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(Millôr Fernandes)

sábado, 5 de março de 2022

O “IMPOSTO PRIVADO” PAGO NAS UTILIZAÇÕES DOS CARTÕES DE DÉBITO E CRÉDITO

Sábado, 5 de março de 2022

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 5 de março de 2022

A República Federativa do Brasil deve ser constituída como uma sociedade livre, justa e solidária centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações (arts. 1o, inciso III e 3o, inciso I da Constituição). Nos 522 anos de história formal, o Brasil não experimentou nada nem próximo a esse quadro. A maior parte desse período foi marcada pela escravidão (com profundas heranças raciais, sociais, políticas e econômicas) e por relações socioeconômicas autoritárias e violentas. Uma profunda injustiça social percorreu, sem exceções estruturais, toda a história da nação brasileira desde o “descobrimento” em 1500.

Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado no final de 2020 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), “… apenas 44,8% dos lares tinham seus moradores e suas moradoras em situação de segurança alimentar. Isso significa que em 55,2% dos domicílios os habitantes conviviam com a insegurança alimentar, um aumento de 54% desde 2018 (36,7%)./Em números absolutos: no período abrangido pela pesquisa, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos./Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave)” (fonte: olheparaafome.com.br).

A injustiça social brasileira, manifestada em seríssimas desigualdades econômicas e na pobreza extrema de largas parcelas da população, como destacado nos dados da Rede PENSSAN, não decorre da corrupção, apontada por inúmeros atores políticos como a principal causa dessas mazelas. A corrupção no setor público, é crucial compreender, compromete, até certo ponto, o emprego de recursos nos serviços públicos fundamentais.

Entretanto, a pobreza, no Brasil, decorre fundamentalmente da falta de renda suficiente para que dezenas de milhões de brasileiros consigam ter uma vida digna. É preciso, portanto, afirmar com veemência que as carências nos níveis atualmente observados estão diretamente relacionadas com a forma profundamente atrasada, desumana até, de funcionamento do modo de produção capitalista no Brasil. Temos uma organização socioeconômica com mecanismos e instrumentos cuidadosamente construídos e inseridos na institucionalidade jurídica que concentra riquezas na ponta da pirâmide social e subtrai, na base da sociedade, o mínimo de renda para uma considerável parte dos brasileiros.

Alguns desses mecanismos possuem expressão financeira da ordem de centenas de bilhões ou mesmo trilhões de reais. Um rápido apanhado, não exaustivo, identifica: a) sonegação fiscal; b) serviço da dívida pública; c) formação de reservas monetárias; d) swap cambial; e) preponderância da tributação sobre o consumo; f) benefícios fiscais; g) subsídios; h) operações compromissadas; i) recursos em paraísos fiscais e j) juros pagos em função do endividamento das empresas e famílias.

O economista Ladislau Dowbor afirma com propriedade: “... a forma dominante de apropriação do excedente por minorias pouco ou nada produtivas — o mecanismo básico de exploração, para deixar claro do que se trata - deslocou-se e sofisticou-se. Onde tínhamos, e evidentemente ainda temos, a apropriação através dos baixos salários, a tradicional mais-valia, hoje temos também a expansão de formas inovadoras de apropriação, gerando uma sociedade dominantemente rentista. (…) a forma de extração de mais-valia cada vez mais se centra em mecanismos financeiros de exploração” (Livro “O Capitalismo se desloca. Novas arquiteturas sociais”).

Destacamos, neste modesto escrito, mais um desses mecanismos bilionários de transferência de riqueza do conjunto da sociedade brasileira, notadamente dos trabalhadores, para a fina flor do mercado financeiro. Trata-se do percentual cobrado, sobre o valor dos bens e serviços, nas operações com cartões de débito e crédito. Como é de conhecimento geral, nessas transações incide um percentual de 3 a 5% sobre o valor total. Essa quantia é, invariavelmente, transferida para o consumidor.

Essa exigência funciona como um verdadeiro “imposto privado”. É instituído, arrecadado e destinado a atores estritamente privados. É praticamente obrigatório para quem utiliza cartão de débito ou crédito. Ademais, incide como percentual na operação, quando os custos operacionais e uma margem de lucro civilizada importaria em valores significativamente menores.

Segundo dados divulgados pela ABECS (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços), a média mensal de gastos de brasileiros no Brasil e no exterior é a seguinte, para o período de setembro de 2019 a setembro de 2021: a) cartão de débito: 68,93 bilhões de reais e b) cartão de crédito: 109,39 bilhões de reais. Esses números apontam para um montante de cerca de 75 bilhões de reais por ano auferidos a título do denominado “imposto privado” relacionado com o uso de cartões de débito e crédito. Para efeito de comparação, registre-se que o lucro líquido da Petrobras alcançou 106,6 bilhões de reais em 2021 (fonte: cnnbrasil).

Eis algumas das instituições associadas da ABECS: a) American Express Brasil; b) Bradesco; c) Bradescocard; d) BTG Pactual; e) Citibank; f) Bancoob; g) Banco do Brasil; h) Itaucard; i) Banco Safra; j) Santander; k) Banco XP; l) Caixa Econômica Federal; m) BRB; n) CIELO; o) ELO; p) Ifood; q) Mastercard Brasil e r) Visa do Brasil.

É muito sintomático que esse “imposto privado” sobre o uso de cartões de débito e crédito, notadamente em função do montante de recursos “arrecadados”, não desperte a devida atenção da grande imprensa, do governo, dos economistas e dos juristas. Trata-se, à toda evidência, de atenções, ou desatenções, seletivas para fenômenos econômicos relevantes em função dos atores sociais envolvidos ou beneficiados.

Observe-se que o simples debate sobre a adoção de certos tributos, como aquele incidente sobre transações bancárias, mais especificamente sobre a saída de recursos de contas, provoca um barulho enorme, notadamente ao argumento falso (porque não pode ser generalizado) de que a carga tributária já atinge patamares insuportáveis. Para o bilionário e absurdo “imposto privado” sobre o uso de cartões de débito e crédito impera um sintomático silêncio.

O caminho da superação das profundas desigualdades socioeconômicas brasileiras não será obra de salvadores da pátria ou cavaleiros “incorruptíveis” ungidos pelos deuses. O desenvolvimento econômico socialmente justo e sustentável, em suas várias perspectivas, passa pela necessidade de conscientização, organização e mobilização dos setores democráticos, populares e progressistas para uma atuação consequente no desmonte dos mecanismos construídos para viabilizar transferências monumentais de riquezas do conjunto da sociedade (praticamente 99%) para um punhado irrisório de privilegiados (1% ou menos).