Segunda, 14 de março de 2016
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
Como uma offshore da Odebrecht investigada na Lava Jato
participou do projeto que levou a remoções violentas, segregação social e
enriquecimento da elite na capital angolana
Há alguns meses o nome Osel Angola apareceu em meio às investigações
da Lava Jato. Segundo os investigadores, a conta da empresa no Citibank
em Nova York foi usada para transferir US$ 6,3 milhões em transações que acabaram beneficiando os ex-diretores da Petrobras Paulo Roberto e Renato Duque, numa operação de lavagem de dinheiro.
A Odebrecht Serviços no Exterior (Osel), com sede nas ilhas Cayman, é uma das muitas offshores
do grupo empresarial. Manteve um escritório de representação em Angola
entre 1985 e 2006, segundo a assessoria de imprensa do grupo, quando
executou um único projeto: a urbanização da parte sul de Luanda. “Eu sei
que é uma empresa do grupo Odebrecht e que assinou o contrato por ser
uma empresa da organização, mas como se executou esse projeto em Angola e
como foi essa relação não sei dizer pro senhor”, afirmou o
superintendente da Odebrecht, Antônio Carlos Dahia Blando, em depoimento
à Justiça Federal, em Curitiba.
Se na direção atual da Odebrecht em Angola a lembrança é parca, nas
ruas do bairro das Gaiolas, uma comunidade que resistiu na área da
monumental Talatona – como Luanda Sul é hoje conhecida –, a memória
ainda é fresca. O difícil é conseguir ouvi-la em meio às ruas de terra,
casas humildes e casarões coloridos, por causa do receio dos moradores.
“Vivemos aí num país de medo. A permanência do poder já é bastante tempo
e as pessoas reclamam. Então, quando você diz alguma coisa que não é de
agrado do sistema, vão falar, ‘esse homem, onde que ele vive?’ Para
levantar quem eu sou não custa nada”, justifica um homem ao negar a
entrevista. O governo de José Eduardo dos Santos, principal cliente da
Odebrecht, já dura 36 anos.
“Fica seguro”, responde outro. “Às vezes também é bom que o mundo saiba que existimos.”
Crianças no bairro das Gaiolas. Ao fundo, prédios de
Luanda Sul (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)
Nasce Luanda Sul
O projeto Luanda Sul foi pioneiro na reformulação urbana da capital,
um processo marcado por expulsões forçadas e massivas e violências
sistemáticas contra a população pobre e já traumatizada por duas décadas
de guerra civil.
Tudo começou em 1994, quando a Odebrecht ainda engatinhava em Angola.
A celebrada construção da hidrelétrica de Capanda, com financiamento
brasileiro e russo, e a operação da primeira mina de diamantes haviam
sido suspensas depois de serem invadidas pelas forças rebeldes da Unita,
que disputavam o território com o MPLA, partido que está até hoje no
poder.
Desenvolver a cidade de Luanda foi uma nova aposta da Odebrecht na
vitória do MPLA. Durante a guerra civil, a capital viu uma explosão na
sua população. Os que fugiam dos violentos combates no interior ocupavam
terrenos vazios, eram acolhidos por moradores mais antigos ou
camponeses que tinham lavras nos arredores da cidade. De 500 mil
habitantes em 1975, a população mais que decuplicou, chegando a cerca de
7 milhões atualmente.
Em 1992, uma nova Lei de Terras determinou que toda terra pertence ao
Estado, que pode revogar o direito de uso dos moradores para fins de
“utilidade pública”. Pouco depois a guerra se acirrou; no final dos anos
90, aumentaram as ocupações de áreas pouco habitadas, como Luanda Sul.
Aos olhos do governo do MPLA, essas ocupações eram ilegais – e seriam
tratadas como tal.
Para sanar o problema, em 2 de junho de 1994 o governo provincial
(estadual) de Luanda assinou com a Odebrecht Serviços no Exterior (Osel)
um contrato para o “Desenvolvimento Urbano Autofinanciado” da capital,
visando “inverter a tendência de ocupação desordenada e melhorar as
condições urbanas”. Entre os objetivos estava “evitar as ocupações
ilegais de terrenos, oferecendo alternativas planeadas e minimamente
infraestruturadas”, de acordo com o decreto publicado no Diário da República.
A Odebrecht construiu infraestrutura urbana para o bairro de 1,6 mil
hectares (água, luz, esgoto, avenidas) e recebeu em troca a cessão de
direito de uso de terrenos, podendo até mesmo vendê-los. Foi a primeira
parceria público-privada adotada no país, que na época era socialista.
Com transferência de tecnologia da Odebrecht,
a empreiteira ajudou ainda a formatar a empresa de capital misto Edurb –
Empresa de Desenvolvimento Urbano –, encarregada de administrar o
território, uma sociedade do governo provincial de Luanda com a
construtora Prado Valladares, do engenheiro Lourenço Prado
Valladares, que chegara a Angola poucos anos antes a convite da
Odebrecht.
Avenida em Talatona, como é conhecido o bairro urbanizado de Luanda Sul (foto: Ampe Rogerio/Rede Angola)
Por e-mail (confira aqui), Lourenço disse à Pública
que a Osel mantinha um gestor no projeto, atuando junto com a Edurb até
a conclusão do contrato, em 2011. Já o plano estratégico, partiu da sua
empresa. “A Prado Valladares, em 1994, após apresentar ao governo de
Luanda o Plano Estratégico para infraestruturação da expansão sul da
cidade em questão, com seu respectivo sistema de governança, foi
convidada para associar-se ao governo”, escreveu. “À Prado Valladares
cabia conceber o Master Plan com os modelos de gestão e
realização das respectivas infraestruturas. Com isso, pode-se dizer que a
Edurb nasceu da concessão de ativos e de tecnologias de desenvolvimento
urbano para atuar como elo entre o setor público e setor privado.”
No bairro das Gaiolas
Com o intuito de permitir a urbanização do sul de Luanda, a Edurb
buscou “retomar” os espaços ocupados. Para ouvir essa história, a Pública
esteve com André Augusto, vice-coordenador da ONG SOS Habitat, no
bairro das Gaiolas, numa tarde seca de setembro, época do “cacimbo”, a
estiagem.
As ruas de terra e as casas envelhecidas contrastam com os prédios
envidraçados, que sintetizam o que é o vistoso bairro de Talatona,
separado apenas por um muro. “Aqui não tem asfalto porque é zona do
povo. O asfalto é só pra zona onde está o homem do governo, ou o homem
que tem colaboração com o governo”, diz André ao caminhar pelas ruas da
comunidade. A SOS Habitat foi formada em 2001 por vítimas de remoções
como ele e é até hoje uma das mais atuantes (e perseguidas) ONGs
angolanas. Com sua camisa velha, mas aprumada, para o dia de visitas a
vítimas de demolições que não vê há muitos anos, ele explica que no fim
da guerra, entre os anos 2000 e 2002, muitos moradores se instalaram no
bairro das Gaiolas.
Criança no bairro das Gaiolas
(Foto: Eliza Capai/Agência Pública)
É essa a história de Adão Miguel Oliveira, de 53 anos. Ele comprou
uma parcela das lavras onde antes as “mamas” locais plantavam mandiocais
e se instalou com a família em 2001, um ano antes do fim do conflito.
“A Edurb começou a vir aqui lá pra 2003, mas lá também não foi fácil,
porque eles vinham na altura, partiam as casas, quer dizer, para
permanecer aqui não foi fácil”, conta Adão. “Eles diziam que é uma
reserva fundiária do Estado, começaram a vir aqui, a dizer que ‘não,
vocês não têm direito de permanecer e têm que sair’. Não ofereceram
nada. Eles só falaram que vão nos tirar daqui.”
André Augusto conta que o bairro foi alvo de repetidas demolições. “A
Edurb demolia as casas da população para dar espaço às obras da
Odebrecht. As pessoas levantavam umas paredes novamente, aí partiam
novamente. Isto aconteceu entre 2004 a 2007. Foi em 2007 que eles
pararam completamente de partir, de perseguir as pessoas”, diz ele.
Essas demolições faziam parte de uma onda de expulsões massivas que
atingiram também o centro da cidade e foram denunciadas em dois
relatórios contundentes da Anistia Internacional e da Human Rights Watch
em 2007. De acordo com a Human Rights Watch, nos bairros das Gaiolas e
Talatona (um antigo bairro popular com o mesmo nome pelo qual Luanda Sul
é hoje conhecido), cerca de 2.610 famílias estavam em risco de perder
suas casas. Na comunidade de Talatona, a ONG registrou durante sua
pesquisa 14 casas demolidas.
Assim como em outros 16 bairros de Luanda, as demolições eram feitas
sem que se apurasse se os moradores tinham ou não direito sobre a terra e
“envolveram frequentemente intimidação, bem como violência e destruição
desnecessárias, que originaram por vezes reações de confronto das
pessoas que perderam as suas casas e os seus bens”, diz o relatório. As
vítimas não recebiam informações sobre o motivo, a data do despejo ou o
local de reassentamento. Eram apanhadas pelo que a ONG descreve como
“despejos surpresa traumatizantes”, quando se deparavam com as bulldozers do governo e os caminhões que as levariam para longe dali.
Um documento da IFC
– International Finance Corporation, braço do Banco Mundial que
financia a iniciativa privada – afirma que, entre 1995 e 2005, 2 mil
famílias foram removidas de Luanda Sul pela Edurb. Conforme o documento,
90% dos moradores eram “considerados pelo governo de Angola e pela
Edurb como – tecnicamente ilegais – colonos informais, tendo ocupado
Luanda Sul depois de a terra ter sido declarada fora do alcance para
moradia”. Em 2005 a IFC deu um empréstimo de US$ 10 milhões para a
Odebrecht Serviços no Exterior (Osel) fazer infraestruturas no projeto.
Lourenço Prado Valladares nega que tenha havido demolições. Ele diz
que a região foi escolhida por “ser área totalmente desabitada, pelo
fato de o terreno ser anteriormente utilizado para treinamento e
exercícios militares e pequenas lavras”, e argumenta que os moradores
vieram depois da construção das infraestruturas, principalmente da
provisão de água. “Ocorreram pressões de populares para invasões nas
proximidades destas infraestruturas com construções toscas utilizando-se
chapas, plásticos, papelões etc.”, escreveu. Assim, conclui: “É
importante que se diga que não houve realojamentos nem demolições de
casas em Talatona, e sim um reassentamento nos bairros próximos a
Talatona, denominados na época de Sapu e M’Bonde Chape. As lavras e
pequenas benfeitorias rurais, preexistentes, foram devidamente
indenizadas”. No total, foram adequadamente reassentadas cerca de 3.300
famílias, diz ele. O arquiteto enviou um arquivo mostrando o fluxo de
trabalhos do projeto, que pode ser baixado aqui.
Chamem o brigadeiro
Na visão dos moradores do bairro das Gaiolas, a história é outra.
Para eles, se a Edurb não conseguiu arrancá-los dali, isso se deve em
parte a um senhor cujo sorriso não combina com o olhar sério e
desconfiado. Brigadeiro reformado com boas relações no governo, Augusto
Pedro Simão guarda na sua casa – uma das maiores do bairro – um enorme
sofá de madeira entalhada, da época colonial, seu espólio pessoal.
Augusto Pedro Simão, o Sr. Ringo, na sua casa no bair-
ro das Gaiolas (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)
Quando os moradores se viram acossados pela Edurb, convidaram o Sr.
Ringo, como é conhecido, a se juntar à comunidade. Ele foi morar lá em
2005, quando a briga já estava conflagrada, e logo se tornou presidente
da associação de moradores. Era, além de militar, um homem com
instrução, que sabia ao menos ler. “Ali já não houve conversações
amenas, já foi em termos de força, essa coisa toda, inclusive houve
intervenção de ordem pública para repor a ordem”, lembra. Até a sua casa
chegou a ser alvejada pelos tratores. “A Edurb veio à noite, partiram
uma casa. Pensaram que fosse minha casa, como eu era o responsável [pela
associação de moradores], foram partir, mas era de outra pessoa.”
Naquela altura, diz ele, “não havia negociações ou indenização”: “A
única coisa que houve foi a título de ludibriar-nos, posso dizer assim.
Nos sugeriram que conseguíssemos localizar um outro espaço. Só que lá
encontramos uma situação caricata: já lá havia casas que tinham sido
demolidas”, diz o Sr. Ringo. Ele refere-se ao Mbonde Chapé, área
designada pela Edurb para reassentamento. Segundo a Human Rights Watch,
também ali os moradores originais foram expulsos antes que o terreno
fosse urbanizado pela Odebrecht. O relatório estima que, em 2006,
aproximadamente 500 terrenos tivessem sido “ilegalmente tomados” ou
estivessem sob ameaça. “Em Mbonde Chapé, vários terrenos foram
despejados para a construção de uma área de realojamento”, diz o texto.
Moradores despejados contaram aos pesquisadores que suas casas foram
numeradas sem nenhuma explicação e demolidas em poucos dias. Além disso,
as indenizações foram distribuídas de maneira desigual, sem avaliação
do tamanho das casas ou benfeitorias, e sem nenhuma negociação. Uma
camponesa que morava ali desde 1975 relatou: “Ficamos à espera. Quando
ele [o representante do governo] chamou, rasgou um papel ao meio e pediu
para assinar. Eu não quis assinar sem saber o valor. Era 30 mil kuanza
[aproximadamente US$ 375]. Não aceitei. Quando fui lá para pagarem, já
tinham destruído a minha lavra”.
No caso das Gaiolas, a SOS Habitat interveio e ajudou a coordenar
protestos diante do escritório da Edurb e do governo provincial. A
repercussão internacional dos relatórios da HRW e Anistia também ajudou.
Em 2007, o poder público foi finalmente dissuadido, segundo o Sr.
Ringo. “O nosso grupo mesmo era de oficiais de alta patente, e não era
bom também que eles fizessem isso [demolir o bairro]. Havia alguns
oficiais que já haviam feito algum serviço para a ordenação, então não
era bom nos tirar…”, diz.
André Augusto, vice-coordenador da SOS Habitat (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)
“Não existe outra área onde outra empresa tenha feito tanto como
aqui”, diz André Augusto. “Só que não temos informação de como as coisas
funcionam porque aqui a informação é uma coisa muito fechada.” Ele faz
questão de ressaltar que o conflito dos moradores foi com o governo
provincial, não com a empreiteira. “Mas a nossa preocupação é que a
Odebrecht tem atuado num comportamento omissionista. Ela acompanha os
acontecimentos, mas finge que não aconteceu nada, e aí pega a obra,
ganha o dinheiro e vai embora.”
Talatona é uma mina de ouro
Hoje, Luanda Sul não é nem sombra do que fez o projeto receber
comendas internacionais como o Prêmio Dubai 2000, na Conferência das
Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (UNCHS) e o Prêmio Embaixador
Estocolmo 2002, no Fórum sobre Cidades Sustentáveis. O bairro não
“resolveu as imensas necessidades de comunidades de baixa renda e
deslocadas pela guerra”, como prometido.
Nas suas ruas, diferentemente do resto da cidade, quase não se vê gente
– muito menos pobres. Com avenidas enormes de mão única, muitas delas
circulares, só se pode andar de carro, já que o transporte público é
inexistente; chegar de um ponto a outro demora um exagero. “A gente
brinca que Talatona foi projetada por um estagiário”, repetiu algumas
vezes um executivo da Odebrecht à reportagem. Prédios altos e
envidraçados dividem espaço com largos condomínios fechados, com
playgrounds, quadras de esporte, piscina e grama verde irrigada mesmo em
plena época do cacimbo. Dentro do Bellas Shopping – o primeiro do país,
construído pela Odebrecht – ou dos restaurantes, veem-se muito mais
brancos do que em qualquer outro lugar de Luanda. Ali é o lar dos
brancos, estrangeiros e poderosos de Angola.
A arquiteta portuguesa Sílvia Leiria Viegas, que durante seis anos estudou a urbanização de Luanda para sua tese de doutorado, Luanda, Cidade (im)previsível, pela
Universidade de Lisboa, aponta uma divisão clara: a população pobre
“não cabe” no conceito de cidade que está sendo construído em Luanda. “A
ideia é: ‘queremos a cidade dos mais ricos, vamos fazê-la à imagem dos
que têm mais dinheiro. Só quem vai a Luanda é que consegue entender a
dimensão dos despejos e da periferização da pobreza, ou seja, os pobres
estão para ser expulsos para o mais longe possível.”
Usando os terrenos concedidos pelo governo, a Odebrecht tornou-se a
maior operadora do mercado imobiliário local, no qual uma casa em um
condomínio fechado pode chegar a mais de US$ 4 milhões. Eduardo Mattos,
diretor de Contrato da Odebrecht Infraestrutura, afirmou que a receita
com empreendimentos imobiliários em Talatona foi de cerca de US$ 1
bilhão na última década. “Nós trouxemos para cá o conceito de
condomínio-clube, que não existia. Todos esses nossos empreendimentos
são condomínios fechados, com segurança, toda parte de instalações,
geradores de energia, reserva de água etc., sempre com foco no público
de alta renda ou até um público voltado às petrolíferas”, diz Mattos.
Alguns desses empreendimentos renderam divisas para pessoas do
círculo do presidente José Eduardo dos Santos. A Odebrecht construiu
para os funcionários da Chevron o condomínio Monte Belo, cujo valor
imobiliário ultrapassa US$ 250 milhões, em parceria com a Sakus –
Empreendimentos e Participações S.A. Segundo o jornalista investigativo angolano Rafael Marques, a Sakus pertence ao vice-presidente angolano, Manuel Vicente, e é administrada pelo seu enteado.
Enquanto construiu o condomínio Kizomba para funcionários da petroleira Esso, entre 2002 e 2006,
a Odebrecht manteve contrato com a empresa de segurança Teleservice, de
propriedade de alguns dos mais influentes generais do país – entre eles
António dos Santos França N’Dalu, que foi duas vezes vice-ministro da
Defesa e é tratado como “general dos generais”, um velho conhecido da
empreiteira (leia mais aqui).
Segundo Mattos, as casas no condomínio com quadras poliesportivas,
piscina e pista de corrida podem chegar até US$ 4 milhões. Outras
petroleiras como BP e Maisk têm casas ali, assim como a própria
Odebrecht; é onde mora o seu diretor-superintendente.
“As pessoas que conseguiram casas nos condomínios de Luanda Sul são
as que trabalham para os bancos, para os ministérios. A doação de
habitações tornou-se um importante instrumento de cooptação política”,
explica António Tomas, professor da Universidade de Stellenbosch, na
África do Sul, e autor de um livro sobre o desenvolvimento urbano de
Luanda. Segundo ele, esses condomínios acabaram virando um mecanismo de
transferência de dinheiro do Estado para a elite angolana. “As casas em
Luanda tornaram-se uma fórmula de enriquecimento. Muitas pessoas que
eram membros do partido ou trabalhavam com o governo tinham residências
deixadas pelos portugueses no centro da cidade. Quando a Odebrecht
começou a construir Talatona e começaram a aparecer esses
empreendimentos, muitas ganharam casas do Estado. Então colocaram as
suas casas para alugar a preços altamente exorbitantes. As empresas que
alugavam esperavam que esse favor abrisse portas”.
O jornalista Rafael Marques ilustra a prática com uma história
pessoal. Um dia, estava em um avião e um executivo do ramo petrolífero
confessou-lhe: “Estava sentado ao meu lado e embriagou-se; e disse que
ele não conseguia perceber por que o apartamento em que ele vivia
sozinho, de dois quartos, custava US$ 60 mil por mês. E a multinacional
que alugou o seu apartamento, uma multinacional europeia, já tinha pago
com dez anos de avanço. Esta multinacional não precisava pagar aos altos
funcionários sem justificativa. Podia legalmente apresentar nas contas
para auditoria que tinha alugado um apartamento a US$ 60 mil, porque o
setor imobiliário é muito caro.”
Esse esquema permitiu, por um lado, o enriquecimento de muitos dos
membros do governo e, por outro, tornou-se uma maneira de dar legalidade
à corrupção. “Quando uma multinacional aluga uma casa a este valor,
está não só a legitimar pagamentos altamente corruptos, mas também a
legitimar o branqueamento dos capitais [lavagem de dinheiro], porque
depois este indivíduo que pertence ao poder pode retirar seu dinheiro
pro exterior com documentos devidamente verificados de que presta um
serviço a uma multinacional”, analisa Rafael.
“Eu conheço muita gente que fez a vida através disso”, completa o
professor António Tomas. “Mandaram seus filhos para estudar no exterior,
fizeram investimentos… Isso é completamente corrupto, mas é uma
corrupção altamente formalizada”.
Outras expulsões
Depois de ter desenvolvido Luanda Sul, a Odebrecht construiu boa parte da Luanda que se vê hoje: a Estrada do Samba, as Vias Expressas, a Estrada do Golfe, a Autoestrada Periférica, a ampliação do Aeroporto 4 de Fevereiro. Alguns desses projetos levaram a mais remoções, como foi o caso da Estrada do Samba; outros ainda vão gerar, como o BRT, Bus Rapid Transport, com 53 quilômetros de extensão, que vai expulsar 7 mil famílias, segundo afirmou o ministro da Construção ao site Rede Angola.
No entanto, o processo mais longo e chocante é a destruição da Chicala, um musseque que desde a época da independência ocupava uma bonita parte da baía de Luanda. As demolições ocorrem há vários anos. Ali, ex-moradores e crianças montam barracas sobre os escombros para vender comida durante o dia. No seu lugar prevê-se a construção de hotéis de luxo e um calçadão com shopping a céu aberto e áreas verdes em frente ao mar.
A Odebrecht participa do projeto com as pontes sobre as valas e ponte do Km 7 – financiada pelo BNDES e concluída em 2012 – e obras de aterro hidráulico, proteção costeira, pavimentação, iluminação pública para Nova Marginal, que ainda não começaram. Mas a construção da Nova Marginal já foi usada como justificativa para a destruição do bairro de pescadores de Areia Branca, em 2013, na zona da Chicala, em uma bonita península diante do Mausoléu de Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola livre.
Mais uma vez, os moradores foram retirados sem nenhum aviso prévio e não receberam indenizações ou uma alternativa sequer, num processo que André Augusto classifica como o mais grave da história da SOS Habitat. “Integrantes da Casa Militar, da Polícia Militar e da administração de Luanda cercaram a comunidade por quatro dias. Não conseguiam sair nem entrar. As pessoas acabaram por perder todos os haveres que tinham no local, estoques de alimento, e começaram a ser perseguidas pela polícia. Esse sofrimento durou quase um mês. A situação abrandou, as pessoas encontraram um lugar por cima das plataformas de drenagem e até hoje estão morando ali, em casas de chapas de zinco”, diz ele. A violência é retratada no depoimento de Rosalina Kassoma, reproduzido neste programa da Rádio Eclésia e no vídeo da SOS Habitat:
Remoção Luanda from Agência Pública on Vimeo.
Até hoje a estrada não foi construída. No lugar do bairro, há alguns barracões militares e um grande vazio de areias brancas.
A Odebrecht participou também da outra face da reformulação de Luanda – e das expulsões massivas: a construção de um gigantesco projeto de moradia popular, o Zango, situado a 40 quilômetros do centro de Luanda. Dentro do Programa de Realojamento das Populações do governo angolano, iniciado em 2002, construiu 13,3 mil casas e 36,3 mil infraestruturas de água e energia elétrica para as unidades habitacionais – uma parte desse esforço recebeu financiamento de US$ 281 milhões do BNDES (saiba mais aqui). Para lá foram levadas mais de 200 mil pessoas, expulsas de diversos bairros centrais, “que se encontravam em situações precárias de vivência, expostas a situações de risco (encostas, valas etc.) ou em áreas de requalificação urbana”, segundo a assessoria de imprensa da Odebrecht.
Em uma breve visita ao Zango 4 com representantes da Odebrecht, em setembro do ano passado, a Pública ouviu dos moradores que as primeiras casas entregues não possuíam piso nem quintal. Mas esse é apenas um dos problemas. Um vídeo filmado em 2013 pela SOS Habitat mostra a situação precária: as ruas eram de terra, as casas não tinham reboco nem janelas suficientes. Os moradores, revoltados, relatam ter sido despejados ali, dez pessoas em cada casa, sem eletricidade nem água.
Moradoras em meio às demolições no bairro da
Chicala (Foto: Eliza Capai/Agência Pública)
Em entrevista à Pública, Batista Mendonça, coordenador da Comissão de Moradores do Zango 4, diz que, embora o problema de falta de luz tenha sido razoavelmente sanado para os padrões caluandas – “Às vezes temos luz, às vezes a luz vai, mas mais tarde vem”–, a falta de água ainda é um problema recorrente. “A vida antes foi mais fácil porque as pessoas tavam a trabalhar próximo da cidade. Agora aqui no Zango tá muito difícil. As pessoas acordam aqui 4h para chegar na cidade 6h para trabalhar. Muita gente já perdeu o emprego através desse alojamento”, relata. Ele mesmo perdeu seu trabalho no dia 5 de fevereiro de 2012 – e lembra a data com exatidão. Quando chegou ali, não havia nem mesmo vans, ou “candongueiros”, que se aventurassem até o Zango 4: os moradores tinham de ir a pé até outro conjunto habitacional de onde saíam vans para a cidade. Hoje em dia, os candongueiros cobram até 50% a mais se está chovendo.
Durante a entrevista, o calor se mistura com o cheiro do lixo e as moscas interrompem o raciocínio de Batista. Há pilhas e pilhas de lixo ao lado das casas. “Desde 2012 já tinha uma empresa. Essa empresa não conseguiu recolher o lixo até hoje. Tá muito acumulado”, diz ele. Quando as pilhas estão muito altas, a população rateia um galão de gasolina para atear fogo – uma cena presenciada pela reportagem da Pública em diversos bairros pobres da capital angolana.