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(Millôr Fernandes)

sábado, 13 de março de 2021

O comício da Central do Brasil de 13 de março de 1964

Sábado, 13 de março de 2021

Do site Pátria Latina

Antônio Martins*
Após o 6 de janeiro de 1963, o “Dia do Não”, quando, através de plebiscito, o presidente João Goulart logrou recuperar os plenos poderes do cargo de presidente, derrotando o golpe do parlamentarismo, o governo se lançou no esforço de aprovação dos projetos das reformas de base, foco principal de seu governo, principalmente a Reforma Agrária.
No campo, os trabalhadores se mobilizavam, ocupando terras e usinas de açúcar, pleiteando melhores salários e a divisão da terra; os trabalhadores urbanos e seus sindicatos ensaiavam a greve geral como a dos transportes, em apoio ao governo e às reformas.
O resultado do Plebiscito, com mais de 70% dos eleitores apoiando o governo Goulart e a adesão crescente da classe média, mostrou que a bandeira das reformas de bases encontrava eco na grande maioria do povo brasileiro. Isso assustou as elites conservadoras de dentro do Brasil e, também, o grande capital internacional, representado pelos EUA.
Os meses que se seguiram foi de acirrado embate no parlamento e de mobilizações de camponeses, operários e estudantes em defesa das reformas.
Nos idos de março de 1964, a radicalização política crescia. Os sucessivos embates no Congresso Nacional era jogo de cartas marcadas pois, todas as tentativas do governo de aprovar projetos de Lei de cunho social ou nacionalista eram barradas.

As Reformas de Base, último grande programa social de governo no Brasil, procurava corrigir as graves desigualdades existentes no País: a miséria em que viviam os camponeses, o empobrecimento da classe média urbana que pagavam aluguéis exorbitantes, o privilégio do ensino de qualidade para poucos, a carência de saneamento básico e de moradia, a perda de valor do salário mínimo, entre outros.
Assim foi com o projeto da Refoma Agrária, embasado pelos estudos do brilhante agrônomo João Pinheiro Neto, superintendente da Reforma Agrária – SUPRA e sua equipe, em que milhões de famílias camponesas, sem terra ou que viviam em minifúndios, iam ter um pedaço de terra próprio para trabalhar, se libertando da condição de exploração como meeiro, assalariado ou bóia-fria. Seriam  brasileiros que teriam renda para seu próprio sustento e para consumir, fazendo circular a riqueza no país. Não era uma proposta “comunista” mas, sim, de um capitalismo moderno, rumo já trilhado por todos os países da Europa. Não há latifúndio na Europa!
Mas, o parlamento não deixava passar esse e outros projetos de alcance social, necessários para modernizar o Brasil, como a Reforma Urbana
que mudaria as condições atrasadas das relações entre proprietários urbanos e os inquilinos tornando esses em proprietários dos imóveis que habitavam. O mesmo com o projeto da remessa de lucros por empresas estrangeiras; pelo projeto, as empresas estrangeiras deveriam reinvestir parte dos lucros obtidos no país para promover o desenvolvimento local. E, ainda, o projeto da ampliação do monopólio do petróleo com a encampação das refinarias de Manguinhos e Capuava. Na educação, a aplicação do revolucionário “Método Paulo Freire”, estava tirando milhões do analfabetismo em curtíssimo prazo. O direito de voto para soldados e para os analfabetos, era também bandeira das “Reformas de Base”.
Mas, todos os projetos de iniciativa popular eram impedidos no Congresso. Nada passava!
O caminho encontrado pelo governo Jango foi pressionar o Congresso com a mobilização social. Esse foi o caso do grande comício pelas reformas, na Central do Brasil, num fim de tarde do dia 13 de março de 1964, uma sexta-feira.
O governo João Goulart e as reformas de base eram apoiados pela articulação operário-camponesa-estudantil, reunindo sindicatos de trabalhadores e de camponeses e a União Nacional dos Estudantes. Mas, o governo  recebia ferrenha oposição dos políticos da direita – Carlos Lacerda e a UDN à frente – dos latifundiários, do empresariado, da Igreja Católica e da parcela mais rica da classe média. A imprensa, com raríssimas exceções, como o jornal Última Hora, do Rio, estava alinhada com os conservadores e amplificavam ou fabricavam notícias e denúncias contra o governo “comunista”, que pretendia implantar no País uma “república sindicalista”.
As manifestações de massa pelas reformas se sucediam, como forma de pressionar o Congresso a aprovar os projetos reformistas. Por outro lado, com o amplo apoio da imprensa e com o apoio norteamericano, a direita fazia grandes comícios e vigílias contra o perigo comunista. Eram recorrentes, também, ações de rua da TFP – Tradição, Família e Propriedade, grupo de extrema direita católico, como nas calçadas da Av. Rio Branco em que, em roda, abordava as pessoas e distribuia cartilhas com historinhas sobre o totalitarismo comunista. Certa vez, os chamei de reacionários e, logo, fui cercado por três branquelos com cara de seminaristas que me ameaçaram e me empurraram do local. Havia, também, o CCC – Comando de Caça aos Comunistas, grupo de ultra-direita, que vez por outra era notícia. A direita importou  um pregador norte-americano, o Padre Payton, que promovia vigílias de orações nos principais estados do país contra o comunismo com o mote: “Família que reza unida, permanece unida”.
O governo Jango, então, usando prerrogativas constitucionais, decidiu implantar as reformas por meio de Decretos presidenciais.
Aprovar os decretos em praça pública foi a razão do grande comício da Central do Brasil de 13 de março de 1964.
Eu trabalhava, na ESSO, em frente ao Consulado Americano, na Av. Presidente Wilson. Em frente ao prédio, com frequência, havia a distribuição de cartilhas sobre governos ditatoriais da cortina de ferro, alertando para o perigo comunista. No dia do comício, me dirigi à Central por volta das 17h. Antes, combinei com alguns colegas de trabalho a ida ao comício. Esses colegas, que, como eu, defendia o governo Jango, estávamos formando um “Grupo dos Onze”, organização formada por Brizola para a uma eventual resistência. Éramos cinco, então.
Enquanto caminhávamos para a Central, assistia a chegada das caravanas de trabalhadores se dirigindo ao local, de todas as direções, com as faixas de apoio às reformas e ao Governo. Vinham de Niterói, da baixada, dos municípios do interior do Estado que desembarcavam na, então, rodoviária, na Praça Mauá, com camponeses e seus sindicatos à frente. Caravanas dos sindicatos operários, como os metalúrgicos, com suas faixas; de bancários, professores; da CGT e da  UNE; do PCB. Todos com faixas em defesa das reformas, em especial a Reforma Agrária e de apoio à Jango. A encampação de Capuava, refinaria de petróleo, também aparecia nas faixas junto com “Todo petróleo para a Petrobrás”.
A multidão era imensa, ocupando toda a área da Av. Presidente Vargas, em frente ao Campo de Santana e à Central do Brasil e ao, então, Ministério da Guerra. Música, bandas e rojões, estes assustando por lembrarem tiros. A polícia do Exército, conhecida por dela integrarem os  “catarinas” – soldados altos e brancos, muitos louros, catarinenses em sua maioria, recrutados pelo seu porte, estava postada em locais estratégicos e faziam a segurança do comício. Atrás de mim, uma pessoa lançou um rojão. Dele cairam panfletos pequenos. Peguei um para ler. Surpresa! Era contra Jango e as reformas. O reacionário não ficou parado, sumiu em meio à multidão. Havia tensão no ar. Estávamos no terreno da direita, da Guanabara do governador Carlos Lacerda, que havia decretado ponto facultativo  para esvasiar o comício. Manobra que não funcionou para a grande multidão que ocupou as ruas centrais do Rio.
Já escurecia, quando Jango e as lideranças chegaram até o palanque, em frente à Central. Jango vinha acompanhado de Maria Teresa, sua bonita mulher. No palanque estavam líderes do parlamento, do PTB e do governo, da CGT e da UNE, entre outros. Também estavam Miguel Arrais, Julião e Brizola, todos muito aplaudidos. Todos falavam da situação do momento e da necessidade urgente das reformas de base para o desenvolvimento do Brasil e, sobre a disposição de luta dos trabalhadores. João Goulart, o último orador, afirmou que já não dava mais para esperar pelo Congresso para implementar as reformas. Havia decidido fazer as reformas por decretos presidenciais, o que lhe permitia a Constituição. Ali, na praça pública, cumpria suas promessas com o povo e assinava, um por um, os Decretos que o parlamento recusava a aprovar.
O primeiro, da reforma agrária, dizia que todas as terras ao longo das rodovias e ferrovias federais, até 10 quilômetros de suas margens, seriam desapropriadas para fins da reforma agrária. A multidão exultou! “Manda brasa, Jango!”, era o grito da grande massa humana. Da mesma forma, quando se anunciou a encampação das refinarias de Capuava e de Manguinhos. E assim foi, ao anunciar as outras medidas que tomava o governo: a lei que limitava a remessa de lucros; o congelamento dos alugueis e a sua conversão, após 10 anos, em amortização de compra do imóvel, e outros mais. Tais projetos, parados no Congresso, passavam a valer por decretos. A multidão exultava!
Após as falas dos oradores, pouco a pouco, as pessoas, lentamente, começaram a se dispersar, retornando pra casa. Um dia memorável para os milhares de trabalhadores e populares que compareceram ao comício apesar do boicote do governador do Estado que decretou ponto facultativo para esvaziar a manifestação.
No dia seguinte, os jornais noticiavam que o público ao comício seria de mais de 200 mil pessoas.
Os jornais da direita, a Tribuna da Imprensa e o Globo, no Rio, carregaram nas críticas ao governo, alegando que Jango queria implantar uma ditadura sindicalista, governando sem passar pelo Congresso.
Os sindicatos e os trabalhadores estavam confiantes que era chegada a hora da mudança, que as reformas viriam, “na Lei ou na Marra”, como se falava.
Mas, no ar, havia, também, uma preocupação. Muitos acreditavam que uma reação estava por vir. Era preciso se preparar.
Eu, até então, não pensava em um golpe da direita. Se tentassem, acreditava que haveria forte reação popular. Milhares de operários e camponeses se levantariam por todo o Brasil para defender o governo Jango e para barrar a tentativa de golpe.
O povo trabalhador, que há muito esperava pelas Reformas de Base, participando na praça ou acompanhando em casa pelo rádio e pela TV, vibrava como nunca.
O Brasil começava a mudar.
Saímos dali de alma lavada!
*Antônio Martins, militante das lutas sociais, em 13/03/2021