Sexta, 22 de julho de 2011
*Por Roque Pinto
Era uma vez uma fazenda em que os animais eram submetidos a um patrão
egoísta e brutal. Após um levante, estes animais expulsaram o dono do
lugar e instituíram, sob o comando dos porcos Napoleão e Bola de Neve,
um regime que se pretendia solidário e igualitário. Com o passar dos
anos, Napoleão trama um golpe contra Bola de Neve, expulsa-o da fazenda e
instaura uma ditadura tão malévola, corrupta e bestial que alguns
animais anelavam peloAmigos, tempo em que a Granja Solar era tocada pelo
cruel Sr. Jones.
De fato, na obra “A Revolução dos Bichos” (Animal Farm), de George
Orwell, não tardou mais do que seis anos para que o porco Napoleão, que
já ocupava a casa do Sr. Jones, passasse a beber álcool, deturpar e
violar sistematicamente os sete mandamentos do “animalismo”, ocupar a
cama e vestir as roupas do seu ex-dono, andar sobre duas patas e,
explorando à total exaustão os demais animais, negociar a produção da
fazenda com os humanos em benefício próprio.
A tinta de Orwell versa sobre a Revolução Bolchevique de 1917 e sua
degeneração na ditadura de Stálin. É uma fábula que, para além de
retratar de forma alegórica uma circunstância histórica específica,
trata mais abstratamente dos processos de dominação que advêm do poder
formal, independentemente da coloração ideológica que o emoldura. Nesse
sentido, a metáfora orwelliana poderia ser transposta e inspirar o
entendimento de contextos outros, em tempos e espaços diversos daqueles
em fora originalmente concebida. Um desses cenários, em particular,
apresenta similitudes espantosas. Falo do Estado da Bahia, no ano de
2011.
A Bahia, como se sabe, foi governada por quase 30 anos por um grupo
político que comandava orgânica e hegemonicamente praticamente todas as
instâncias formais da vida civil, servindo-se das mesmas táticas de
propaganda, censura, perseguição, privilégios e controle social
modeladas no fascismo italiano, e cujo artífice, mentor e chefe supremo
foi o temido prefeito biônico, governador e senador Antônio Carlos
Magalhães – ou Toninho Malvadeza para os movimentos sociais, sindicatos,
jornalistas, políticos de esquerda e toda a ampla gama de gente que
padeceu sob os cassetetes dos seus comandados.
ACM viveu ainda para, estupefato, amargar uma derrota acachapante nas
urnas, em 2006, com a eleição de Jaques Wagner (PT) para o governo do
Estado, sindicalista ligado à indústria petroquímica. A vitória de
Wagner deu-se, portanto, pela irrevogável vontade popular de dar cabo ao
império carlista e à ingerência dos seus caprichos sobre a coisa
pública. E então fez-se a luz, a grande surpresa das eleições gerais de
2006 no Brasil: o novo, o fim de uma era obscura e autoritária: emerge o
“governo de todos nós”.
Mas não tardou, para desapontamento dos trabalhadores baianos, que o
“governo de todos nós” logo se transformasse no “governo de todos os
nós”: o nó da segurança pública, o nó da saúde, o nó da educação… Triste
Bahia. Pobre educação baiana. Neste exato momento todas as quatro
universidades estaduais se encontram em greve por tempo indeterminado,
num movimento unificado cujos pleitos, comum a todas, são velhos
conhecidos de cada um dos governadores que passaram pelo Palácio de
Ondina: melhoria das condições trabalho, mais recursos para a educação,
respeito aos servidores.
Concretamente, o governo Wagner, a partir de um decreto (12.583) e
uma portaria, re-emitidos em fevereiro, de um só tacão promove a
inanição financeira das instituições, com o estrangulamento das suas
atividades fins, e solapa a autonomia universitária ao transferir para a
tecnocracia do estado uma miríade de resoluções ordinárias que desde
sempre coube às universidades fazê-lo, em função de suas próprias
dinâmicas, tornando as ações de progressão laboral, concurso público,
alocação de recursos para atividades extensionstas e de pesquisa, ou
mesmo a compra de pipetas, luvas e sabão um verdadeiro pesadelo
kafkiano.
No campo da negociação salarial, os acordos que vinham sendo
pacientemente engendrados há mais de um ano foram suspensos
unilateralmente com a chamada “cláusula da mordaça”, que textualmente
vincula a incorporação de direitos trabalhistas ao impedimento dos
docentes de pleitear qualquer demanda salarial até 2015. Sobretudo, as
normativas do governo Wagner representam uma excrescência legal, e no
limite a própria suspensão do Estado de Direito: o dito decreto e seus
apêndices violam frontal e acintosamente a Constituição do Estado da
Bahia, especificamente no seu capítulo XIII, artigo 262, que rege sobre a
autonomia didático-científica, administrativa, de gestão financeira e
patrimonial das suas universidades estaduais.
É notável que o contingenciamento de recursos para a educação
superior se dê num contexto de bonança da economia baiana, com um
aumento de PIB na monta de 7,5% em 2010. Portanto, injustificável sob o
ponto de vista econômico. E mais ainda sob o ponto de vista político e
jurídico, posto que a intervenção do Estado nas universidades, a
subtração evidente da sua autonomia, é um assalto à legalidade e um
retrocesso que é a concretização extemporânea de um velho sonho
carlista: uma Bahia de joelhos, acéfala, obediente às volições imperiais
do seu déspota, esclarecido ou não.
Do Palácio de Ondina à Granja Solar. Desde a primeira eleição de
Jaques Wagner ao presente se tem, curiosamente, o mesmo lapso de tempo
em que se deu, na fábula Orwell, a transformação do militante Napoleão
num tirano incontrolável. Pois que, gradualmente, os mesmos instrumentos
de dominação da repulsiva era ACM são reabilitados aqui e ali pelos
“companheiros de luta” ora ocupantes do Palácio de Ondina: o
contingenciamento de recursos, a propaganda, os privilégios, a recusa da
negociação, o corte de salários, as ameaças, o terror. A peça final
dessa transformação grotesca se deu com o corte de salários dos
professores e a troca da negociação pela propaganda. De fato, o PT da
Bahia tem demonstrado ser um aluno exemplar e vem aplicando
sistematicamente os ensinamentos da escola de terror da era ACM:
Pois agora se sabe que o novo já nasceu velho e não se sabe mais qual
diferença entre ACM e Jaques Wagner. Ambos se igualam no tratamento
dispensado aos amigos, à publicidade e aos trabalhadores do Estado da
Bahia. Triste Bahia. Donde cabem à perfeição as palavras finais da obra
de George Orwell: “mas já se tornara impossível distinguir quem era
homem quem era porco.”
*Roque Pinto – Doutor em antropologia, professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
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