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(Millôr Fernandes)

sábado, 12 de junho de 2021

Bolsonaro nega mortes na mesma semana em que surgem novas provas de sua negligência

Sábado, 12 de junho de 2021

Foto Alex Pazuello - Semcom


Jornal denuncia favorecimento a empresários da cloroquina, e estudo atualiza mapa de normas que favoreceram contaminação



Na mesma semana em que o Brasil viu o número de mortes por covid-19 se acelerar a ultrapassar 480 mil óbitos, o governo federal tentou dar tons oficiais aos questionamentos de Jair Bolsonaro sobre a veracidade dos dados sobre casos fatais. Na segunda-feira (7), o presidente mentiu ao afirmar a apoiadores que um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) colocava em dúvida as informações apresentadas pelos estados brasileiros.

Desmentido pelo próprio TCU no mesmo dia, o suposto relatório citado por Bolsonaro apontaria que metade das mortes relatadas não teria ocorrido por covid-19. No dia seguinte às afirmações do presidente, o Brasil voltava a registrar mais de 2,3 mil mortes por dia, resultado que não era observado há mais de um mês. Ao longo da semana, o ritmo de crescimento continuou subindo. Na quinta-feira (10), chegou a ultrapassar 2,5 mil em 24 horas.


Enquanto isso, Bolsonaro procurava maneiras de sustentar o negacionismo sobre os óbitos. Na terça (8), na quarta (9) e na quinta-feira (10), ele voltou a falar do assunto. Novamente, citou o tribunal e, novamente, colocou em dúvida os dados sobre as mortes do Brasil. No podcast A Covid-19 na Semana, o médico de família Aristóteles Cardona, da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, lembra que não é a primeira vez que o governo tenta maquiar os dados.

"Parece que o governo Bolsonaro está recheado de verdade alternativas, tentativas de esconder a realidade. Escondendo a realidade, fica mais fácil trazer essa realidade alternativa. Não à toa, em determinado momento da pandemia no ano passado, o governo tentou modificar a contagem de casos e mortes por covid-19. A realidade não iria mudar, era uma forma de esconder o que estava acontecendo", alerta o médico.

Autor afastado

O TCU identificou que o documento mencionado por Bolsonaro não é oficial. Foi produzido independentemente por um servidor da corte, cujo pai é amigo de presidente e teria repassado o enredo a ele. Apuração do jornal "Correio Braziliense" aponta que o auditor teria enviado a análise aos filhos de Jair Bolsonaro e ao presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Gustavo Montezano.

O jornal mostrou também que o servidor fora alertado por colegas sobre os riscos da tese infundada de que as mortes são superdimensionadas. Segundo o veículo, no começo da pandemia, o autor do relatório paralelo teria requisitado pessoalmente ficar responsável pelo acompanhamento de compras com recursos públicos de equipamentos para o enfrentamento da covid-19.


Segundo a hipótese levantada pelo servidor, os governos estaduais estariam inflando os números para receber mais verbas. No entanto, os valores destinados a políticas para conter a pandemia não estão relacionados ao número de mortes. Portanto, a tese não se sustenta nos fatos. Resultado: o auditor foi afastado de suas funções, e o TCU abriu procedimento interno para investigar a atuação dele, que foi impedido até de entrar na sede do órgão de contas..

Aristóteles Cardona afirma que a punição não diminui o estrago causado pelas mentiras, "O fato foi jogado, as manchetes foram criadas. Isso fica circulando nos grupos de mensagem e nas redes sociais, alimentando o discurso. Por mais que seja absurdo, por mais que a verdade seja colocada, está comprovado que esse tipo de notícia falsa corre muito mais e nem sempre acompanhada da informação correta", atenta o médico.

Foco em 2022 

Coincidentemente, a insistência do governo no assunto e em outras polêmicas vazias ocorreu na mesma semana em que notícias importantes e negativas para a gestão de Bolsonaro ocuparam manchetes e debates. A pandemia avança, a economia encolhe e as evidências de negligência no controle da covid aumentam. Para Aristóteles, o governo tenta esconder e maquiar informações para "enfrentar a eleição sem dados oficiais".

A pedido da CPI da Covid, um relatório que aponta ações deliberadas para propagação do coronavírus pelo governo ao longo da pandemia foi atualizado. O documento é de autoria da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), em parceria com a ONG Conectas Direitos Humanos. A análise das leis e decisões da gestão de Bolsonaro aponta que elas causaram impacto proposital no crescimento da doença.

Em vetos, medidas e atos, a percepção explícita é de que havia uma intenção formal de aumentar a circulação do vírus, com a falsa ideia de que isso imunizaria a população naturalmente e traria controle da pandemia. "O governo federal passou a promover a 'imunidade de rebanho' por contágio como meio de resposta à pandemia", diz o estudo. A estratégia criou o espaço ideal para o descontrole do vírus e as novas cepas, muitas vezes mais infecciosas e mortais.


Impulsionada pela crise sanitária e pela falta de medidas concretas para manutenção do consumo e contenção dos preços, a inflação em maio foi a pior para o mês dos últimos 25 anos. Uma parte considerável da força da crise econômica está diretamente ligada à inação do governo federal frente à pandemia. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, a renda das famílias caiu 10% apenas nos primeiros três meses desta ano e está em declínio há quatro trimestres.

Pesquisa da consultoria Kantar, indica que a escalada no preço está levando os brasileiros a aumentar o consumo de alimentos ultraprocessados mais baratos. O tradicional arroz, feijão, carne e salada foi substituído por presuntos, salsichas, hambúrgueres e pães industrializados, apenas mais uma das consequências do caos que vive o Brasil. Na sexta-feira (11), a Petrobras anunciou aumento de 5,9% no preço do gás de cozinha, décima quarta alta consecutiva dos últimos meses.

Para completar o combo de informações que deveriam levar o governo a agir e tentar conter a crise, na quinta-feira (11), o jornal "O Globo" divulgou denúncias de que Bolsonaro teria favorecido empresários fabricantes de hidroxicloroquina. O presidente tentou agilizar a importação de substâncias para a produção do medicamento em conversa direta com o governo indiano. Uma das companhias desses empresários assinou contrato com o BNDES no valor de 153 milhões de reais em 2019. 


"É mais um crime que se configura. Qualquer que fosse o presidente, se aparecesse a denúncia de que interferiu com um governo estrangeiro para beneficiar um grupo de empresários, é um claro absurdo. Não estamos falando de medicamento comprovado, não estamos falando de medicamento de ação eficaz, não estamos falando de vacina", enfatiza Cardona.

Em meio às notícias desvantajosas, na quinta-feira (10), o presidente ainda encontrou tempo para afirmar que o ministério da Saúde preparava um parecer para desobrigar o uso de máscara a pessoas já vacinadas. O equipamento de proteção é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) enquanto a porcentagem de imunizados ainda for baixa. Com o ritmo da vacina no Brasil, ainda não é seguro abrir mão do uso, segundo cientistas do mundo todo.

No dia seguinte, Bolsonaro resolver fazer uma visita a um avião comercial, durante o retorno de uma viagem que fez ao Espírito Santo, para tirar fotos com membros da tripulação. Ao entrar na aeronave, ele foi hostilizado por passageiros aos gritos de "genocida" e "Fora Bolsonaro". O vídeo viralizou e entrou em destaque nas redes sociais e na imprensa. Horas depois, o Brasil completava seis dias seguidos de alta na média diária de mortes por covid-19.

"Parece que o Bolsonaro quer isso mesmo, quer instituições desacreditadas. Quanto mais desacreditadas as instituições, fica mais fácil para ele vencer a eleição em 2022 e, se perder, dizer que o processo foi fraudado. A política é essa, criar confusão, enfraquecer as instituições. Isso precisa ficar registrado. Que a gente cobre para que isso tudo tenha consequências e não seja simplesmente uma constatação", finaliza Aristóteles Cardona.

Edição: Vinicius Segalla