Quinta, 30 de março de 2023
Diante de novas falências, Estados lançam outra rodada bilionária de resgates. Captura da riqueza social parece não ter limite. Mas o sistema atual tornou-se obsoleto. E há saída: bancos centrais podem libertar os cidadãos do cartel privado
Yanis Varoufakis, economista grego.
Por Yanis Varoufakis no Project Syndicate | Tradução: Maurício Ayer
A crise bancária dessa vez é diferente. Na verdade, é pior do que a de 2007-2008. Naquele momento, foi possível atribuir a culpa pelo colapso sequencial de bancos às fraudes cometidas no atacado, aos empréstimos predatórios generalizados, ao conluio entre agências de classificação e banqueiros obscuros que vendiam derivativos suspeitos – tudo permitido pelo desmantelamento do regime regulatório então recém-implementado por políticos cevados em Wall Street, como o secretário do Tesouro dos EUA, Robert Rubin. Agora, as falências dos bancos não podem ser atribuídas a nenhum desses fatores.
Sim, o Silicon Valley Bank foi estúpido o bastante para assumir riscos extremos com a taxas de juros tendo como clientes principalmente depositantes não segurados. Sim, o Crédit Suisse tinha um sórdido histórico com criminosos, embusteiros e políticos corruptos. Mas, ao contrário do que ocorreu em 2008, nenhum denunciante foi calado, os bancos cumpriram (mais ou menos) com as regulações reforçadas pós-2008 e seus ativos eram relativamente sólidos. Além disso, nenhum dos órgãos reguladores, tanto nos Estados Unidos como na Europa, poderia alegar, com credibilidade – como fizeram em 2008 –, ter sido pego de surpresa.
A bem da verdade, os órgãos reguladores e os bancos centrais sabiam de tudo. Eles tiveram acesso total aos modelos de negócios dos bancos. Tiveram a oportunidade de ver nitidamente que esses modelos não sobreviveriam a uma combinação de aumentos significativos nas taxas de juros de longo prazo e a retirada repentina dos depósitos. Mesmo assim, nada fizeram.
As autoridades falharam ao não prever a revoada em pânico de depositantes grandes — logo, não segurados? Talvez. Mas a verdadeira razão pela qual os bancos centrais não fizeram nada quando confrontados com os frágeis modelos de negócios dos bancos é ainda mais perturbadora: foi a resposta dos bancos centrais à crise financeira de 2008 que deu origem a esses modelos de negócios — e os formuladores de políticas sabiam disso.
A política pós-2008 de dura austeridade para a maioria e socialismo de Estado para banqueiros, praticada simultaneamente na Europa e nos Estados Unidos, teve dois efeitos que moldaram o capitalismo financeirizado nos últimos 14 anos. Primeiro, ela envenenou o dinheiro do Ocidente. Mais precisamente, garantiu que não haveria mais uma taxa de juros nominal capaz de restaurar o equilíbrio entre a demanda e a oferta de moeda e, ao mesmo tempo, evitar uma onda de falências bancárias. Em segundo lugar, justamente porque era do conhecimento geral que nenhuma taxa de juros poderia atingir ao mesmo tempo a estabilidade de preços e a estabilidade financeira, os banqueiros ocidentais assumiram como certo que, se e quando a inflação voltasse a subir, os bancos centrais aumentariam as taxas de juros e, ao mesmo tempo, os resgatariam. E eles estavam certos: é exatamente isso que testemunhamos agora.
Diante da dura escolha entre conter a inflação e salvar os bancos, os veneráveis comentaristas econômicos apelam aos bancos centrais para fazer as duas coisas: continuar subindo as taxas de juros mantendo a política pós-2008 de socialismo-para-banqueiros, que, se não se mexer em nenhum outro fator, é a única maneira de impedir que os bancos tombem como dominós. Somente essa estratégia — apertar o laço monetário no pescoço da sociedade enquanto esbanja resgates ao sistema bancário — pode servir simultaneamente aos interesses dos credores e dos bancos. É também uma maneira infalível de condenar a maioria das pessoas a um sofrimento desnecessário (altas de preços e de desemprego evitáveis) e, a um só tempo, plantar as sementes da próxima conflagração bancária.
Para não esquecer, sempre soubemos que os bancos foram projetados para não ser seguros e que, juntos, compreendem um sistema constitucionalmente incapaz de cumprir as regras de um mercado em bom funcionamento. O problema é que, até agora, não tínhamos outra alternativa: os bancos eram o único meio de direcionar dinheiro para as pessoas (por meio de caixas, agências, caixas eletrônicos, e assim por diante). Isto transformou a sociedade em refém de uma rede de bancos privados que monopolizavam os pagamentos, a poupança e o crédito. Hoje, porém, a tecnologia nos proporcionou uma esplêndida alternativa.
Imagine que o banco central fornecesse a todos uma carteira digital gratuita – efetivamente uma conta bancária gratuita com juros equivalentes à taxa overnight do banco central. Dado que o sistema bancário atual funciona como um cartel antissocial, o banco central poderia também usar tecnologia baseada em nuvem para fornecer transações digitais gratuitas e salvaguarda de poupança para todos, direcionando suas receitas líquidas para pagar por bens públicos essenciais. Livres da obrigação de manter seu dinheiro em um banco privado, e de pagar taxas abusivas para fazer transações usando o seu sistema, as pessoas seriam livres para escolher se e quando usar instituições financeiras privadas que oferecem intermediação de risco entre poupadores e tomadores de empréstimo. Mesmo nesses casos, seu dinheiro continuará residindo em perfeita segurança no livro razão contábil do banco central.
A irmandade criptográfica me acusará de propor um banco central Big Brother que vê e controla cada transação que fazemos. Deixando de lado a hipocrisia deles — essa é a mesma galera que exigiu que o banco central oferecesse resgate imediato aos seus banqueiros do Vale do Silício —, é preciso mencionar que o Tesouro e outras autoridades estatais já têm acesso a cada transação nossa. A privacidade poderia ser melhor salvaguardada se as transações fossem concentradas no livro razão do banco central sob a supervisão de algo como um “Júri de Supervisão Monetária”, composto de cidadãos selecionados aleatoriamente e especialistas de uma ampla gama de profissões.
O sistema bancário que tratamos como inquestionável é, na realidade, incorrigível. Esta é a má notícia. Mas não precisamos mais depender de nenhuma rede de bancos privados, rentistas e socialmente desestabilizadores, pelo menos não da forma que temos até agora. Chegou a hora de explodir esse sistema bancário irrecuperável, que entrega para os proprietários e acionistas o que extrai às expensas da maioria.
Os mineradores de carvão descobriram do modo mais difícil que a sociedade não lhes deve um subsídio permanente para detonar o planeta. Chegou a hora dos banqueiros aprenderem essa mesma lição.