Sexta, 5 de junho de 2015
Da Tribuna da Imprensa
Por NOAM CHOMSKY - Via AlterNet
O jornal aceita acriticamente a doutrina aprovada: os EUA são os donos do mundo, e o são por direito e por boas razões.

Uma reportagem de
primeira página é dedicada às falhas jornalísticas expostas pela principal
revista acadêmica de crítica da mídia em uma matéria publicada na revista
Rolling Stone sobre um estupro em um campus americano. A derrapagem
jornalística é tão grave que também é o tema da principal reportagem na
editoria de negócios, com uma página interna inteira dedicado à continuação das
duas matérias. Em tom de choque, ambas fazem referência a vários crimes já
cometidos pela imprensa: alguns casos de invenção, logo
desmascarados, e casos de plágio ("numerosos demais para citar"). O
crime específico da Rolling Stone foi "falta de ceticismo", que é,
"em muitos aspectos, o mais insidioso" entre as três categorias.
É reconfortante ver o
compromisso do Times com a integridade do jornalismo.
Na página 7 da mesma
edição, há uma matéria importante escrita por Thomas Fuller intitulada "A
Missão de uma mulher para libertar o Laos de bombas não detonadas". Relata
o "esforço único" de uma mulher Laociana-americana, Channapha
Khamvongsa, "para livrar sua terra natal de milhões de bombas ainda
enterradas lá, legado de uma campanha aérea americana que durou nove anos e que
fez do Laos um dos lugares mais bombardeados na terra" – que logo seria
superado pelo Camboja rural, segundo as instruções de Henry Kissinger para a
força aérea dos EUA: "Campanha de bombardeio maciço no Camboja. Qualquer
coisa que voe sobre tudo o que se mova”. É difícil encontrar algum registro
comparável em termos de convocação de um virtual genocídio. Foi mencionado no
Times em uma reportagem sobre a revelação de gravações do Presidente Nixon, e
recebeu pouca atenção.
Fuller relata que,
como resultado do lobby da Sra Khamvongsa, os EUA aumentaram generosamente o
gasto anual com remoção de bombas não detonadas em 12 milhões de dólares. As
mais letais são as bombas de fragmentação, projetados para "causar o
máximo de baixas nas tropas" pulverizando "centenas de pequenas
bombas no chão”. Cerca de 30% permanecem intactas, e vêm a matar e mutilar
crianças que encontram as peças, agricultores que esbarram nelas durante o
trabalho, e outros casos de falta de sorte. Um mapa completa a reportagem, com
destaque para a província de Xieng Khouang, no norte do Laos, mais conhecida
como Planície de Jars, principal alvo do bombardeio intensivo, que atingiu o
ápice de sua fúria em 1969.
Fuller relata que a
Sra. Khamvongsa "decidiu agir quando se deparou com uma coleção de
desenhos dos bombardeios feitos por refugiados, reunidos por Fred Branfman, um
ativista contra a guerra que ajudou a expor a Guerra Secreta". Os desenhos
aparecem no formidável livro de Fred Branfman Vozes da Planície de Jars,
publicado em 1972, e republicado pela editora da Universidade de Wisconsin em 2013
com nova introdução. Os desenhos mostram em detalhes o tormento das vítimas,
camponeses pobres de uma região isolada que não tinham nada a ver com a guerra
do Vietnã, como foi admitido oficialmente. Um relato típico de uma enfermeira
de 26 anos capta a natureza da guerra aérea: "Não havia uma noite em que
pensamos que íamos sobreviver até a manhã seguinte, uma manhã em que pensamos
que pudéssemos sobreviver até a noite. Nossos filhos choraram? Sim, e nós
também. Eu só ficava em minha caverna. Não vi a luz do sol durante dois anos.
Em que eu pensava? Oh, eu apenas repetia, `por favor, não deixe os aviões
chegarem, por favor, não deixe os aviões chegarem, por favor, não deixe os
aviões chegarem".
Os valentes esforços
de Branfman, de fato, trouxeram alguma consciência sobre aquela atrocidade. Sua
pesquisa perseverante também revelou as razões da destruição brutal de uma
comunidade camponesa e desprotegida. Ele expôs as razões de novo na introdução
à nova edição do livro Voices. Em suas palavras:
"Uma das
revelações mais devastadoras sobre os bombardeios foi a descoberta da razão
pela qual haviam aumentado tanto em 1969, como descreviam os refugiados.
Descobri que após o presidente Lyndon Johnson ter ordenado a interrupção de um
bombardeio sobre o Vietnã do Norte, em novembro de 1968, ele simplesmente
desviou os aviões para o norte do Laos. Não havia razão militar para isso. Foi
apenas porque, como testemunhou o Vice-embaixador Monteagle Stearns no Comitê
de Relações Exteriores do Senado americano em outubro de 1969: ‘Bem, tínhamos
todos aqueles aviões parados e não podíamos deixá-los lá sem fazer nada’".
Dessa forma, os
aviões sem uso foram descarregadas sobre os pobres camponeses, devastando
pacífica a Planície de Jars, longe da devastação das assassinas guerras de
agressão de Washington na Indochina.
Vejamos agora como
essas revelações se transmutam na novilíngua do New York Times: "Os alvos
eram as tropas norte-vietnamitas – especialmente as localizadas ao longo da
trilha Ho Chi Minh, grande parte da qual passava pelo Laos – bem como os
comunistas do Laos aliados ao Vietnã do Norte."
Compare com as
palavras do Vice-embaixador americano e os emocionantes desenhos e testemunhos
da coleção de Fred Branfman.
É claro que o
repórter tem uma fonte: a propaganda oficial americana. Isso certamente basta
para sobrepôr alguns fatos sobre um dos maiores crimes ocorridos desde a
Segunda Guerra Mundial, como detalhado pela própria fonte que ele cita: as
revelações cruciais de Fred Branfman.
Podemos apostar que
esta mentira colossal a serviço do Estado não vai merecer exposição prolongada
muito menos denúncias de práticas vergonhosas da Imprensa Livre, como plágio e
falta de ceticismo.
A mesma edição do New
York Times nos brinda com um artigo do inimitável Thomas Friedman,
retransmitindo com sinceridade as palavras do Presidente Obama ao apresentar o
que Friedman chama de "a Doutrina Obama" – cada presidente tem que
ter uma doutrina. A Doutrina profunda consiste em "‘engajamento’ combinado
com o alcance de necessidades estratégicas fundamentais".
O Presidente ilustrou
com um caso crucial: "Veja um país como Cuba. Ao testarmos a possibilidade
de que um engajamento leve a um resultado melhor para o povo cubano, não há
muitos riscos para nós. É um país pequeno. Não representa ameaça aos nossos
principais interesses de segurança, então [não há razão para não] testar a
proposta. E se acontecer de não obtermos melhores resultados, podemos ajustar
nossas políticas”.
Aqui, o prêmio Nobel
da Paz se estende sobre as razões para empreender o que o principal jornal
intelectual da esquerda liberal, o New York Review, saúda como como o “passo
"corajoso e verdadeiramente histórico" de restabelecer relações
diplomáticas com Cuba. É um movimento realizado a fim de "fortalecer de
forma mais efetiva o povo cubano", explicou o herói, já que nossos
esforços anteriores para levar-lhes a liberdade e a democracia não haviam
conseguido atingir nossos nobres objetivos. Os esforços anteriores incluíam um
embargo esmagador condenado pelo mundo todo (exceto Israel) e uma brutal guerra
terrorista. Esta última é, como sempre, varrida da história, exceto pelas
tentativas fracassadas de assassinar Castro, episódios de menor importância
nesta guerra, e aceitáveis porque podem ser reduzidos, com desprezo, a
ridículas travessuras da CIA. Consultando os registros internos anteriormente
confidenciais e já acessíveis, ficamos sabendo que estes crimes foram cometidos
por Cuba representar um "desafio bem-sucedido" à política americana
desde a Doutrina Monroe, que estabelecia a intenção de Washington de dominar o
hemisfério. Nada disso foi mencionado, bem como tantos fatos que não haveria
espaço para contar aqui.
Prosseguindo a
leitura encontramos outras pérolas, por exemplo, o artigo de primeira página
sobre o acordo com o Irã, assinado por Peter Baker alguns dias antes, alertando
sobre os crimes iranianos frequentemente enumerados pelo sistema de propaganda
de Washington. Todos provam-se bastante reveladores, embora nenhum mais do que
o crime iraniano por excelência: "desestabilizar” a região ao apoiar as
“milícias xiitas que mataram soldados americanos no Iraque". Aqui,
novamente, é o quadro padrão. Quando os EUA invadem o Iraque, praticamente
destruindo-o e incitando os conflitos sectários que estão esfacelando o país e
agora toda a região, isto conta como "estabilização" na retórica
oficial e, portanto, da mídia. Quando o Irã apoia as milícias que resistem à
agressão, a isto se dá o nome de "desestabilização". E não se poderia
pensar em crime mais hediondo do que matar soldados americanos que vieram
atacar a casa de alguém.
Tudo isso, e muito,
muito mais, faz todo o sentido para quem mostra a esperada obediência e aceita
acriticamente a doutrina aprovada: os EUA são os donos do mundo, e o são por
direito, por razões também explicadas lucidamente na New York Review, em artigo
de março de 2015 escrito por Jessica Matthews, ex-presidente do Carnegie
Endowment for International Peace (Fundo Carnegie para a Paz Internacional):
“As contribuições americanas para a segurança internacional, o crescimento
econômico global, a liberdade e o bem-estar humano são tão evidentemente
inigualáveis, e sempre dirigidas ao benefício dos outros, que os americanos se
acostumaram a pensar que os EUA são um tipo diferente de país. Quando outros
fazem pressão por seus interesses nacionais, os EUA procuram privilegiar
princípios universais”.
Sem mais.