Do Blog Náufrago da Utopia
Por Celso Lungaretti
Segundo a ONU, um dos principais deveres dos países que se
redemocratizam é apurarem e punirem os crimes praticados pelos agentes
do Estado contra aqueles que resistiam ao arbítrio. Mas, não se poderia
esperar tal atitude de um José Sarney, que atravessara o regime militar
como um mero serviçal parlamentar dos tiranos fardados; de um Fernando
Collor, que começou a carreira política nas hostes governistas e foi
recompensado pela ditadura com sua nomeação para prefeito (biônico) de
Maceió; de um Itamar Franco, que nunca se notabilizou por atos de
coragem; ou de um FHC, contemporizador por natureza.
Do Lula esperávamos muito e obtivemos nada. Em 2007, quando do lançamento do livro Direito à Memória e à Verdade,
um chocante levantamento de assassinatos cometidos pelos capangas da
ditadura e apurados pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do
Ministério da Justiça, o alto comando do Exército, passando por cima do
ministro da Defesa Nelson Jobim, lançou uma nota oficial de repúdio à
iniciativa.
Como se tratava de um ato de flagrante insubmissão e quebra de hierarquia, qualquer presidente cioso de suas responsabilidades como comandante em chefe das Forças Armadas exoneraria de imediato os signatários.
Como se tratava de um ato de flagrante insubmissão e quebra de hierarquia, qualquer presidente cioso de suas responsabilidades como comandante em chefe das Forças Armadas exoneraria de imediato os signatários.
Os ditadores Videla e Bignone no banco dos réus. Lá. |
Lula preferiu capitular vergonhosamente, não só engolindo o sapo como
também determinando aos ministros da Justiça (Tarso Genro) e dos
Direitos Humanos (Paulo Vannuchi) que não tomassem, no âmbito do
Executivo, nenhuma iniciativa contra os antigos torturadores; orientou
ambos a passarem a batata quente adiante, apontando às vítimas do arbítrio e aos defensores dos direitos humanos o caminho dos tribunais. Pilatos explica.
Em abril de 2010, numa das decisões mais aberrantes e vergonhosas de sua
História, o Supremo Tribunal Federal considerou válida a anistia que os
ditadores concederam a si próprios e a seus esbirros em plena vigência
do regime de exceção. A partir de então tornou-se contraproducente
acionar criminalmente os torturadores, pois, chegando ao STF, qualquer
condenação seria anulada.
No final de novembro do mesmo ano, contudo, surgiu uma última e
inesperada chance de virarmos o jogo, quando a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, vinculada à OEA, sentenciou:
"Os crimes de desaparecimento forçado, de execução sumária extrajudicial e de tortura perpetrados sistematicamente pelo Estado para reprimir a Guerrilha do Araguaia são exemplos acabados de crime de lesa-humanidade. Como tal merecem tratamento diferenciado, isto é, seu julgamento não pode ser obstado pelo decurso do tempo, como a prescrição, ou por dispositivos normativos de anistia".
Muito blablablá e nenhum torturador encarcerado. Aqui. |
Lula, oportunisticamente, não tomou decisão nenhuma a este respeito no seu último mês de mandato, legando o abacaxi à Dilma. E esta mandou às urtigas a chance que teve de mandar apurar o extermínio no Araguaia (cerca de 60 guerrilheiros assassinados, quase todos depois de serem capturados com vida), não por iniciativa própria, o que provocaria muita grita da extrema-direita, mas cumprindo a determinação de uma corte internacional.
Ignorou olimpicamente tal sentença e, como contraponto propagandístico, criou uma Comissão da Verdade engana trouxas --cuja atuação, vale lembrar, não respaldaria quando dos inevitáveis choques com os empenhados em perpetuar a mentira, a ponto de duas testemunhas importantes terem sido assassinadas de forma suspeitíssima e ficar tudo por isso mesmo.
Enquanto isto, a Argentina vem sentenciando seus gorilas e respectivos paus mandados desde agosto de 2009 e já emitiu mais de 500 condenações à prisão. Agora, emblematicamente, acaba de punir militares argentinos responsáveis por operações conjuntas com outras ditaduras sul-americanas, no sentido de capturarem e/ou assassinarem militantes de esquerda no exílio.
Caso do nosso Joaquim Pires Cerveira, que sobreviveu ao inferno do DOI-Codi/RJ em 1970 (quando fui seu companheiro de cela), mas a ele retornou, para ser morto no final de 1973, depois de ser aprisionado em Buenos Aires.
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Universindo Dias e Lilian Celiberti: sobreviventes. |
Em território nacional, o episódio mais famoso da Operação Condor foi o chamado sequestro dos uruguaios (o casal Universindo Dias/Lilian Celiberti e seus dois filhos menores) em novembro de 1978. A imprensa brasileira descobriu rapidamente o ocorrido e denunciou, sem, contudo, conseguir evitar que os quatro fossem despachados para o Uruguai. Mas, a repercussão internacional deve ter contribuído para que todos sobrevivessem.
Resumo da opereta: os argentinos se mostraram hombres e nós, poltrões, permitindo que o nosso país continuasse sendo o asilo dos torturadores reformados.