Segunda, 8 de junho de 2015
Pensei em muitos títulos para as ideias que
exporei em seguida.
Nenhum, todavia, captava integralmente o
sentido de um episódio aparentemente singular, a princípio destinado a
permanecer oculto nas entranhas da instituição judiciária, mas que veio à
superfície provocado pela manifestação de Siro Darlan, desembargador do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e pela reação do Presidente do
mencionado tribunal.
Pode-se tentar entender o que se passou
limitando-se artificialmente o fato à imagem de uma luta – desigual – por poder
no âmbito do tribunal. É possível também empenhar-se em comprimir as margens do
entendimento à figura “autoral” de Siro Darlan e creditar a ação ao propósito
dele de estar ou ficar em evidência. Num e noutro caso o que se tem é tão-só o
superficial, não se toca nas questões de fundo que estão implicadas quer na
trajetória, quer com a personalidade de Siro, menos ainda penetra-se no
contexto político implícito, que transcende as objeções ao modo como o
Judiciário governa a si próprio.
Quando o foco recai sobre a conduta de Siro
Darlan, singularizada ou simplesmente colocada ao lado de tantas outras, pelo
critério da repercussão na comunicação social, ao qual se confere importância
central, a política definitivamente é escanteada.
E escantear a política, ocultando os
conflitos que lhe são inerentes, é próprio das tradições autoritárias. Para
ficar na proximidade temporal, isso remonta a pretensões muito conhecidas de
Carl Schmitt e Francisco Campos: postular uma sociedade “homogênea”, concorde,
sem conflitos e atritos, pois que todos estão irmanados em torno de ideais
comuns.
O dissidente dissente “da sociedade”, ainda
que seja apenas uma corporação, a corporação judiciária, contraria os
princípios do grupo, ofende suas pautas éticas e se transforma em um ser
abominável, um “inimigo” dentro das “nossas fronteiras”, de quem se devem
denunciar as “fraquezas morais” e em relação a quem cabem as iniciativas de
isolar, censurar e punir exemplarmente.
O contágio dos sediciosos é mortal às
pretensões do poder de governar sem dissensões… seu exemplo questionador ( “o
rei está nu”) necessita ser reelaborado discursivamente em termos tais que sua
ação seja vista como atentatória à ordem comunitária. Se for o caso, o
governante deverá apelar, impiedosamente, ao “divide e impera” romano, com o
propósito de romper as redes de solidariedade em torno do sujeito indesejável,
provocar a cizânia no seio do grupo ao qual pertence, estimular a desconfiança
sobre a sua pessoa.
Tudo culmina, ensinam as razões de estado,
desde Maquiavel, com o sacrifício ritual a que Foucault se refere, sacrifício
que nas sociedades pós-industriais contemporâneas opera em dois níveis:
internamente, na esfera da instituição integrada pelo “traidor”, com o emprego
de punições simbólicas e/ou concretas; e no “mundo exterior”. Nesse caso é
funcional o sempre complacente apoio da mídia, dada a convergência contingente
dos interesses.
O que isso oculta? Há algum fio condutor nas
ações de Siro Darlan? Algo, um princípio, a que todas elas possam ser
reconduzidas, critiquem-se ou não os métodos que ele emprega?
Uma correta estratégia analítica, do meu
ponto de vista, passa pela identificação do contexto no qual se insere a
trajetória de Siro. Definir este contexto é um projeto maior que o de relembrar
a biografia dele, mas também inclui recapitular essa biografia.
Siro Darlan torna-se conhecido na década de
90 por lutar pela implementação dos direitos de crianças e adolescentes
vulneráveis, objeto prioritário de várias formas de exclusão/criminalização: da
midiática, operada de modo incansável, cotidianamente, pelas grandes empresas
de comunicação social, à concreta, sob a forma das ações de grupos de
extermínio, com protagonismo inegável das políticas públicas que persistiram (e
persistem, na maior parte do tempo) em tratar as instituições “sócio-educativas”
como presídios juvenis.
Ver as coisas assim importa em circunscrever
o comportamento de Siro ao campo das políticas infanto-juvenis. Nada mais
equivocado.
A luta que protagoniza, simbolizada na
defesa dos direitos de crianças e adolescentes, em sua maioria negros, pobres,
meninas grávidas, quase todos oriundos de alguma periferia real ou igualmente
simbólica, exprime uma postura de contestação a uma ordem social
reconhecidamente injusta, que se manifesta também em outros campos, que são objeto
de sua atenção:
a) no Judiciário, que durante a ditadura
revelou-se em grande medida servil aos desmandos dos poderosos de ocasião, quer
por convicção (autoritária) de muitos dos seus membros, quer por medo ou
simplesmente porque outros integrantes do poder acreditavam que não era dever
seu opor resistência à ditadura de dentro do Judiciário;
b) no amplo terreno de conflitos demarcado
pelas políticas de “minorização”, isto é, de conversão das maiorias
populacionais (os mesmos pobres, negros, mulheres, os que professam credos de
origem africana etc.) em minorias políticas, algo que, diga-se de passagem, diz
muito daquilo que Wacquant denomina de “imenso trabalho histórico de
eufemização jurídica, política e cultural constitutivo do estabelecimento de um
regime formalmente democrático, fruto de dois séculos de lutas sociais –
(brotar com clareza a face oculta) do Estado como organização coletiva da
violência visando a manutenção da ordem estabelecida e a submissão dos
dominados”;
c) no setor da incriminação de adultos.
Muito antes do fenômeno mais recente do “grande encarceramento”, Siro Darlan
lutava contra aquilo que se observava a olho nu: a desumana repressão penal e a
predileção seletiva do sistema.
Siro Darlan foi um dos pioneiros, na esfera
do Judiciário, no que se refere ao diálogo com movimentos sociais. Também a
abertura a setores discriminados, cuja voz pretende-se sufocada, como o pessoal
do funk, tem em Siro um ator de vanguarda. Esteticamente estar ao lado de
funkeiros, sambistas, “menores infratores” apenas fazia sentido ao
establishment, em se tratando de juiz, na hipótese de obedecer ao padrão
consagrado para a figura da autoridade, encarnada pelo magistrado: a condição
de alguém dotado de uma superioridade ética com disposição “paternal” para
fazer o bem.
O figurino do Siro não cabe nesse traje
vertical da autoridade autocrática… a vestimenta judicial dele é horizontal,
permeável, dialogal… há um Outro que Siro reconhece, ainda que movido por sua
ideologia católica.
A percepção dessa trajetória auxilia na
compreensão do conjunto de atitudes – judiciais e extrajudiciais, todas
públicas – de Siro Darlan. Vistas em perspectiva, o exótico e censurável muda
de lugar: transfere-se dele para os que abusam do poder, quer ao pretender a
manutenção do status quo, quer ao defender benefícios corporativos que toda a
sociedade critica, porque muito claramente contradizem princípios republicanos.
No início das batalhas, nos 90, Siro
encontrou uma sociedade com o olhar autoritário treinado… seu comportamento
destoava do que se esperava das autoridades judiciárias, era incompatível com o
espírito da magistratura… espírito que havia inspirado o judiciário entre 1937
e 1985!
Siro é coerente e por isso hoje continua na
contramão.
A recaída conservadora no Brasil e fora
daqui é inegável. A intolerância e o individualismo são os valores mais
cultivados. O selfie está na moda, não apenas como proposição estética. Os
grupos mais organizados tratam de proteger-se a si próprios e a solidariedade social
é desvalorizada sob o argumento de que “se deve ensinar a pescar” e não “dar o
peixe”, como se as coisas fossem simples assim e a meritocracia pudesse ter
lugar em um ambiente tão desigual. Que falta faz o Betinho, irmão do Henfil. A
única ação afirmativa aceitável é a “ação afirmativa carcerária” (Wacquant).
O moralismo, que reduz as questões complexas
e as ações estratégicas à dicotomia rasa verdade vs. mentira, estrutura novas
modalidades do velho autoritarismo e fundamenta novas e expansivas formas de
vigiar e punir. É Wacquant novamente quem nos lembra da manipulação de
conceitos como o do “‘respeito ancestral’ outrora observado em relação às
figuras (‘o pai, o professor, o prefeito, o tenente, o colega da oficina, o
funcionário da repartição’)” para justificar empreitadas punitivas em tese
aptas a realizar o sonho (pesadelo) de homogeneização social… devemos ser todos
iguais… mesmo sendo diferentes.
Não é de estranhar, portanto, a reação a
Siro Darlan. Não é de causar espanto sequer as formas que toma. Maquiavel não é
novo… mas claro que sempre se pode optar pelas “razões de estado” e ignorar o
valor ético que em uma democracia há de presidir as ações dos governantes.
Há suavidade no conhecido… o conflito é
temido. Não creio que haja futuro para uma democracia dócil, porque a
docilidade no caso equivale à sujeição de muitos a poucos e leva o nome de
dominação.
Há pouco mais de uma década candidatei-me à
presidência da associação de magistrados do Rio de Janeiro. Alguns me
advertiram que o fato de ser apoiado por Siro Darlan levaria à minha derrota.
Levei a questão a uma reunião e deixei claro que poderia até perder com o Siro,
mas em hipótese alguma ganharia sem ele.
Continuo onde sempre estive… não por
amizade, que nutro por Siro, mas como na história de Aristoteles, sou ainda
mais amigo da lutas sociais e estas, sem dúvida, na história que será escrita
sobre a magistratura fluminense, passam necessariamente por Siro Darlan.
Fonte: Blog do Siro Darlan
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