Quinta, 6 de março de 2014
Por Slavoj Žižek.*
Em dezembro
de 2013 visitei Julian Assange na embaixada equatoriana localizada logo
atrás da loja Harrods em Londres. Foi uma experiência um tanto
deprimente, apesar da gentileza do pessoal da embaixada. A embaixada é
um apartamento de seis cômodos sem jardim anexo, de forma que Assange
não pode nem dar uma andada diária ao ar livre. Ele também não pode
pisar para fora do apartamento, ao corredor principal da casa –
policiais esperam por ele lá. Algo como uma dúzia deles estão o tempo
todo em torno da casa e em alguns dos prédios circundantes, um deles
inclusive debaixo de uma pequena janela de banheiro que dá para o jardim
dos fundos, caso Assange tente escapar por aquele buraco na parede. O
apartamento é grampeado de cima a baixo, sua ligação de internet é suspeitosamente lenta… então
como assim o Estado britânico decidiu empregar em torno de 50 pessoas
em tempo integral para vigiar Assange e controlá-lo sob o pretexto legal
de que ele se recusa a ir à Suécia para ser questionado sobre uma má
conduta sexual leve (não há acusações legais contra ele!)? É tentador se
tornar um thatcherita e perguntar: onde está a política de austeridade aqui?
Se um ninguém como eu fosse procurado pela polícia sueca para uma
interrogação semelhante o Reino Unido também empregaria 50 pessoas para
me vigiar? A pergunta séria está aqui: de onde brota tal desejo
ridiculamente excessivo de vingança? O que Assange, seus colegas e
fontes denunciantes fizeram para merecer isso?
Jacques
Lacan propôs como axioma da ética da psicanálise: “Não cedas de teu
desejo”. Não seria esse axioma uma designação precisa dos atos dos
denunciantes? A despeito de todos os riscos envolvidos na sua atividade,
eles não estão dispostos a ceder – de que? Isso nos traz à noção de
evento: Assange e seus colaboradores realizaram um verdadeiro e
autêntico evento político – com isso, pode-se facilmente compreender a
reação violenta das autoridades. Assange e seus colegas são
frequentemente acusados de traidores, mas são algo muito pior (aos olhos
das autoridades) – para citar Alenka Zupančič:
“Mesmo
se Snowden vendesse suas informações discretamente a outro serviço de
inteligência, esse ato ainda contaria como parte dos ‘jogos patrióticos,
e se necessário ele seria liquidado como um ‘traidor’. No entanto, no
caso de Snowden, estamos lidando com algo inteiramente diferente.
Estamos lidando com um gesto que questiona a própria lógica, o próprio status quo,
que por um bom tempo vem servindo de único fundamento para toda a
(não)política ‘ocidental’. Com um gesto que, digamos, põe tudo a perder,
sem nenhuma consideração por lucro e sem seus próprios interesses em
jogo: assume-se o risco porque baseia-se na conclusão de que o que está
acontecendo é simplesmente errado. Snowden não propôs nenhuma
alternativa. Snowden, ou melhor, a lógica de seu gesto, assim como,
digamos, o gesto de Bradley Manning – é a alternativa.”
Essa
descoberta fundamental do WikiLeaks está lindamente sintetizada na
auto-designação irônica de Assange como um “espião para o povo”: “espiar
para o povo” não é uma negação direta da espionagem (o que seria antes
agir como um agente duplo, vendendo nossos segredos para o inimigo) mas
sua auto-negação, isto é, ele mina o próprio princípio universal da
espionagem, o principio do sigilo, já que seu objetivo é tornar segredos
públicos. Funciona portanto de forma semelhante à forma pela qual a
“ditadura do proletariado” marxiana deveria ter funcionado (mas
raramente o fez, é claro): como uma auto-negação iminente do próprio
princípio de ditadura. Àqueles que continuam pintando o espantalho do
comunismo devemos responder: o que o WikiLeaks está fazendo é a prática
do comunismo. O WikiLeaks simplesmente realiza o bem comum na
informação.