Sábado, 15 de março de 2014
Professor da USP, André
de Carvalho Ramos analisa o projeto de lei que pretende regulamentar o
conceito de terrorismo em resposta às manifestações
Do Zero Hora
André de Carvalho Ramos
* Professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco)
Nos debates internacionais, é possível
definir, grosso modo, o terrorismo como sendo todo ato ilícito realizado
por meio de violência contra bens ou pessoas da população civil,
cometido por indivíduo ou grupo de indivíduos, cujo objetivo é gerar
terror e intimidar determinada população, para coagir um Estado,
organização internacional ou outro grupo social a fazer ou deixar de
fazer algo. Mais do que causar danos materiais e pessoais, o terrorismo
visa a gerar medo e obter a conduta desejada daqueles intimidados.
O século 20 testemunhou múltiplas ações terroristas: elas foram
instrumento para obtenção violenta de mudanças políticas e sociais por
parte de grupos antidemocráticos minoritários, serviram para a defesa de
ditaduras (terrorismo de Estado), bem como foram usadas como reação a
regimes autocráticos e à ocupação colonial. Por isso mesmo, em vários
momentos, não ficou clara a distinção entre o terrorismo e a luta
legítima. A figura lendária de Nelson Mandela também foi rotulada como
"terrorista", pela sua luta contra o apartheid na África do Sul. Vários
Estados até hoje não se cansam de classificar opositores políticos de
"terroristas", para debilitá-los e isolá-los interna ou
internacionalmente. Essa "demonização do inimigo" é o risco óbvio da
amplitude dos termos "terrorismo" e "terrorista", especialmente quando
usado em tipificações penais. Afinal, o Direito Penal é um instrumento
de controle em qualquer sociedade contemporânea, servindo não somente
para reprimir, mas também para intimidar e prevenir condutas. Uma norma
penal que não seja suficientemente específica pode servir para abafar e
reprimir condutas legítimas, criando o receio dos envolvidos de serem
acusados e condenados pela prática de terrorismo pelos órgãos do sistema
de Justiça.
No Brasil, há mais de 25 anos a Constituição prevê o repúdio ao
terrorismo, em seu artigo 4º, inciso VIII, bem como determina que a lei
deve considerar o terrorismo como sendo um crime inafiançável e
insuscetível de graça ou anistia (artigo 5º, inciso XLIII). Atualmente,
há previsão de que a pena por crime de terrorismo deve ser cumprida
inicialmente em regime fechado, e a progressão de regime só ocorrerá
após o cumprimento de dois quintos da pena, se o apenado for primário, e
de três quintos, se reincidente. Por sua vez, redigido no tempo da
ditadura e ainda vigente, o artigo 20 da Lei de Segurança Nacional (Lei
n. 7.170/83) prevê, sem definir, que praticar "atos de terrorismo" é
crime apenado com pena de reclusão de três a 10 anos, com possibilidade
de aumento de pena se houver lesão ou morte. Apesar dos múltiplos usos
do termo na legislação, não avançamos quanto à definição do que vem a
ser "terrorismo" pelo Direito Penal.
Por isso, no bojo dos estudos referentes à imprescindível reforma do
nosso Código Penal, a comissão de especialistas responsável introduziu
um tipo penal denominado "terrorismo", que foi mantido no substitutivo
do Senador Pedro Taques (PDT-MT), relator da matéria no Senado Federal
(PL 236/2012). Pelo projeto de novo Código Penal, o terrorismo consiste
em atos odiosos (homicídios, sequestros, etc.) que têm como finalidade
causar terror na população para: 1) forçar condutas não previstas em lei
a autoridades públicas, nacionais ou estrangeiras, ou pessoas que ajam
em nome delas; 2) obter recursos para a manutenção de organizações
políticas ou grupos armados, civis ou militares, que atuem contra a
ordem constitucional e o Estado Democrático; ou 3) forem motivadas por
preconceito de raça, cor, etnia, religião, nacionalidade, origem,
gênero, sexo, identidade ou orientação sexual, condição de pessoa idosa
ou com deficiência, ou por razões políticas, ideológicas, filosóficas ou
religiosas. Assim, além do ato em si, o terrorismo exige finalidades
antidemocráticas ou preconceituosas. O projeto ainda contém uma cláusula
de exclusão, que visa a evitar a intimidação dos protestos e movimentos
sociais, no seguinte sentido: "Não constitui crime de terrorismo a
conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos sociais
ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e
adequados à sua finalidade".
Há, portanto, uma preocupação do projeto do novo código de se evitar
que o Direito Penal seja utilizado como repressão aos movimentos
sociais, rotulando-os como "inimigos" e os expondo aos abusos de
interpretação das autoridades públicas. Mesmo assim, o projeto foi
objeto de críticas, pois os atos tidos como terroristas já se encontram
previstos na legislação comum (por exemplo, homicídio) e, ainda, a
cláusula contra a criminalização dos movimentos sociais poderia ser alvo
de interpretações restritivas, para restringir indevidamente as
manifestações contra o Poder Público. De qualquer modo, sujeito aos
aperfeiçoamentos que a discussão no Congresso Nacional naturalmente
gera, o projeto do novo Código Penal representa uma análise conjunta do
novo Direito Penal que uma sociedade democrática como a brasileira
deseja. É uma obra necessária, atualizando valores que devem ser
protegidos penalmente e superando o Código Penal atual, que vem do tempo
da ditadura.
Contudo, o que se discute neste início de ano de 2014 é bem distante
de uma análise sistemática do modelo punitivo desejado: o projeto de lei
499/2013 – já sujeito a uma série de emendas – foi colocado na pauta
como reação legislativa ao assassinato do repórter cinegrafista Santiago
Andrade. A redação original do projeto 499 traz um tipo penal aberto,
que criminaliza genericamente o ato de "Provocar ou infundir terror ou
pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à
integridade física, à saúde ou à liberdade de pessoa".
A vagueza e a indeterminação são evidentes: o que seria "pânico
generalizado", ou "infundir terror"? O peso negativo imenso do rótulo de
"terrorista" no século 21, após a tragédia do 11 de setembro, exige
maior especificidade na tipificação penal. Sem contar que as condutas
que atentem contra a vida e o patrimônio já são crimes previstos pelo
nosso Código Penal. Agregar um novo tipo penal aberto, em claro contexto
de resposta conjuntural a um crime, sem a visão sistemática do novo
Direito Penal democrático que queremos, nos remete às chamadas
legislações de pânico, sempre objeto de apropriação demagógica. Esse
tipo penal de "terrorismo" do projeto original 499/13 não vai melhorar a
segurança pública das manifestações e dos eventos que sediaremos em
2014, o preparo dos corpos policiais ou aumentar a inteligência policial
na investigação de delitos. Mas seu efeito simbólico será devastador ao
sugerir o retorno ao tempo em que alguns tratavam as manifestações
sociais como sendo "um caso de polícia".