Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 16 de junho de 2015

Podemos – uma experiência rica ou um novo paradigma para a esquerda?

Terça, 16 de junho de 2015
por Cid Benjamin
A experiência do Podemos, na Espanha, é interessante e deve ser acompanhada de perto. Pode nos inspirar em muitas coisas.

Mas será ela um novo paradigma de formas de organização partidária das forças progressistas e de esquerda? Vale uma reflexão sobre a pergunta.

Ao longo da história, as formas de organização partidária exitosas estiveram em sintonia e a serviço das tarefas do momento histórico. Mas, volta e meia, esta verdade aparentemente óbvia é atropelada por cópias acríticas de experiências exitosas em outras realidades e momento. O resultado dessas transposições mecânicas quase nunca foi bom.
Fonte: site do Psol

Assim, foi castigado pela história quem reproduziu o modelo leninista de partido, de forma rígida, em outras realidades que não a da Rússia do início do século passado. Da mesma forma, deu com os burros n’água quem copiou de forma acrítica outros modelos de organização, mesmo que estes tenham servido em outros momentos e em outros países. Basta ver as derrotas da luta armada na América Latina.

Hoje, diante do profundo desgaste da “política” devido à forma como ela vem sendo exercida não só no Brasil, novos caminhos têm sido buscados. Isso ocorre no exercício em si da política, na formulação da estratégia e da tática e nas formas de organização partidária. É natural. Mas é preciso certo cuidado, para não comprar gato por lebre.

Nem toda novidade significa um avanço. Algumas podem representar um retrocesso.

É claro que um partido na segunda década do século 21 deve incorporar as riquíssimas (e nem sempre exitosas) experiências da luta dos trabalhadores no período recente. Deve, também, ter outras formas de organização, de intervenção política na sociedade ou de comunicação interna, se comparado a uma agremiação de 20 ou 30 anos atrás (já nem falo nem das do início do século passado).

Assim, os partidos – e também o nosso PSOL - precisam de um “aggiornamento”, e não só nas formas de organização.

Mas, mesmo com as necessárias mudanças, certas características permanecem necessárias. A principal delas é a reafirmação do papel dos partidos políticos. Eles devem ser um formulador coletivo de estratégias e táticas para a intervenção na realidade. Transformá-los num meros coletores de propostas que surgem na sociedade é apequenar seu papel e esterilizá-lo.

Assim, como foi dito no início deste texto, a experiência do Podemos, na Espanha, deve ser acompanhada de perto. Ela pode nos trazer ensinamentos úteis.

O Podemos tem a sua origem em movimentos variados que ocorreram à margem dos partidos e das instituições tradicionais e se nutriu do desgaste desses últimos e da crítica a eles. A experiência dos Indignados – jovens que acamparam durante semanas nas praças centrais de Madri – foi uma delas. A resistência aos despejos de pessoas que não puderam honrar o pagamento de aluguéis ou hipotecas, também.

O partido traz, portanto, uma experiência muito interessante. Até porque há pontos comuns entre a realidade de Espanha e a do Brasil hoje.

Mas há uma tendência perigosa de tomá-lo como modelo de forma acrítica. No Rio de Janeiro, inspirado em sua experiência – ou no que pensam ter sido ela - jovens ativistas começaram a ser reunir nas ruas para debater problemas variados. Esses problemas são, em geral, relacionados com questões locais, de bairro. E os ativistas fazem a apologia do que denominam “horizontalidade”, acreditando sinceramente ser este o caminho para evitar a aparição e o fortalecimento dos burocratas partidários. Repudiam qualquer modelo que delegue responsabilidades e não aceitam a existência de dirigentes.

Muitas vezes, sequer existe uma pauta nas suas reuniões. As pessoas se inscrevem e falam sobre o assunto que desejarem no momento em que lhes é dada a palavra.

Essas reuniões não deixam de ter um aspecto positivo – afinal, é gente que, num momento de confusão, se dispõe a debater problemas de alguma forma relacionados com a política (mesmo que política, digamos, menor, localizada). Mas, são reuniões caóticas, em que se sai de um problema para outro sem que haja qualquer conclusão. Por isso, na maior parte das vezes são improdutivas, salvo quando marcam alguma atividade imediata, também relacionada com questões locais. E, passados alguns meses, os coletivos que as promovem tendem a desaparecer.

É o que ocorreu com os Indignados, que, felizmente, acabou contribuindo para o surgimento de uma organização de tipo partidário.

Mas não só nesses ativistas, com pouca experiência e formação política, houve certo encantamento com a experiência do Podemos. Formulações de mais gabarito - como a desenvolvida por Vladimir Safatle em artigo publicado na “Folha de S.Paulo” em 2/6/2015, com o título “O que podemos” – também mostra isso.

Safatle é uma das boas cabeças da esquerda brasileira. Geralmente sai da mesmice e traz contribuições originais. Nesse artigo, como em outros, levanta questões instigantes. No entanto, flerta com uma perspectiva espontaneísta, que, no limite, leva ao menosprezo do papel dos partidos e à diluição de seu papel como agente coletivo de formulação e luta por um projeto.

Um exemplo. Falando da prefeita eleita de Barcelona, uma importante figura do Podemos, Safatle afirma: “Ada Colau é apenas o exemplo mais visível de um processo de uma reconfiguração contemporânea da política. Seu partido não é um partido, mas uma plataforma cidadã, ou seja, um grupo de ativistas, professores que constituiu uma lista eleitoral aliando-se a vários grupos e partidos como o Podemos.”

“Os candidatos não foram escolhidos em convenções cheias de militantes-fantasmas filiados apenas para vencer embates internos, como acontece em tantos partidos de esquerda e direita. Nem seus candidatos foram decididos em conchavos em mesa de restaurante. Eles foram indicados em assembleia aberta, na qual escolhe quem está presente.”

Examinemos mais de perto o que afirma Safatle.

O partido de Colau “não é um partido, mas uma plataforma cidadã”. Ora, que plataforma? É preciso haver um mecanismo qualquer que filtre, organize e coesione as propostas surgidas no seio do movimento e lhes dê coerência mais global. Isso é essencial, sob pena de termos como consequência uma autêntica geleia geral, na qual cabe (ou pode caber) tudo.

Mais: “Os candidatos não foram escolhidos em convenções cheias de militantes-fantasmas filiados apenas para vencer embates internos, como acontece em tantos partidos de esquerda e direita. Nem seus candidatos foram decididos em conchavos em mesa de restaurante. Eles foram indicados em assembleia aberta, na qual escolhe quem está presente”.

Safatle valoriza o fato de que não são os filiados a uma agremiação política que votam para escolher os candidatos, mas quem estiver numa assembleia aberta, “na qual escolhe quem está presente”.

Claro que convenções manipuladas por burocracias partidárias, o que é comum, devem ser repudiadas. Mas a solução não pode ser a apontada por Safatle, com base na experiência do Podemos.

Ao contrário do que se possa pensar, isso não é democrático.

Que se faça uma assembleia na rua para debater problemas de uma comunidade, é ótimo. Que os presentes votem, também. Mas um partido pressupõe certa homogeneidade de pensamento. Ou será que apenas o repúdio à velha institucionalidade e aos velhos partidos basta para garantir coerência ao “novo”?

Enfim, as justas críticas às burocracias – presentes em quase todas as agremiações, inclusive na nossa, diga-se – não podem levar à anarquia e ao repúdio a qualquer forma e nível de hierarquia na estrutura partidária.

Até porque – é preciso ter isso presente – sempre haverá alguém que dará um mínimo de ordem e organização à lista anárquica de demandas variadas levantadas em praça pública. Quem será esse alguém?

Devemos saudar a vitória eleitoral do Podemos, acompanhar seu desdobramento, pois ela pode abrir espaços para uma revitalização importante da política na Espanha. No entanto, é precipitado considerar que o fato de a legenda ter tido uma importante vitória eleitoral nas recentes eleições municipais o consagra como novo paradigma para a organização partidária.

Seria mais simples se tudo fosse assim.

Mas o buraco é mais embaixo.
Fonte: site do Psol