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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Privatização de ativos da Petrobras: barrar o projeto nacional

Terça, 3 de setembro de 2019
Do
Monitor Mercantil

Por Guilherme Estrella*

Opinião / 2 de set de 2019
Mais do que a soberania, o protagonismo global de qualquer nação depende centralmente de seu próprio patrimônio estratégico natural e de desenvolvimento científico, tecnológico e das engenharias construído em bases autônomas.
Estas três condicionantes juntam-se para, orientados por um projeto de país devidamente e livremente discutido e aprovado pela sociedade nacional, promoverem o desenvolvimento industrial e, desta forma, criarem um processo contínuo, ininterrupto, virtuoso de causa e efeito.
É bom acentuar que, inquestionavelmente, é a dimensão industrial que – ao demandar mão de obra qualificada – promove treinamento e formação técnico-científica em padrão elevado e em permanente evolução. O resultado deste cenário é o desenvolvimento social geral (salário, renda, emprego…), que da mesma forma se reflete na dimensão das ciências sociais.
Associado a este cenário e para assegurar sustentabilidade permanente, a existência de um mercado interno forte e com potencial de crescimento permanente é ingrediente importante para dar-lhe sustentabilidade a longo prazo.
Mas há um pilar, um alicerce político imprescindível neste processo: que o país e seu povo detenham, efetiva e concretamente, a propriedade e, em consequência, a gestão direta e autônoma de seus recursos naturais.
Esta é condição excludente deste processo e deságua diretamente no conceito de soberania nacional. A razão disto é que as nações, hoje globalmente hegemônicas, já o são há muito tempo, construíram seu protagonismo ao longo do século XX, a partir das revoluções industriais e do grande conflito mundial – em duas etapas, 1914 e 1939.
E estes recursos naturais, em seus próprios territórios e fora deles, esgotaram-se ou esgotam-se rapidamente, e torna-se decisiva a apropriação destes recursos em territórios de outras nações, no exterior. Como é o caso da mais rica nação do planeta.

País e seu povo devem deter a gestão direta e autônoma de seus recursos naturais

Do amplo conjunto destes recursos naturais, destaca-se a energia. É a oferta segura, permanente de energia – primeiro carvão e depois petróleo & gás natural – que permitiram aos hoje países desenvolvidos construírem seus projetos de nação, tendo a atividade industrial no centro de tudo.
Surgirão, certamente, críticas a este conjunto de argumentos centradas numa realidade fática que é a revolução industrial 4.0, já em curso, que modifica radicalmente todos os meios de produção – sem exceção. Assim como sua associação com a instalação da nova forma de capitalismo, o rentismo financeiro, desligado do processo industrial produtivo.
Esta abordagem desmantelaria a visão nacional-desenvolvimentista tradicional exposta acima, o que, na realidade dos países emergentes, não se sustenta na medida em que será impossível manter a profunda desigualdade social que marca a vida destas nações.
Aqui entram as considerações sobre o Brasil. O nosso país, o quinto mais extenso do planeta, possui abundantes recursos naturais – minérios, água, florestas, terras agricultáveis, clima, área desértica mínima, diversidade étnica unida por uma só língua, entre outras vantagens.
Mas nos faltava o componente básico para o nosso desenvolvimento industrial: a energia. Não temos carvão, chegamos ao final do século XIX como produtor de recursos primários – extrativista mineral e florestal – e agrícola.
Os insumos energéticos que sustentavam este quadro indigente eram a roda d’água, a lenha, a tração animal e, o principal, o braço escravo.
A geração elétrica (térmica e hidro) chegou ao Brasil no final do século XIX, a fornecer energia para as nossas primeiras “indústrias”, principalmente têxtil e correlatas. No campo social, nas cidades mais importantes, com a iluminação pública e doméstica e o transporte urbano.
A primeira escola de Engenharia – sensu stricto – brasileira foi, como não poderia deixar de ser, a Escola da Minas de Ouro Preto (MG), dedicada ao extrativismo mineral.
No final do século XIX desponta nos Estados Unidos da América (EUA) a mais importante forma de energia que supre toda a humanidade até hoje: o petróleo. Com base no petróleo, em seu território e depois no exterior, aquela nação construiu sua hegemonia geopolítica mundial, até hoje mantida por todos os meios, políticos, econômicos, militares e até jurídicos, como se constata atualmente.
E o Brasil, como passou o século XX? Praticamente na mesma situação; até 1930 o poder no Brasil era o chamado “café com leite”, quando os presidentes da República alternavam-se com paulista e mineiros, e a escravidão só tinha acabado no papel. Industrialização de porte, zero.
Vargas quebra este esquemão, assume o poder, o pessoal do café ensaia, sem êxito, uma “revolução” em 1932. Vem a guerra, Vargas negocia a adesão brasileira aos aliados, e é inaugurada, em 1946, a primeira usina siderúrgica brasileira de grande porte, a CSN.
Tem início a fase de industrialização brasileira, supertardia e com o conhecimento, tecnologia e engenharia, importado.
Mas o Brasil ainda não contava com suprimento energético suficiente para sustentar o crescimento industrial, pois a hidroeletricidade, mesmo muito importante, não abrangia o transporte, tampouco o gás natural e outros insumos industriais restritos ao petróleo & gás (p&g).
Além disso, a hidroeletricidade é sujeita a chuvas e trovoadas, literalmente. Dois anos de estiagem provocam os apagões, e não há investimentos industriais que resistam a períodos de interrupção de energia e a medidas emergenciais para apenas minorar este problema.
O Brasil não contava com petróleo e gás natural, nossas reservas e a produção decorrente eram modestas. O Brasil dependia de suprimento energético externo para seu desenvolvimento. Pior, não nos era possível construir um projeto de desenvolvimento minimamente autônomo a partir desta dependência.

Pré-sal propicia ao Brasil perspectivas
únicas para elaborar um projeto de nação

A Petrobrás foi criada para resolver esta parada, tão crítica e decisiva para a nossa verdadeira soberania como nação.
A onda neoliberal mundial alcança o Brasil, o Governo FHC extingue o monopólio estatal do petróleo, com a Petrobrás como executora, e abre o território brasileiro para as empresas estrangeiras, privadas e estatais.
É instalado o regime de concessões de blocos exploratórios, onde o petróleo/gás natural descoberto é de propriedade do concessionário, aspecto que lhe tornará atraente correr o elevado risco da atividade exploratória.
Mas as empresas estrangeiras não se entusiasmaram muito, não conheciam a geologia brasileira, os investimentos são capital-muito intensivo. Esperavam a Petrobrás correr o risco e, quando o p&g era encontrado pela nossa estatal, a área em que isto acontecia era valorizada e tornava-se atraente para elas.
O Governo FHC não consegue privatizar a Petrobrás, tampouco mudar-lhe o nome para o grotesco “Petrobrax”, que lhe suprimia o Brasil em sua marca. Apesar disto, transforma a Petrobrás numa empresa privada, aliás, numa instituição privada de investimentos no setor petrolífero, a visar o lucro máximo no mínimo prazo, a repelir o risco exploratório.
A Petrobrás passar a exibir o “Brasil” só no nome. No resto vira uma empresa privada com a mesma postura das estrangeiras em relação ao compromisso com o nosso país e os brasileiros.
O Governo FHC “orienta” a Petrobrás a concentrar-se na bacia mais produtiva – e lucrativa – do Brasil que, por isso, apresentava os menores riscos exploratórios, a Bacia de Campos. E tratava de desativar – ou diminuir drasticamente – as operações em outras áreas, terrestres e marítimas.
Outra consequência direta, muito negativa, desta decisão foi a de – com esta mesma visão financista – não investir mais em exploração em outras bacias, o que levou a Petrobás à situação de contarmos somente com a perspectiva de cinco anos (até 2008) para atividades exploratórias fora da Bacia de Campos, inclusive com a devolução à ANP dos blocos já adquiridos em outras bacias. Esta situação colocava em risco a própria preservação da Petrobrás, no médio&longo prazo, como empresa petrolífera.
Mas mostra total incoerência com esta postura ideológica e política – quando, ocorrido o apagão de 2001, obriga a estatal Petrobrás a assinar contratos de altíssimo risco financeiro para suprir de gás natural – que não produzia em quantidade suficiente para tal – várias usinas termoelétricas privadas. O prejuízo para a Petrobrás foi da ordem de R$ 1 bilhão.
Efetivamente, a Bacia de Campos nos leva à autossuficiência de petróleo – não de gás natural – com a entrada em produção de grandes campos, lá localizados, já no Governo Lula, em 2006.
Aqui entra um aspecto fundamental para se entender a diferença, para o Brasil, entre o petróleo da Bacia de Campos – até então produzido em reservatórios pós-salinos – e as descobertas do pré-sal, logo a seguir.
Os campos da Bacia de Campos produzem óleo pesado, com pouco gás natural. Por causa disto, a produção de cada poço – e também dos campos – pode ser até elevada, no início, mas entra rapidamente em queda, a exigir, em curto prazo, novos e pesados investimentos na atenuação deste quadro.
O resultado desta realidade – não levada em conta pela instituição financeira em que a Petrobrás foi transmudada pelo FHC – foi o Brasil perder rapidamente a autossuficiência, bastando para isso a retomada do crescimento da economia brasileira com o Governo Lula e a consequente tendência de elevação do consumo de combustíveis no país.
O novo governo – de Lula – toma posse em 2003 e reverte esta realidade. Concede a sua empresa estatal a liberdade de atuação para cumprir sua missão central com o Brasil: descobrir petróleo e gás natural em território nacional.
As descobertas não se fizeram esperar, com a retirada de sondas da Bacia de Campos para outras bacias: Golfinho, na Bacia do Espírito Santo, Uruguá-Tambaú e Mexilhão (o maior campo de gás natural do Brasil) na Bacia de Santos – sem atividade de perfuração exploratória há anos – foram descobertos ainda em 2003.
Com esta liberdade de iniciativa e – indispensável citar isto – com a competência de seu corpo técnico/científico, internacionalmente reconhecida há décadas, a Petrobrás partiu para enfrentar o risco da perfuração exploratória em todo o território nacional.
Ainda em 2006, em meio às comemorações da fugidia, efêmera autossuficiência, nossa broca adentrou na seção pré-salina da Bacia de Santos.
Os custos desta iniciativa – junto com os parceiros no consórcio detentor do bloco – muito arriscada, mas baseada no conhecimento geocientífico e na tecnologia/engenharia de projetos de construção de poços e de produção de petróleo e gás natural – construído em décadas de investimento em formação e treinamento de suas equipes, tanto da frente operacional com o Centro de Pesquisas (Cenpes) – levam a Petrobrás, como operadora do bloco, e o Brasil a identificarem a maior província petrolífera do planeta descoberta depois do Mar do Norte, hoje moribundo.
O óleo ali é leve, diferente do pesado do pós-sal da Bacia de Campos. É muito rico em gás natural, gás este também muito rico em matéria prima para fertilizantes nitrogenados e para a indústria petroquímica, duas áreas em que o Brasil é muito carente.
Ainda mais do que isto, as rochas pré-salinas que contêm p&g caracterizam-se por serem muito porosas e permeáveis, exibem altíssimos índices de produtividade por poço – alguns a produzir mais de 50.000 barris por dia com grande quantidade de gás.
A continuidade dos trabalhos das equipes da Petrobrás, diante desta extraordinária descoberta, com o mapeamento regional das rochas produtoras do pré-sal conduz à definição de uma extensa área marítima que vai de Vitória, no Espírito Santo, até o Estado de Santa Catarina.
A continuidade das perfurações efetuadas pela Petrobrás comprovaram que o risco exploratório havia zerado, e as avaliações dos volumes de p&g encontrados permitem que se estimem as reservas petrolíferas – e de gás natural – do pré-sal brasileiro na ordem dos 100 bilhões de barris de petróleo e gás equivalente.
São, portanto, imensos recursos energéticos descobertos pela empresa estatal brasileira, por profissionais brasileiros, em território nacional hoje submerso – a nossa Amazônia Azul – e em frente à região brasileira economicamente mais importante.
Estes recursos energéticos vêm propiciar ao Brasil a superação de sua mais decisiva e excludente limitação para elaborar um projeto de nação completo, a ter como objeto o desenvolvimento industrial autônomo e de sua imprescindível base científica, tecnológica e de engenharia, com todos os benefícios econômicos e sociais daí decorrente.
Guilherme Estrella
Geólogo, ex-diretor da Petrobrás.
N.R. O autor mantém a grafia do nome da estatal com acento agudo.