desci
para a plataforma. Andei até a parte reservada a quem é preferencial – e tinha
muita gente que não precisava estar ali, como de praxe. Costumo ser uma das
últimas a entrar o vagão. E fico, na maioria das vezes, sem ter onde sentar.
“Alguém pode me dar lugar?”, pedi.
Silêncio.
Repeti o pedido. A mulher grávida sentada no
banco preferencial olhou para a de cabelo amarrado, que analisou de soslaio a
impassibilidade dos outros e, finalmente, resolveu me ceder o banco. Eu sentei.
Só queria chegar o mais rápido possível na Sé.
Lá, esperei o trem sentido Tucuruvi. Ele
chegou abarrotado. Fui em direção ao assento azul claro. Um senhor de aparência
gentil, pele enrugada e escassos fios grisalhos na cabeça chegou segundos antes
de mim. Porém, falou para eu me sentar. Eu aceitei, mas fiquei incomodada.
“Alguém pode dar lugar para esse senhor que acabou de ceder o dele para mim?”,
indaguei.
O homem sentado à frente continuou agarrado à
mochila preta em seu colo. Fazia uma cara de sonso. A mulher ao lado dele
continuou olhando pela janela. Achei tudo aquilo inacreditável e passei a
viagem chateada com a falta de empatia das pessoas. Quando cheguei no Tucuruvi,
um alívio: o ônibus já estava lá.
Entrei no transporte com a ajuda de um idoso.
Ele inclusive trocou de lugar comigo e me poupou de subir mais um degrau. Nesse
dia, o transporte ficou mais lotado que o normal. Após 40 minutos de viagem até
Guarulhos chegou a minha vez de descer. O motorista parou fora do ponto para
mim. Já no apartamento, fiquei feliz ao encontrar minha avó, que veio passar
uns dias comigo. Mais um dia se encerrava. E amanhã, ao acordar, seguirei
lutando por respeito e por mostrar que só quero que me vejam como sou.
(*) Brenda Marques é jornalista e trabalha no
Portal R7 desde 2018. Autora do livro “Mulheres Marcadas: uma condição,
inúmeras violências”, que foi seu trabalho de conclusão de curso. Teve
paralisia cerebral quando era recém-nascida