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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 31 de março de 2023

CORRUPÇÃO, PREVENÇÃO E DESIGUALDADE PARTE XVI — OS PRINCIPAIS PLANOS NACIONAIS DE COMBATE À CORRUPÇÃO

Sexta, 31 de março de 2023
Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 31 de março de 2023

Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.

Como destacado na PARTE XV desta série de textos, a literatura especializada costuma mencionar os seguintes mecanismos de combate à corrupção: a) prevenção; b) detecção; c) investigação; d) correção e e) monitoramento. Esses mecanismos podem ser desdobrados em elementos ou componentes. Cada elemento ou componente pode ser detalhado, no plano operacional, em práticas ou ações específicas.

A reunião de uma série de ações específicas toma a forma de um plano de combate à corrupção. Na sequência, serão destacadas três importantes iniciativas nacionais voltadas para o enfrentamento da corrupção e de malversações correlatas na forma de planos ou conjunto de medidas com denominações similares.

O “Plano de Diretrizes de Combate à Corrupção” foi apresentado pela ENCCLA em 2018. A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro funciona como uma rede de articulação institucional voltada para discutir e formular políticas públicas e soluções de enfrentamento à corrupção e à lavagem de dinheiro (http://enccla.camara.leg.br). A ENCCLA foi criada em 2003 e reúne aproximadamente 80 instituições públicas federais, estaduais e municipais do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público.

O Plano da ENCCLA considerou 5 fontes de iniciativas: a) trabalhos já realizados; b) iniciativas da sociedade civil organizada; c) planos estrangeiros; d) compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e e) participação da sociedade. Foram estabelecidos três eixos estratégicos: a) prevenção; b) detecção e c) punição. A análise e sistematização do material pesquisado gerou 569 propostas, divididas em 70 diretrizes e agrupadas em 8 pilares, além de uma matriz de priorização.

Na sequência apontamos os 8 pilares do Plano da ENCCLA, com indicação do número de medidas propostas em cada pilar e exemplos dessas ações. São eles: a) fortalecer as instituições públicas (13 pontos, incluindo “normatizar, nos diversos Poderes e unidades da federação, percentuais mínimos de cargos em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira, priorizando o provimento de cargos estratégicos por servidores públicos efetivos com a devida competência para o exercício da função”); b) aprimorar a gestão e a governança públicas, para prevenção e detecção de desvios (14 itens, incluindo “promover maior controle da evolução patrimonial de servidores públicos”); c) aumentar a transparência na gestão pública (10 elementos, incluindo “assegurar a transparência dos processos e das informações de contratações públicas, por meio de mecanismos que permitam o uso dos dados”); d) fortalecer o enfrentamento à lavagem de dinheiro (5 tópicos, incluindo “facilitar o acesso, aos órgãos de controle, a bancos de dados que permitam identificar possível ocorrência de lavagem de dinheiro”); e) fortalecer a articulação interinstitucional nos diversos poderes e entes federativos (6 pontos, incluindo “fomentar a criação e o fortalecimento de redes de controle oficiais para o acompanhamento de políticas públicas”); f) fortalecer a articulação internacional (7 itens, incluindo “fortalecer a cooperação internacional para o enfrentamento à corrupção e à lavagem de dinheiro, explorando soluções inovadoras e novas tecnologias, compartilhamento de melhores práticas, estudos e aprendizado mútuo”); g) promover o engajamento da sociedade na luta contra a corrupção (7 elementos, incluindo “promover ações de conscientização, desenvolvimento da cidadania e capacitação para a participação social”) e h) aumentar a efetividade do sistema punitivo (8 tópicos, incluindo “assegurar meios para o exercício adequado das atividades de fiscalização, investigação, promoção de ações e julgamento das práticas de corrupção”).

As “Novas Medidas Contra a Corrupção” figuram como uma das mais importantes e estruturadas contribuições existentes no Brasil. Trata-se de um conjunto de 70 propostas específicas. Segundo a apresentação no livro editado pela FGV Direito Rio, “a partir da compilação de melhores práticas nacionais e internacionais e da colaboração de vários setores da sociedade brasileira, construiu-se o maior pacote anticorrupção já desenvolvido no mundo”. O esforço envolveu a Transparência Internacional, cerca de 373 órgãos públicos, organizações não governamentais, instituições educacionais, instituições religiosas, associações comerciais, conselhos de classe e quase 200 especialistas.

Embora não tenham sido estruturadas segundo os cinco mecanismos anteriormente destacados, é possível verificar que as medidas apresentadas, inclusive com minutas de proposições normativas, contemplam aquela classificação. Com efeito, entre os blocos de propostas são encontrados: a) “3. Prevenção da corrupção”; b) “5. Responsabilização de agentes públicos”; c) “7. Melhoria do controle interno e externo”; d) “9. Investigação” e e) “12. Instrumentos de recuperação do dinheiro desviado”.

Entre as 70 medidas propostas, podem ser destacadas as seguintes: a) criação do Sistema Nacional de Controle Social e Integridade Pública; b) divulgação de todas as compras públicas em um portal único na internet; c) publicidade das bases de dados como regra geral e em formato aberto; d) criação do Programa Nacional de Proteção e Incentivo a Relatos de Suspeitas de Irregularidades; e) inclusão nos currículos dos ensinos fundamental e médio de conteúdos relacionados à formação ética, à cidadania solidária, à participação na gestão pública e ao controle dos gastos públicos; f) seguro garantia de execução de contratos públicos; g) regras e limites para transações, transporte e posse de dinheiro em espécie; h) extinção do fundo de financiamento de campanhas e limites para doações e autodoações eleitorais;  i) restrição do foro privilegiado; j) criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos; k) critérios para seleção de ministros e conselheiros dos Tribunais de Contas; l) processos seletivos para cargos em comissão; m) criação de um sistema de declaração de bens e direitos de servidores públicos; n) regulamentação do lobby; o) incentivos para que as empresas estabeleçam programas de integridade e p) criminalização da corrupção privada.

O Ministério Público Federal (MPF) apresentou à sociedade dez medidas para aprimorar a prevenção e o combate à corrupção e à impunidade (https://dezmedidas.mpf.mp.br). As propostas, perseguindo o aumento da transparência, prevenção, eficiência e efetividade, foram veiculadas na forma da campanha “As 10 Medidas contra a Corrupção”.

O MPF identificou a existência de um círculo vicioso de corrupção privada e pública e a necessidade de implementar mudanças sistêmicas e estruturais. As medidas propostas foram as seguintes: a) prevenção à corrupção, transparência e proteção à fonte de informação; b) criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos; c) aumento das penas e crime hediondo para a corrupção de altos valores; d) eficiência dos recursos no processo penal; e) celeridade nas ações de improbidade administrativa; f) reforma no sistema de prescrição penal; g) ajustes nas nulidades penais; h) responsabilização dos partidos políticos e criminalização do caixa 2; i) prisão preventiva para assegurar a devolução do dinheiro desviado e j) recuperação do lucro derivado do crime.

Portanto, é viável afirmar que existe, tanto no plano internacional (Parte XV desta série), quanto no plano nacional, um enorme esforço de elaboração coerente dos instrumentos a serem utilizados no duro e demorado processo de combate à corrupção e desvios assemelhados. Seguramente, as dificuldades de avanço neste campo não decorrem de deficits de formulação de práticas, medidas ou ações a serem implementadas.  


Textos anteriores da série:

PARTE I – O SENTIDO COLOQUIAL DE CORRUPÇÃO
PARTE II – A CULTURA DE LEVAR VANTAGEM
PARTE III – O SERVIDOR CORRUPTO SOZINHO
PARTE IV – O CANDIDATO CORRUPTO
PARTE V – O MITO DA FALTA DE PUNIÇÕES
PARTE VI – O SERVIDOR QUE RECUSA A CORRUPÇÃO
PARTE VII - QUADRILHAS ORGANIZADAS POLITICAMENTE
PARTE VIII - A CORRUPÇÃO ESTRUTURAL OU SISTÊMICA
PARTE IX – CORRUPÇÃO NO SETOR PRIVADO
PARTE X - A PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO COMO O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL
PARTE XI – O TAMANHO DA CORRUPÇÃO NO BRASIL
PARTE XII - COMPARANDO A CORRUPÇÃO COM ALGUMAS DAS MAIS IMPORTANTES MANIFESTAÇÕES SOCIOECONÔMICAS NO BRASIL
PARTE XIII – O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL: A DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICA. NÃO É A CORRUPÇÃO
PARTE XIV - COMO A CORRUPÇÃO ESCONDE A DESIGUALDADE E O DELETÉRIO PAPEL DA GRANDE IMPRENSA
PARTE XV – OS MECANISMOS DE COMBATE À CORRUPÇÃO

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