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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Podendo falar ao mundo, Bolsonaro dirigiu-se ao seu gueto ideológico

Segunda, 30 de setembro de 2019
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O capitão não surpreendeu. Na presidência continua sendo aquele deputado do baixo clero que se fez conhecido/notório pela defesa de abjeções como a ditadura e ditadores, a tortura e torturadores. Na tribuna da ONU não foi diferente: podendo e devendo falar ao mundo, dirigiu-se ao seu gueto ideológico, doméstico e provinciano, repetindo a toada da campanha eleitoral, da qual não se aparta. No oitavo mês de um governo que coleciona fracassos, se comporta como candidato à reeleição e fez da tribuna da ONU palanque eleitoral.

Não titubeou em mentir e distorcer os fatos. Seu texto expressa absoluto descompromisso com a realidade.

Mentiu quando se apresentou como líder de ações anticorrupção. Mentiu quando acusou os médicos cubanos ora de não terem formação profissional, ora de serem espiões de seu governo. Mentiu quando se autoproclamou negociador bem sucedido de acordo de livre comercio com a UE, quando chegou ao final de negociações que se desenrolaram durante mais de 20 anos. Mentiu e distorceu números quando se referiu à questão indígena e às reservas dos ianomâmi e foi despropositadamente grosseiro com o cacique Raoni, reduzido pelo capitão ao papel de “peça de manobra” nas mãos de potências estrangeiras com interesses na Amazônia. O velho líder paga o preço de haver sido recebido pelo presidente da França. Mentiu quando atribuiu à cultura de nossos índios as queimadas que ameaçam a Amazônia. Mentiu quando se disse representar a população brasileira querendo significar que seu discurso – que nos descreve como um país ultraconservador e de extrema-direita, de repente evangélico/pentecostal — expressava o pensamento nacional.

Mentiu quando afirmou que o Brasil usa apenas 8% de suas terras na produção de alimentos. Como observa Carlos Rittl, secretario-executivo do Observatório do clima (O Globo, 25.9.2019), nada menos de 33% dessas terras são destinados à agricultura e à pecuária. Também mentiu ao afirmar que a Amazônia está praticamente intacta, quando já perdemos 20% da floresta original.

Ele próprio um anacronismo político, insistiu no anacronismo da guerra fria, morta e sepultada há décadas, para apresentar-se como herói de uma guerra que não houve no Brasil, contra o socialismo.

Sob qual governo socialista vivia o Brasil que o viu eleger-se em 2018?

Seu discurso é velho, mofado, na temática e na forma. E falso. Na tribuna da ONU, num plenário que quanto mais o conhece mais deve ter saudade de seus antecessores, falou pequeno, preso à domesticidade provinciana, e mais uma vez contribuiu para desgastar a imagem do Brasil construída num esforço de muitos anos, muitos governos e muitos presidentes, particularmente na defesa da paz e do primado da sustentabilidade, que nos fez pousar entre as nações líderes da política mundial de proteção ambiental.

Seu discurso agressivo e belicoso serviu apenas para aumentar o isolamento do Brasil no convívio internacional, pondo em risco, inclusive, nossos interesses econômicos e nos afastando ainda mais da sociedade das nações ao voltar a tratar de forma irresponsável as questões ambientais. Quando devia falar à comunidade internacional sobre as garantias que podemos oferecer de que a floresta amazônica será preservada, repetiu bordões e se limitou ao esperado discurso soberanista, que deve ter bom eco junto aos militares mas todos sabem que é um discurso vazio. Posta de lado a declaração idiota do presidente Macron, a Amazônia não está sob ameaça de invasão e nossa soberania não está sob questão. O que o governo não enfrenta é o fato singelo de que a soberania transformar-se-á em mera retórica ao não se completar na proteção da Amazônia cuja ocupação não pode ser feita no rasto do boi ou dos garimpeiros, mas na exploração científico-tecnológica de sua rica biodiversidade.

O discurso da ameaça externa, das garras das grandes nações ameaçando a soberania brasileira sobre a Amazônia, porém, é muito bem vindo pelo capitão, pois o inimigo externo sempre facilita a composição interna e esta postura é o instrumento que lhe é oferecido para reorganizar sua base de apoio, começando pelos militares. Neste ponto ele deveria ser grato ao presidente Macron, pois lhe dá a oportunidade de fugir ao debate sobre a crescente desaprovação popular de seu governo. Segundo a última pesquisa CNI/IBOPE, 50% das pessoas consultadas disseram não concordar com a maneira do capitão governar, e 55% afirmaram não confiar no governo. A classificação de governo ruim/péssimo saltou de 27% em abril para 34% em setembro.

A floresta está realmente ameaçada, mas pela exploração predatória, como o agronegócio primitivo e a extração mineral que estimula o garimpo. A floresta está ameaçada pelas queimadas, no fundo incitadas pelo desaparelhamento do ICM (como é mesmo o nome do Instituo Chico Mendes…) e pelo discurso anti-protecionista do capitão.

A grande ameaça que paira sobre a floresta é o governo do capitão. Na ONU, não podendo apresentar um plano de efetiva defesa ambiental da Amazônia, tentou tampar o sol com a peneira: simplesmente negou os problemas, quando a questão ambiental passa a constituir tema de primeira ordem para as nações, condicionando, inclusive suas políticas e seu comércio, o que, amanhã, poderá reverter-se em prejuízo para nossas exportações. O discurso do capitão fortalece a política de muitas nações que advogam contra nós punições econômicas.

O capitão não reconhece problemas, tudo o que gira em seu torno é criação de esquerdistas, é fruto de um comunismo ou de um socialismo de indústria, invocado artificialmente para unificar suas tropas.

Quando a tradição do Brasil, na ONU, na abertura das Assembleias Gerais, era, até aqui, falar nas questões mais candentes do cenário mundial apontando para o entendimento, o multilateralismo e a solução pacífica dos conflitos, o fortalecimento dos organismos internacionais, o capitão, num discurso antagonista, investe contra a própria ONU, mas nem assim foi original. Mesmo contra o multilateralismo chega atrasado na disputa de uma liderança que já está de há muito ocupada por seu guia e ícone, o presidente Trump. Chega atrasado e nada acrescenta diante do espanto da comunidade internacional. Isolando-se — num mundo que já se viu livre de Salvani e se está despedindo de Macri e Netanyahu, seus grandes aliados ao lado do presidente dos EUA, já respondendo a processo de impeachment — cava o aprofundamento de nosso isolacionismo, transformando em passado longínquo aquele Brasil que Lula fez o mundo admirar. A política externa ativa e altiva se reduz a isso, a subalternidade aos EUA de Donald Trump e a submissão ideológica à nova direita que se diz soberanista.

As citações críticas à Alemanha e à França (país que está construindo nossos submarinos convencionais e vai construir os submarinos de propulsão nuclear) são, apenas, mais um desatino.

Autocrata livre de controle, seu discurso é avesso ao diálogo, às composições, ao entendimento, à tolerância. É porém pleno de reservas a liberdade de imprensa. É uma antidemocrática sequência de dictaks, como seu governo. Por isso o discurso que lhe foi dado ler é sincero, é Bolsonaro por ele mesmo.

Sinal dos tempos – Sob o título “Araújo e Bannon discutem fala de Bolsonaro na ONU”, o O Estado de S. Paulo (13.9.2019) informa que “Fora da agenda oficial, o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, reuniu-se nos EUA com Steve Bannon, ex-estrategista de Donald Trump e agitador de uma onda nacionalista de direita”. Segundo a matéria, assinada pela correspondente do jornal em Washington, “Uma das pautas da conversa dos diplomatas brasileiros com o americano foi o discurso do presidente Jair Bolsonaro, no dia 24, em Nova York, na abertura da Assembleia da ONU”.

Um grito que não pode calar: Quando saberemos quem mandou matar Marielle Franco?

Roberto Amaral
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia