Estudo sobre a desigualdade alimentar contemporânea. A comida saudável é reservada aos ricos. Aos pobres, fome ou ultraprocessados. Viagem pela história da nutrição – do Paleolítico à pós-modernidade – ajuda a explicar os porquês
OUTRASPALAVRAS
por Patrícia Aguirre Publicado nos OUTRASPALAVRAS em 20/06/2024

Por Patrícia Aguirre, no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues
Nos últimos anos, a discussão sobre o que comemos voltou no contexto da expansão de diferentes subculturas alimentares (veganas, ketos, ayurvédicas, etc.), do crescimento dos movimentos ambientalistas e do aumento de doenças associadas à alimentação.
Neste artigo analisaremos o sistema alimentar sob uma perspectiva sócio-histórica, como um sistema aberto, ou seja, com trocas infinitas com seu entorno — como os organismos vivos. Pela sua complexidade, para abordá-la precisaremos recorrer às contribuições de múltiplas ciências — ecologia, nutrição, antropologia, medicina, economia, etc. — que nos autorizem a relacionar as partes analiticamente separadas, apontando as suas transformações no tempo e no espaço. Delinearemos em linhas gerais a sinergia entre o meio ambiente, a tecnologia extrativista e a organização social (principalmente o sistema econômico-político), que afeta a alimentação e a culinária (com sua construção social de gostos e corpos) e, embora a alimentação seja um fator pré-patogênico por excelência, condiciona fortemente a forma como a população adoece e morre1 .
O corpo da espécie
Se procurarmos no passado exemplos da referida relação, não podemos deixar de mencionar as glaciações do Holoceno e o desenvolvimento de culturas de caça e coleta com tecnologias de extração extremamente eficazes, principalmente usando ferramentas de pedra – que dão o nome a essa época. Cestos, bolsas, varas, recipientes de cabaças, fibras e folhas, juntamente com fogões (verdadeiros sistemas de cocção, porque não só assavam, mas grelhavam, ferviam e picaneavam) dão conta da variedade de preparações destinadas a transformar uma grande diversidade de plantas e produtos de origem animal em comida, o que ajudou diversas populações em ambientes muito diferentes a terem uma vida boa.
Poderíamos voltar ainda mais atrás e ver a importância da alimentação no próprio processo de nos tornarmos humanos; então veríamos que as paleoespécies que antecederam o nosso gênero, utilizando ferramentas como outros primatas2, conseguiram ter uma dieta baseada em vegetais, acessando a carne de forma irregular. Há 2,5 milhões de anos, observamos em ossos fósseis um traço crescente de zinco (o que significa aumento na ingestão de carne) e também modificações anatômicas (cérebro maior, intestino mais rápidos, etc.) que falam de uma mudança na alimentação (onívora) que vai além modificações genéticas e epigenéticas que impulsionam e são impulsionadas por grandes mudanças metabólicas e comportamentais. Somos uma espécie que passou de presa a predador através de nossas próprias criações. Sem garras ou caninos poderosos, tivemos que nos unir, melhorar nossa comunicação e aperfeiçoar ferramentas para obtermos carne em conjunto. Mais do que um necrófago, um caçador ou um coletor, a espécie humana era uma espécie oportunista que usava o que podia para aumentar sua ingestão, e a primeira estratégia era a diversificação e a flexibilidade. Ferramentas de pau, chifre e pedra com especialização crescente indicam a modificação do comportamento comensal. Com anatomia de presa deve ter sido muito difícil atuar como predador, por isso era necessária organização social para obter carne. A dinâmica com aquele ambiente e as relações com aquelas espécies naqueles tempos distantes ainda marcam nossos corpos. Ainda hoje, quando o ritmo rápido da mudança cultural deixou para trás a lenta evolução biológica e o nosso ambiente não é mais uma savana mas a cultura da cidade, estamos mais preparados para a escassez do que para a abundância de alimentos. Resistência à insulina, metabolismo da gordura, estresse prolongado, intolerância ao glúten ou à lactose etc. São características evolutivas que respondem ao nosso passado como espécie onívora que se adaptou a diferentes ambientes (da savana africana às pastagens americanas ou às selvas asiáticas). A tecnologia extrativa necessária para atender às demandas metabólicas nos posicionou como apenas mais um predador, mas para isso foi necessário substituir as pequenas presas e unhas planas da espécie homo3 .
Há cerca de 50 mil anos, o homo sapiens anatomicamente moderno, que vivia em bandos de caçadores-coletores, já havia colonizado todos os ecossistemas do planeta, com exceção da Antártida. Seus corpos, sua alimentação e um pouco de sua vida social podem ser reconstruídos a partir de evidências arqueológicas, com algumas referências etnográficas dos poucos grupos que ainda não foram exterminados pelas sociedades atuais, uma vez que toda a expansão desde as primeiras sociedades agrícolas até as atuais sociedades industrializadas foi realizadas à custa dos seus territórios, da sua cultura e das suas vidas.
Nos bandos de caçadores-coletores, atuais e passados, a chave para a sobrevivência é a organização social e a obtenção de alimentos proporciona um eixo poderoso para a ação coletiva. Comer está em primeiro lugar e extrair o alimento não é fácil em nenhum ambiente, por isso todos (com suas diferentes possibilidades e habilidades) colaboraram para provê-la com seu trabalho diário. Os bandos — embora formadas por vários grupos familiares — compartilhavam um único fogão, o que demonstra reciprocidade no consumo. Embora a coleta de hortaliças fosse a base da alimentação, a carne tornou-se um bem social, pois a caça, por ser difícil e perigosa, era coletiva e promovia a reciprocidade como forma de distribuição, reduzindo o risco de dependência de recursos móveis e atividades penosas. Quando há, há para todos. Quando não há, não há para ninguém.
A dieta média dos nossos antepassados paleolíticos era nutricionalmente adequada. Mas é preciso falar de dietas — no plural —, pois os diferentes bandos, em ambientes diferentes e com tecnologia e organização diferentes, comiam alimentos diferentes que organizavam em diferentes tipos de preparações, em que a criatividade humana transformaria em diferentes refeições. Viver nos trópicos não é o mesmo que viver num glaciar, por isso esta síntese compacta generaliza-se num mundo de particularidades. No entanto, existe uma característica comum a todos estes regimes: as refeições são sazonais, diversificadas e frugais. Também magras (animais selvagens correm para salvar suas vidas, então sua carne tinha 30% menos gordura do que a de seus descendentes domesticados). Exceto em ambientes marítimos, consumia-se pouco sal e, em geral, pouco álcool (proveniente da fermentação de frutas e grãos nativos), poucos carboidratos (tubérculos e grãos silvestres são sazonais), muitas fibras (de vegetais e frutas naturais), poucos açúcares (mel e frutas da estação) e nada de leite, nem açúcares ou óleos refinados. Acrescentavam-se ovos, frutas secas e insetos, quando o ambiente permitia. Uma grande variedade de espécies caiu nas cozinhas dos caçadores-coletores, resultando num regime caracterizado pela diversidade. Os efeitos desse tipo de dieta ficaram marcados nos ossos fósseis, dos quais se inferem corpos altos, magros, com boa saúde nas curtas vidas (30 anos para os homens e 27 para as mulheres, o que comprova uma vez mais os riscos da maternidade).