Do Blogue Náufrago da Utopia
Por Carlos Goes (*) |
Você
deve ter ouvido alguém dizer que a imprensa estrangeira teria afirmado
que há um golpe de Estado em curso no Brasil. Esse fato ratificaria o
argumento governista de que há uma conspiração da mídia e das elites
para derrubar o governo -e que a imprensa internacional, um observador
externo neutro, rapidamente percebeu isso. A emergência dessa narrativa
decorreu da combinação de dois fatores: a confusão entre colunas de
opinião e editoriais; e a atual segmentação das mídias em nichos
políticos.
De fato, algumas colunas de opinião a favor do governo Dilma foram
publicadas na imprensa internacional. Celso Rocha de Barros, por
exemplo, escreveu para o New York Times dizendo que o processo de impeachment seria um modo de afundar a Lava-Jato.
Com ainda mais impacto, o premiado jornalista americano Glenn Greenwald e
David Miranda, ativista político e militante do PSOL, utilizaram do
reconhecimento internacional que detêm para fazer avançar a tese do
golpe em jornais e na TV. Ao mesmo tempo, diversos órgãos publicaram colunas de opinião argumentando que o processo não é um golpe -tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.
O objetivo da imprensa em trazer colunistas que pensam de forma distinta
é dar uma visão mais ampla para o leitor. Já a opinião dos órgãos de
imprensa em si não se encontra nesses espaços de debate - e sim em seus
editoriais. Estes, por sua parte, não confirmam a narrativa de que a
imprensa estrangeira estaria denunciando um golpe em curso no país.
Em seu editorial, o jornal francês Le Monde afirmou peremptoriamente que a situação brasileira "não é um golpe" e que falar de golpe constitucional é uma contradição em termos.
Já o Washington Post argumentou que, apesar de eles preferirem novas eleições ao impeachment, o processo é constitucional e "definitivamente não é um golpe".
A tradicional revista The Economist disse que golpe é "a tomada do poder pelo uso inconstitucional da violência" e que esse "não é o caso do Brasil".
O The Guardian e o New York Times
demonstraram preocupações de que o impeachment possa ameaçar o
prosseguimento da Lava Jato, mas destacaram que vários aliados de Dilma
são acusados de corrupção e não questionaram a legalidade do processo de
impedimento.
Mesmo o El País, que escreveu um editorial contrário ao impeachment, não afirmou que o processo é um golpe.
Se a tese do golpe não prosperou nos editoriais internacionais, como
essa falsa percepção se disseminou? Ocorre que, na era das redes
sociais, a informação circulada tende a ter o que cientistas sociais
chamam de "viés de confirmação". Ou seja: você e eu tendemos a
reproduzir aquilo que confirma nossa visão, e a ignorar aquilo que a
confronta.
Você já deve ter percebido isso intuitivamente, ao observar a explosão
de blogues e outros veículos que, longe de tentarem trazer uma visão
plural, servem para confirmar o que já pensa a direita ou a esquerda.
Em termos mais científicos, pesquisadores da Universidade da Indiana, ao
estudarem estatisticamente a interação política no Twitter,confirmaram a
existência dessa dissonância informativa.
O maior problema dessa segmentação é que as pessoas passam a ter não
somente visões de mundo distintas - o que é saudável e necessário em uma
sociedade democrática -, mas de fatos distintos.
Cada um de nós tem o direito a nossa própria opinião. Mas nós não temos direito a nossos próprios fatos.
E, independentemente de sua opinião sobre o impeachment da presidente, o
fato é que os principais veículos da imprensa internacional não
disseram que o processo em curso é um golpe.
* O autor, Carlos Góes, é mestre em economia internacional pela Universidade Johns Hopkins (EUA) e pesquisador-chefe do Instituto Mercado Popular