Sábado, 4 de abril de 2020
Por
Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 4 de abril de 2020
“Jair Bolsonaro afirmou na noite desta quinta-feira, 2, que tem o poder de ‘reabrir o comércio em uma canetada’. Em entrevista ao programa ‘Os pingos nos is’, da Rádio Jovem Pan, ele afirmou ainda que tem sobre sua mesa um ‘estudo de decreto’ para considerar ‘atividade essencial todo trabalho de um homem ou mulher para levar o pão de cada dia para casa’ (noticias/bolsonaro-posso- reabrir-o-comercio-em-uma- canetada/> ).
Muito provavelmente o tal estudo está assentado no disposto no artigo terceiro, parágrafo nono, da Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, assim redigido: “O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o §8º”. Esse diploma legal “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”.
A pretensão presidencial ofende a lógica mais elementar. Com efeito, se o legislador estabeleceu que isolamentos e quarentenas (artigo terceiro, incisos I e II da lei mencionada) “… quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais” (artigo terceiro, parágrafo oitavo da Lei n. 13.979/2020), nem todos os serviços públicos e atividades econômicas são essenciais. Se todos são essenciais, por definição de decreto presencial, revoga-se por via oblíqua a distinção feita pelo legislador. Lição jurídica das mais primárias afirma que o enunciado infralegal não pode ser incompatível com o texto legal (o vetusto princípio da hierarquia).
A ofensa ao princípio da razoabilidade (artigo quinto, inciso LIV da Constituição) é patente. O Supremo Tribunal Federal (STF), identificando no dispositivo destacado o postulado do devido processo legal substantivo (substantive due process of law), em reiterada jurisprudência aponta no sentido de que os atos estatais não pode ser excessivos ou abusivos. A abrangência total ou absoluta da essencialidade ofenderia de morte o critério da adequação (relação congruente entre meios e fins). Como qualificar a venda de presentes, itens de decoração, sapatos, roupas, flores, materiais de escritório, etc, etc, etc como essenciais para o atendimento de necessidades humanas imediatas ou inadiáveis?
Ademais, a Constituição, em seu artigo vinte e três, estabelece que “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios … II – cuidar da saúde e assistência pública ...”. Esse cuidado, nos termos do parágrafo único do mesmo artigo, impõe a cooperação de todos os entes da Federação em busca do equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. Observe-se que o artigo terceiro, caput, da Lei n. 13.979/2020 fixa que “… as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras ...” as medidas de isolamento e quarentena. Não foi dito pelo legislador, nem seria viável dizer, que só o Presidente da República, ou as autoridades federais, poderia adotar medidas contra a propagação do vírus, especialmente as relacionadas com distanciamento social. No âmbito das competências constitucionais e legais dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por seus governadores, prefeitos e legisladores, estão imperativos de atuação sobre o comércio de rua, educação, transporte, prestação de serviços, entre outros, sobretudo em momentos agudos de riscos extremos para a saúde pública.
Atente-se, também, para a redação do artigo 268 do Código Penal. Ele reza que é crime: “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. Portanto, não é lícito infringir medida sanitária preventiva. Ao definir que todas as atividades econômicas são essenciais obtém-se uma fraude ao aludido art. 268 do CP. Inviabiliza-se por essa via do decreto presidencial qualquer medida de restrição à movimentação social como ação sanitária preventiva. Mais uma vez o enunciado normativo infralegal afronta o comando legal (esvaziando-o indevidamente).
O Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática do Ministro Roberto Barroso na ADPF n. 669, decidiu (trechos da ementa): “2. As orientações da Organização Mundial de Saúde, do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Medicina, da Sociedade Brasileira de Infectologia, entre outros, assim como a experiência dos demais países que estão enfrentando o vírus, apontam para a imprescindibilidade de medidas de distanciamento social voltadas a reduzir a velocidade de contágio e a permitir que o sistema de saúde seja capaz de progressivamente absorver o quantitativo de pessoas infectadas. (…) 5. Medida cautelar concedida para vedar a produção e circulação, por qualquer meio, de qualquer campanha que pregue que ‘O Brasil Não Pode Parar’ ou que sugira que a população deve retornar às suas atividades plenas, ou, ainda, que expresse que a pandemia constitui evento de diminuta gravidade para a saúde e a vida da população. Determino, ainda, a sustação da contratação de qualquer campanha publicitária destinada ao mesmo fim”.
Essa decisão indica que medidas voltadas para viabilizar o retorno à “normalidade” da circulação social de pessoas, neste momento delicadíssimo da propagação do covid-19, não prosperarão. Resta claro que a edição do tal “decreto sobre a mesa” seria uma tentativa extrema de afrontar as recomendações de praticamente todas as entidades nacionais e internacionais relacionadas com a saúde pública, inclusive do próprio Ministério da Saúde.
O artigo terceiro, parágrafo primeiro, da Lei n. 13.979/2020 possui o seguinte formato: “As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”. Por conseguinte, isolamentos sociais, quarentenas e outras providências reclamam para suas adoções: a) análise técnico-científica pertinente e b) dados colhidos na realidade (nua e crua). Obviamente, esses critérios valem para a implementação, flexibilização e superação das medidas. As profundas repercussões socioeconômicas das restrições sanitárias não podem depender de achismos, palpites ou interesses políticos.
O método científico (“evidências científicas”, na expressão do legislador) não se confunde com retórica, bravatas, ameaças, relinchos ou qualquer coisa do gênero. O discurso científico, e suas conclusões, apresentado na forma de trabalhos de maior ou menor extensão, é realizado e legitimado por especialistas, com anos ou décadas de estudos e titulações, no âmbito de um processo com etapas derivadas de critérios rigorosos universalmente aceitos. Assim, o “decreto sobre a mesa” precisa do necessário lastro científico. A busca por sustentação científica para o retorno à “normalidade” da circulação de pessoas (com ou sem o isolamento vertical dos grupos de risco), pela via do “decreto sobre a mesa”, não encontra nada significativamente acatado pela comunidade científica.
Ademais, os dados derivados da realidade mostram: a) curvas crescentes, no Brasil e no mundo, de propagação do vírus (e ainda estamos na “fase inicial” rumo à “aceleração descontrolada” projetada para a segunda quinzena de abril); b) praticamente todos os governos do mundo, em especial os das maiores e mais poderosas nações, indicam quase por unanimidade a necessidade de medidas cada vez mais duras de distanciamento social; c) existe um virtual consenso de que os casos computados no Brasil estão muito aquém dos efetivamente existentes, principalmente pela falta de testes suficientes e a incapacidade de processar os realizados na velocidade necessária; d) as condições do sistema de saúde são muito precárias em termos de quantidade de profissionais, máscaras, luvas, vestimentas especiais, ventiladores mecânicos e leitos de UTI e internação (autoridades do Ministério da Saúde projetam colapso ou caos ainda no mês de abril) e e) vários governantes pelo mundo afora reconhecem o erro de não terem agido com energia nos momentos iniciais de avanço do coronavírus. O “decreto sobre a mesa”, ao viabilizar todos os tipos de aglomerações e interações sociais, na antessala do momento mais grave da pandemia, não vai concorrer para mais infecções e mortes? Até o senso comum responde sim para a indagação.
A toda evidência, as consequências socioeconômicas da pandemia são (e serão) desastrosas. Com isolamento/quarentena, ou não, os efeitos da disseminação do vírus nas condições de sustento da grande maioria da população são (e serão) dramáticos. O caminho para enfrentamento desse problema de proporções gigantescas consiste em combinar as medidas de isolamento social, graduadas pela realidade, avaliadas e reavaliadas, com monumentais operações de transferência de renda para os mais vulneráveis (que precisam ser desesperadamente eficientes, especialmente rápidas). No dia 26 de março, o G20 anunciou a decisão de injetar 5 (cinco) trilhões de dólares na economia global. No dia 27 de março seguinte, o Presidente dos Estados Unidos da América promulgou um pacote de 2 (dois) trilhões de dólares para reduzir os impactos do coronavírus na economia norte-americana.
Portanto, é dever moral, político e constitucional do Presidente da República, notadamente na relação com os entes federativos, perseguir com tenacidade o melhor funcionamento das instituições públicas e privadas para obtenção da máxima sinergia no combate ao inimigo comum. Falas e medidas em sentido oposto, nesse momento de extrema gravidade, exigirá o afastamento das providências tortas e, até mesmo, do próprio autor delas (ao menos o seu isolamento político).
Vale registrar que o cenário brasileiro dos próximos meses é completamente incerto. Quando chegaremos ao pico da curva de propagação? Quando a curva de expansão do vírus arrefecerá? O sistema de saúde entrará em colapso (ou quando entrará em colapso)? Os vários mecanismos de ajuda aos mais necessitados serão efetivos? Teremos algum nível significativo de agitação social? Veremos alguma movimentação no sentido da ruptura da institucionalidade democrática?
Por isso, e muito mais, o Presidente da República não conseguirá, ao que tudo indica, transformar o “decreto sobre a mesa” em “decreto no Diário Oficial”. Se, num raro momento de desequilíbrio, der esse passo “demasiado largo”, deverá ser repelido pela maioria da sociedade, pelas instituições democráticas (em especial, o Judiciário) e até por boa parte de seus ministros. Seu destino político, nesse cenário, não parece ser dos melhores.