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(Millôr Fernandes)

sábado, 14 de setembro de 2019

Direito a terras indígenas independe de marco temporal preestabelecido, defende PGR em parecer ao STF

Sábado, 14 de setembro de 2019
Do MPF
O julgamento, com repercussão geral reconhecida pelo Supremo, irá orientar as decisões judiciais em casos semelhantes
Arte mostra a palavra "índigena" em letras brancas, aplicadas sobre fundo verde.
Arte: Secom/PGR
Raquel Dodge também defende que os direitos dos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas são originários, conforme prevê o artigo 231 da Constituição, e que o procedimento de demarcação é apenas declaratório. Por isso, a proteção do direito dos índios sobre suas terras independe da conclusão de procedimento administrativo demarcatório. A delimitação da terra deve ser feita por estudo antropológico, que é capaz de atestar o caráter tradicional da ocupação por si só e de evidenciar a nulidade de qualquer ato que tenha por objeto a ocupação, domínio e posse dessas áreas. Segundo a PGR, esses aspectos devem constar também da tese a ser fixada pelo Supremo em caráter de repercussão geral.A proteção e posse permanente dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional não se sujeita a um marco temporal preestabelecido. Essa é a tese defendida pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em parecer no Recurso Extraordinário 1017365/SC, enviado nessa quinta-feira (12) ao Supremo Tribunal Federal (STF). O caso discute a demarcação de terras indígenas da etnia Xokleng, em Santa Catarina, e tem repercussão geral reconhecida. Para Dodge, o STF deve consolidar o entendimento de que o marco temporal não é aplicável em casos de demarcação de terras indígenas, orientando nesse sentido todas as decisões judiciais de instâncias inferiores em situações semelhantes.

Marco temporal – A tese do marco temporal foi estabelecida pelo STF como uma das condicionantes no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (PET 3388/RR). Pelo entendimento, a condição para a demarcação da terra é que os indígenas estivessem ocupando o local na época da promulgação da Constituição de 1988 ou que ficasse comprovado o “esbulho renitente” (remoção forçada da área, com resistência persistente dos indígenas). A partir desse julgamento, inúmeras ações foram propostas na Justiça para invalidar processos de demarcação de terras, com base na aplicação automática dessas condicionantes, o que “tem gerado grande instabilidade jurídica e social”. Daí a importância de se fixar nova tese em caráter de repercussão geral, defende a PGR.
O marco temporal foi um dos argumentos levantados pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma) de Santa Catarina no caso concreto em discussão no recurso. O órgão alega propriedade sobre área de ocupação tradicional ainda não demarcada de indígenas da etnia Xokleng, apresentando títulos registrados em cartório. A área alvo de disputa é uma reserva biológica. Tanto a Justiça Federal de primeira instância quanto o TRF4 deram ganho de causa à Fatma, determinando a reintegração de posse da área e a retirada de cerca de 100 indígenas que ocupavam o local desde 2009.
No parecer, Dodge lembra que, segundo o próprio Supremo, o marco temporal se aplica somente ao caso Raposa Serra do Sol, e não pode ser automaticamente adotado em todos os processos de demarcação de terras indígenas. Ela diz que “inexiste consolidação jurisprudencial acerca da tese do marco temporal, e que não houve intenção da Corte Suprema de atribuir às condicionantes do caso Raposa Serra do Sol caráter obrigatório e vinculante”.
Segundo a PGR, a Constituição reconheceu que a relação entre terra e indígena é “congênita e, por conseguinte, originária, não dependendo de título ou reconhecimento formal”. O reconhecimento dos direitos originários foi previsto inicialmente na Constituição de 1934. Em 1988, o artigo 231 estabeleceu que o direito à terra de ocupação tradicional tem o objetivo de recuperar, conservar e acautelar os direitos indígenas dessas e das próximas gerações, para garantir a sobrevivência cultural e material do grupo.
Raquel Dodge defende que, ao falar em áreas de ocupação tradicional, a Constituição afasta a necessidade de presença física dos índios em determinado local ou determinada data, o que torna o marco temporal inconstitucional. As terras de ocupação tradicional, segundo a Constituição, são aquelas nas quais os índios se encontram, aquelas utilizadas para suas atividades produtivas e as imprescindíveis à preservação dos recursos naturais necessários para a sobrevivência material e cultural do grupo.
Esbulho – Sobre o “esbulho renitente”, a PGR defende que esse termo deve ser entendido como a persistência da intenção de ocupar a terra tradicional, e não como resistência física propriamente dita. Ela sustenta que, em muitos casos, os indígenas não tinham meios de resistir fisicamente à ocupação de suas terras e à expulsão. “Não é aceitável que o Estado imponha, como condição para proteção de direitos, o exercício da autotutela e do estado de violência (resistência física), que, em muitos casos, levaram à extinção de inúmeros grupos indígenas”, diz o texto.
O parecer cita ainda decisões internacionais da Corte Interamericana de Direitos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, para lembrar do dever do Estado de proteger os indígenas e os povos tradicionais. O documento lembra que não há oposição entre o direito de preservação de áreas protegidas e a presença de indígenas ou comunidades tradicionais. A prática demonstra que os espaços mais preservados estão justamente em locais de ocupação por índios ou povos tradicionais, segundo o texto.
O parecer já traz a sugestão de tese de repercussão geral, para tornar inválida a aplicação automática da tese do marco temporal.