Sábado, 7 de janeiro de 2017
Do Esquerda.Net
Noam Chomsky reflete sobre
Israel, Trump e a Nova Ordem Mundial, uma aliança entre estados
autoritários que se parece estar a estruturar.
Assembleia Geral da ONU
A 23 de dezembro de
2016, o Conselho de Segurança da ONU passou a Resolução 2334 por unanimidade,
com a abstenção dos EUA. A Resolução reafirmou "que a política e práticas
de Israel em estabelecer colonatos na Palestina e outros territórios Árabes
ocupados desde 1967 não tem legitimidade legal e constitui uma séria obstrução
para alcançar uma paz justa e compreensiva no médio oriente. Chama novamente
Israel, como país ocupante, a cumprir escrupulosamente a Quarta Convenção de
Genebra (1949), a rescindir as medidas anteriores e a desistir de tomar
qualquer ação que pudesse resultar numa alteração de estatuto legal ou natureza
geográfica e afetar materialmente a composição demográfica dos territórios
árabes ocupados desde 1967, incluindo Jerusalém, e, em particular, para não
transferir parte da população civil para os territórios árabes ocupados."
Reafirmou. Uma
palavra com alguma importância.
É importante
reconhecer que a Resolução 2334 não tem nada de novo. A citação aqui referida é
da Resolução 446, de 12 de março de 1979, reiterada na essência na 2334. A
Resolução 446 passou com 12 votos contra zero e abstenção dos EUA, do Reino
Unido e da Noruega. A diferença essencial hoje é que os EUA estão sozinhos
contra o resto do mundo, e isso é um mundo de diferença. As violações das
ordens do Conselho de Segurança da ONU por parte de Israel, e violações da lei
internacional, são hoje bastante mais radicais do que em 1979 e estão a
levantar maior repúdio em boa parte do mundo. Os conteúdos da Resolução
446-2334 devem por isso ser levados mais seriamente. Daí a reação intensa
contra a 2334, tanto a cobertura como o comentário; e em Israel e nos EUA,
histeria considerável. Estes são indicadores evidentes do isolamento dos EUA no
palco mundial. Sob Obama. Com Trump, o isolamento dos EUA irá provavelmente
aumentar ainda mais, e de facto, já o fez, ainda antes de assumir a
presidência.
A iniciativa de
Trump que mais contribuiu para aprofundar o isolamento dos EUA aconteceu a 8 de
novembro, quando ele ganhou duas vitórias. A vitória menor foi nos EUA, onde
ganhou o colégio eleitoral. A vitória maior foi no Marraquexe - Marrocos, onde
cerca de 200 nações estavam reunidas para tentar introduzir algum conteúdo nos
acordos de Paris de dezembro de 2015 sobre alterações climáticas, acordos que
foram deixados como intenções e não compromissos firmes devido à recusa do
Congresso dominado pelo Partido Republicano.
Enquanto os votos
eleitorais eram contados a 8 de novembro, a conferência em Marraquexe
afastou-se do seu programa substantivo para a questão de saber se era sequer
relevante lidar com uma severa ameaça de catástrofe ambiental agora que o país
mais poderoso na história se demitiu das suas responsabilidades. Isso,
seguramente, foi a maior vitória de Trump a 8 de novembro, um momento realmente
pivotal. O mundo coloca as suas esperanças na liderança da China agora que o
Líder do Mundo Livre declarou que não só irá se retirar dos acordos como, com a
eleição de Trump, irá acelerar dramaticamente a corrida para o desastre.
Um espetáculo
alucinante, que aconteceu quase sem qualquer comentário.
O facto de que os
EUA estão sozinhos em rejeitar o consenso internacional reafirmado pela
Resolução 2334, perdendo o Reino Unido sob a liderança de Theresa May, é outro
sinal de crescente isolamento dos EUA.
Exatamente porque
razão Obama escolheu a abstenção em vez do veto é uma questão em aberto: não
temos provas diretas. Mas temos algumas explicações plausíveis. Tinha havido
algumas reações de surpresa (e ridículo) após o veto de Obama em fevereiro de
2011 à Resolução da ONU que definia a implementação de política oficial dos
EUA, e ele pode ter sentido que seria demasiado repetir um momento semelhante
se quer salvar alguma parte do seu legado entre setores da população com alguma
preocupação por direito internacional e direitos humanos. É útil relembrar que
entre os Democratas liberais, por oposição ao Congresso, e particularmente
entre os jovens, opinião sobre Israel e Palestina tem evoluído nos últimos anos
para a crítica às políticas de Israel, de tal forma que o núcleo de apoio a
Israel nos EUA transferiu-se para a extrema-direita, incluindo a base eleitoral
evangélica do Partido Republicano. Talvez estes tenham sido os fatores que
alteraram a posição de Obama.
A abstenção de 2016
suscitou furor em Israel e no Congresso dos EUA também, incluindo Republicanos
e Democratas, com propostas para retirar o financiamento à ONU em retaliação
pelo "crime". O primeiro-ministro israelita Netanyahu denunciou Obama
pelas suas ações "anti-Israel". O seu gabinete acusou Obama de
"manobrar" nos bastidores esta "emboscada" no Conselho de
Segurança, produzindo "provas" que dificilmente poderão ser
consideradas sequer humorísticas. O oficial israelita de topo acrescentou que a
abstenção "revelou a verdadeira face da administração Obama", e que
"agora podemos compreender com o que estivemos a lidar nos últimos oito
anos".
A realidade é um
pouco diferente. De fato, Obama ultrapassou todos os recordes no apoio a
Israel, tanto diplomaticamente como financeiramente. A realidade é descrita com
precisão pelo especialista do Financial Times no médio oriente, David Gardner:
"As relações pessoais entre Obama e Netanyahu podem ter sido venenosas,
mas ele foi o mais pró-Israel de todos os Presidentes dos EUA: o mais pródigo
com ajuda militar e consistentemente utilizando o veto dos EUA no Conselho de
Segurança... A eleição de Donald Trump até agora trouxe pouco mais do que
tuítes virulentos sobre alguns assuntos geopolíticos. Mas os augúrios são
ominosos. Um governo irredentista em Israel e inclinado para a extrema-direita
é agora apoiado por uma administração populista e islamofóbica em
Washington."
Num comentário
interessante e revelador, Netanyahu denunciou a "emboscada" do mundo
como prova de "preconceito do velho mundo contra Israel", uma frase
reminiscente dos comentários de Donald Rumsfeld sobre a distinção entre a
"Velha Europa - Nova Europa", em 2003.
Devemos relembrar
que os estados da Velha Europa era os maus, os principais estados europeus, que
se deram à arrogância de respeitarem a esmagadora maioria da opinião das suas
populações recusando juntar-se aos EUA no crime do século, a invasão do Iraque.
Os estados da Nova Europa eram os bons, que ignoraram uma maioria de opinião
ainda maior e obedeceram ao seu dono [os EUA]. O mais digno dos
"bons" foi José Maria Aznar, primeiro-ministro de Espanha, que
ignorou oposição popular unânime contra a guerra e foi recompensado com a honra
de participar no anúncio da invasão em conjunto com Blair e Bush.
Esta demonstração
transparente de total desprezo pela democracia passou virtualmente sem
cobertura noticiosa, compreensivelmente. A tarefa na altura era glorificar
Washington pela sua apaixonada dedicação pela democracia, como ilustrado pela
"promoção da democracia" no Iraque, que subitamente se tornou na
linha correta após a "única questão relevante" (vai ou não Saddam
entregar as armas de destruição maciça?) ter sido respondida no sentido inverso
ao desejado.
Netanyahu está a
adotar muito da mesma posição. O velho mundo que tem um preconceito contra
Israel corresponde a todo o Conselho de Segurança da ONU; mais especificamente,
corresponde a qualquer pessoa no mundo com o menor respeito por lei
internacional e direitos humanos. Para sorte da extrema-direita israelita, isso
exclui o Congresso dos EUA e - publicamente - o Presidente-eleito e os seus
associados.
O governo israelita
está, obviamente, consciente destes desenvolvimentos. Por isso, está ativamente
a procurar transferir a sua base de apoio para estados autoritários como Singapura,
China ou a Índia da direita nacionalista Hindu, que se torna agora um aliado
natural com a sua deriva para o ultranacionalismo, políticas internas
reacionárias, e ódio ao Islão.
As razões pelas
quais Israel procura apoio são explicitadas por Mark Heller, principal analista
associado em Tel Aviv no Instituto de Estudos de Segurança Nacional. "No
longo prazo," explica, "haverá problemas em Israel nas suas relações
com a Europa ocidental e os EUA", enquanto que em contraste, os países
asiáticos importantes "não apresentam grande interesse na forma como
Israel se relaciona com os Palestinianos, Árabes, ou quem quer que seja."
De forma breve, a China, Índia, Singapura e outros aliados favoritos são menos
influenciados pelos tipos de liberalismo e preocupações humanas que representam
uma ameaça crescente para Israel.
As tendências dos
países em desenvolvimento merecem alguma atenção. Como notado, os EUA estão a
tornar-se cada vez mais isolados nos últimos anos, quando sondagens dirigidas
pelos EUA - não noticiadas nos EUA mas seguramente conhecidas em Washington -
revelaram que a opinião mundial olhava para os EUA como a maior ameaça mundial
à paz, ninguém sequer se aproximava. Sob Obama, os EUA estão agora sozinhos na
abstenção sobre os colonatos israelitas, contra a unanimidade do Conselho de
Segurança da ONU.
Com Trump e os seus
apoiantes de ambos os partidos no Congresso, os EUA ficarão ainda mais isolados
no mundo no apoio aos crimes israelitas. Desde 8 de novembro, os EUA
isolaram-se no assunto ainda mais importante de aquecimento global. Se Trump
cumpre a sua promessa de quebrar o acordo com o Irão, é provável que os outros
participantes persistam, deixando os EUA ainda mais isolados em relação à
Europa.
Os EUA estão
igualmente mais isolados do seu "quintal" da América do Sul do que no
passado, e estarão mais isolados se Trump recuar nos passos de normalização das
relações com Cuba lançado por Obama, passos tomados para evitar a provável
exclusão de todas as organizações do hemisfério por causa do seu assalto
continuado a Cuba, em total isolamento internacional.
O mesmo se passa na
Ásia, onde mesmo aliados próximos dos EUA (exceto o Japão), mesmo o reino
Unido, se juntam ao Banco de Desenvolvimento Asiático de Infraestruturas, com
sede na China, e à Parceria Econômica Regional liderada pela China e, neste
caso, incluindo o Japão. A Organização de Cooperação de Shanghai (OCS) (chinesa
igualmente) incorpora os estados centro-asiáticos, a Sibéria com os seus
recursos, a Índia, o Paquistão e, mais tarde ou mais cedo, o Irão e mesmo a
Turquia. A OCS tem rejeitado os pedidos dos EUA para obter estatuto de
observador e exigiu que os EUA removam todas as suas bases militares da região.
Imediatamente após
a eleição de Trump, testemunhamos o espetáculo curioso da Chanceler Angela
Merkel a tomar a liderança numa lição a Washington sobre valores liberais e
direitos humanos. Entretanto, desde 8 de novembro, o mundo olha para a China
para liderança em salvar o mundo da catástrofe mundial, enquanto os EUA, em
esplêndido isolamento novamente, se prepara para minar estes esforços.
O isolamento do EUA
não está completo, obviamente. Como foi deixado claro na reação de Trump à
vitória eleitoral, os EUA apoiam entusiasticamente a extrema-direita na Europa,
incluindo elementos neo-fascistas. O retorno da extrema-direita em partes da
América do Sul oferece oportunidades de aliança também. E, claro, os EUA mantêm
uma aliança sólida com as ditaduras do Golfo e com Israel, que também se separa
dos setores mais liberais e democráticos na Europa e se aproxima de regimes
autoritários que não estão preocupados com as violações de Israel sobre lei
internacional ou ataques ferozes a elementares direitos humanos.
Os últimos
desenvolvimentos sugerem a emergência de uma Nova Ordem Mundial, totalmente
diferente dos retratos usuais dentro das doutrinas em vigor.
Artigo
publicado em ZNet (link is external), tradução do Esquerda.net
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Sobre o/a autor(a)
Linguista, filósofo e activista
político americano