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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

A Diplomacia e o conflito entre o Saara Ocidental e o Marrocos

Segunda, 20 de fevereiro de 2023
No Brasil, a Associação de Solidariedade pela Autodeterminação do Saara Ocidental-ASAARAUI vem solicitando ao governo brasileiro o reconhecimento da República Árabe Saarauí Democrática-RASD.  Foto: Reprodução Wikipedia

Do Portal Contexto Exato
Por Salin Siddartha

Atualmente, o Saara Ocidental encontra-se invadido pelo exército marroquino, o que levou à divisão do seu território em duas partes: uma zona livre, de onde o governo saarauí organiza a vida de seu povo, e uma zona ocupada ilegalmente pelo Marrocos, onde a população que lá se encontra isolada e dominada luta pela sua liberdade. Assim, a República Árabe Saarauí Democrática-RASD, ao passo que se confronta belicamente, também sustenta um empenho diplomático pelo reconhecimento da causa desfraldada pela luta por sua libertação e autonomia, com quase cem países mantendo relações oficiais de diplomacia com o Saara Ocidental.

No Brasil, a Associação de Solidariedade pela Autodeterminação do Saara Ocidental-ASAARAUI vem solicitando ao governo brasileiro o reconhecimento da República Árabe Saarauí Democrática-RASD. Como parte de suas atividades, em reunião de agradecimento, a ASAARAUI despediu-se, no dia 12 de dezembro, do ex-Representante da República Árabe Saarauí Democrática-RASD no Brasil, Emboirek Ahmed; em seu lugar, assumiu Ahmed Mulay Ali Hamadi. Escritor de fama mundial e Diplomata, formado em Relações Internacionais pela Universidade Nacional do México-UNAM, Ahmed Mulay é membro da Academia Mexicana de Direito Internacional e foi Embaixador do Saara Ocidental no México até o ano passado, posto que exercia desde 2004, logo após de deixar o cargo de Delegado da Frente Polisário em Madri, que ocupou em 2002 e 2003.

A República Árabe Saarauí Democrática-RAS é uma nação independente que tem Constituição, parlamento, poder judiciário e presidência da República. É um Estado com uma sociedade organizada em franco funcionamento.

O Saara Ocidental abrange 26 mil km². Localizado na África Ocidental, é um território que constitui uma extensão do deserto do Saara, que vai até a costa atlântica; situa-se entre o norte da Mauritânia, o sul do Marrocos e o oeste da Argélia. Banhado pelo oceano Atlântico, o país se encontra na mesma direção das Ilhas Canárias. A população saarauí é etnicamente árabe-bérbere, com uma pequena porção de negros; a cultura bérbere se encontra no Saara Ocidental por intermédio dos tuaregues, um povo composto por pastores seminômades, agricultores e comerciantes. A maioria da população é islamita sunita.

O que diferencia os saarauís dos povos da Mauritânia, dos marroquinos e dos argelinos é a miscigenação dos povos árabes e bérberes, somada à cultura nômade que durou até a fixação da população na década de 1960, como consequência da colonização espanhola. É um povo que tem uma cultura exuberante. Lá, em 50 anos, não há um só caso de feminicídio, nem existem moradores de rua ou quem peça esmola pelas vias públicas; embora em guerra, no Saara Ocidental o serviço militar não é obrigatório e, a cada mês na frente de batalha, os soldados recebem três meses de descanso.

O Saara Ocidental possui vastas reservas de fosfato, gás natural, petróleo, telúrio, cobre, ferro, urânio, areia para a produção de cimento e para alargamento de praias. Lá também existem hortas e agricultura de produtos temporãos, especialmente tomate e melão.


A invasão marroquina

O Saara Ocidental tem grande parte do seu território invadido e ocupado militarmente de forma ilegal pelo Reino do Marrocos desde 1976, logo após o fim da possessão espanhola, que já o ocupava no final do século XIX. A invasão inesperada do Marrocos deu-se por terra e ar, com a força aérea marroquina usando napalm, bombas de fósforo e bombas de fragmentação que provocaram a morte de 530 cidadãos civis. Então, dezenas de milhares de pessoas cruzaram o deserto para escapar dos bombardeios – parte delas refugiou-se na Argélia –; foi o início da diáspora saarauí. Felizmente, a Argélia concedeu-lhes asilo político.

O Marrocos não só manteve a invasão, mas ainda enviou 350 mil militares e civis marroquinos para a região que ocupou, garantindo, desse modo, o controle sobre a maioria do território da República Saarauí, situando-se, principalmente, na porção norte do país, onde se encontra a maior reserva mineral de potássio do mundo.

Resistindo organizadamente aos usurpadores da terra do seu país, ainda no tempo da ocupação espanhola, o povo saarauí havia fundado, em 1973, em Samara, cidade situada em pleno deserto do Saara, no vale do Saguia-el-Hamra, rica em pastagens e água, a Frente Polisário (sigla de Frente para a Libertação de Saguia-el-Hamra e Rio de Ouro, organização política de resistência para dar combate ao inimigo invasor). A Frente Polisário unificou movimentos e partidos políticos saarauís em torno da luta pela independência – que se deu, primeiro, contra a Espanha, depois contra o Marrocos; assim, o povo saarauí empreendeu, sob a liderança da Frente Polisário, uma forte resistência.

A Frente Polisário é um movimento político-revolucionário apoiado pela Argélia (que contesta a invasão marroquina e dá abrigo à Frente), país onde vivem refugiados saarauís. Após a invasão marroquina, a Frente Polisário recrudesceu, organizando a guerra contra a ocupação, iniciando o conflito.

Assim, desde 1976, o Saara Ocidental é palco de uma guerra entre o Marrocos e a Frente Polisário, que, apoiada pela Argélia, está em guerra pela expulsão das forças marroquinas no seu país, que o ocupam, prendem, torturam e assassinam mulheres e homens residentes na parte invadida por aquelas forças estrangeiras.

Como consequência, logo após aquele primeiro bombardeio, criou-se, de imediato, o Exército Popular de Libertação do Povo Saarauí-EPLPS como braço armado da Frente Polisário para combater as forças marroquinas. Ato contínuo, em maio de 1976, o EPLPS, composto, ainda incipientemente, por cinco mil guerrilheiros voluntários, começou a contraofensiva. Com exceção das historicamente experientes tropas nômades que o compunham, a maioria dos guerrilheiros, na época, não tinha formação militar e combatia de forma instintiva, sofrendo autênticas carnificinas.

O Exército Popular de Libertação do Povo Saarauí é o braço armado da Polisário, seu líder supremo é o Secretário-Geral da Frente Polisário. A estrutura da Frente engloba não só o Exército Saarauí, mas também outros organismos, como a Liga de Proteção dos Presos Políticos Saarauís nos Cárceres Marroquinos-LPPS, a União Nacional de Mulheres Saarauís-UNMS e a Frente Juvenil Saarauí.

O Exército Popular Saarauí é pequeno, todavia é profissionalmente bem treinado, conquanto acordos militares firmados com a Espanha, Estados Unidos, Israel e França façam com que o Marrocos disponha dos mais modernos equipamentos militares.

O Marrocos construiu um muro de 2.720 quilômetros (o equivalente à distância entre Brasília e Porto Alegre) para separar as famílias que vivem nos campos de refugiados e no território não-invadido das que estão na parte ocupada por aquele país estrangeiro; é o maior muro do mundo e foi construído com apoio de Israel. Além disso, espalhou 10 milhões de minas terrestres subterrâneas nas cercanias do muro, soldados, radares com alcance de até 10 quilômetros de distância, e arames farpados para repelir qualquer aproximação. É uma muralha que se estende de norte a sul e de oeste a leste dentro do território do Saara Ocidental. No muro construído pelo Marrocos com assessoria de Tel Aviv, 150 mil soldados marroquinos o vigiam abrigados em bases a cada dois quilômetros. O Exército da RASD, defendendo seu país da invasão, lançou ofensivas contra bases militares marroquinas espalhadas por distintos pontos do muro, reivindicando ganhos táticos, mesmo com uma tropa numericamente inferior. A diplomacia e o exército argelinos demonstram apoio à causa saarauí.

Neste primeiro semestre, o Marrocos completará 48 anos de ocupação ilegal no Saara Ocidental, praticando inúmeras violações de direitos humanos. Apesar das hostilizações, os militares saarauís declaram enfaticamente que não abandonaram a relação de irmandade com o povo marroquino em si, pois eles também são árabes e muçulmanos.

A questão do Saara Ocidental envolveu todos os países do continente africano, que, por meio da União Africana-UA, formada por 55 Estados-membro, e outros 44 países, reconheceram a República Árabe Saarauí Democrática-RASD como Estado soberano, ainda que ocupado, com o governo no exílio.

Em 1974, a Espanha houvera solicitado à Corte Internacional de Justiça parecer sobre o Saara Ocidental cuja decisão considerou que nenhum país, nem Marrocos nem Mauritânia, poderia ter soberania sobre aquele território. A Corte Internacional de Justiça, portanto, estabeleceu que não existe vínculo do Saara Ocidental com país algum que lhe dê o direito de reivindicar controlá-lo, e que sua administração cabe ao povo natural da região. Apesar de a Corte Internacional ter tomado essa decisão, o Marrocos manteve a invasão.


O acordo do cessar-fogo

A União Africana e a ONU passaram a construir alternativas para a paz que vieram a culminar em um acordo de cessar-fogo, assinado em 1991, quando o rei do Marrocos negociou a autodeterminação do povo saarauí, referendada pelo Direito Internacional. O cessar-fogo se efetivou sob o patrocínio da Organização das Nações Unidas. Naquela data, a Frente Polisário já travava uma longa guerra de resistência que durava dezesseis anos contra o Marrocos.

Em 1987, a ONU estabeleceu um acordo com o Marrocos e a Frente Polisário para a realização de um referendo, marcado para 1992, a fim de que o povo saarauí decidisse sobre se desejaria ou não a independência do Saara Ocidental, e foi selado um cessar-fogo. Em abril de 1991, a ONU criou a MINURSO-Missão das Nações Unidas para um Referendo no Saara Ocidental, cuja missão era a de implementar um plano de paz delineado em 1990 por uma resolução do Conselho de Segurança. A MINURSO seria responsável pela convocatória do referendo sobre a autodeterminação do povo saarauí, e os capacetes azuis da ONU passaram a controlar uma zona desmilitarizada previamente definida. Inclusive, em 2019, a Tenente-Coronel do Exército Brasileiro, Andrea Firmo, chegou a chefiar a MINURSO em Tifriti. A Tenente-Coronel citada foi a primeira mulher do Exército Brasileiro a exercer a função de observadora militar em missão da ONU; ela liderou 18 observadores militares de diversas nacionalidades, no lado leste do conflito entre a Frente Polisário e o Marrocos. Nesse período, perdurou uma situação de impasse por mais de 30 anos sem guerra e sem paz, interregno de tempo em que o Marrocos conseguiu criar uma nova zona militar ao longo de sua fronteira com a Argélia, num momento de tensão entre aqueles dois países do Magrebe, durante o qual a Argélia rompeu relações diplomáticas com o Marrocos.

Entrementes, o referendo nunca ocorreu, pois quando a MINURSO completou o censo populacional prévio para a votação, o Marrocos passou a exigir que os colonos marroquinos ocupantes do Saara Ocidental também pudessem participar do pleito, contrariando a Frente Polisário, que só aceita que sejam participantes os habitantes cadastrados no censo, e não os marroquinos que estão ilegalmente em território saarauí. Após 32 anos, o referendo ainda não foi realizado: o Marrocos não quer que ele aconteça porque sabe que o resultado será favorável à autodeterminação dos saarauís.

Em 2007, o governo marroquino apresentou à ONU um plano pelo qual o Saara Ocidental poderia autogovernar-se, mas com a condição de que suas fronteiras, segurança e política externa permanecessem sob o controle total do Marrocos — evidentemente, a Frente Polisário não aceitou, posto que seria uma tentativa do Marrocos de destruir a RASD como Estado independente.


A violação do acordo do cessar-fogo

No dia 13 de novembro de 2020, o cessar-fogo assinado com a Frente Polisário, em vigência há quase 30 anos, foi violado por parte do Marrocos, ao atacar a posição sul do Saara Ocidental denominada Fenda de Guerguerat. Como não houvesse reação da ONU ao ataque, os saarauís colocaram-se em estado de guerra e retomaram a luta armada, com o Exército Popular de Libertação do Povo Saarauí revidando o ataque marroquino e bombardeando suas bases.

O Exército Saarauí tem enfrentado uma guerra atroz, que continua até hoje, e a Frente Polisário já declarou que os combates persistirão até a retirada total das tropas marroquinas de ocupação. Assim sendo, há 50 anos, o povo saarauí luta pela sua liberdade, e a questão do Saara Ocidental permanece sendo dos conflitos mais antigos da história contemporânea. Às vezes, até parece que a causa do povo saarauí foi olvidada pela Organização das Nações Unidas; também tem sido negativa a posição de alguns países da União Europeia, como a da Espanha.

Os acampamentos de refugiados e a violação de direitos na área invadida pelo Marrocos

O povo saarauí tem uma população de cerca de 600 mil habitantes, sendo que 260 mil se encontram nos acampamentos de refugiados, localizados em Tindouf, na Argélia, na região mais inóspita do deserto, cerca de 200 mil estão no território liberado e outros 100 mil vivem no exílio, em outros países, dispersos pelo mundo, principalmente na Espanha, França, Mauritânia e Mali. O Governo da República Árabe Saarauí Democrática está instalado no exílio, na Argélia, de quem tem recebido respaldo militar em conjunto com a África do Sul e o Irã, que também respaldam militar e politicamente o Saara Ocidental. Há cinco campos de refugiados no deserto do Saara, desde 1975: Dajla, Auserd, Aion, Bojador e Semara. Cada campo de refugiados é considerado um estado, com um governo designado pela população; eles possuem representantes no Parlamento Saarauí, composto por 101 congressistas eleitos pelo voto popular.

Os assentamentos são assistidos pela ONU, por meio do Programa Mundial de Alimentos-PMA, dada a escassez de água e alimentos na região desértica, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados-ACNUR e a Comissão Europeia para Ajuda Humanitária e Proteção Civil-ECHO. Seu cotidiano transcorre em condições extremas, mas os campos de refugiados têm uma auto-organização política, funcionando como províncias que elegem seus governadores. A sede da Frente Polisário fica em Rabouni.

Prisões políticas, torturas, desaparecimentos forçados, julgamentos irregulares, perseguições e repressão brutal de manifestações na área ocupada pelo Marrocos são algumas das violações frequentemente denunciadas. A presidente da Liga Saarauí de Direitos Humanos, Sultana Khaya, está em prisão domiciliar, há um ano; ela denunciou a violação da sua irmã pelas tropas marroquinas.


A exploração ilegal das riquezas do território saarauí pelo Marrocos

Com apoio tácito dos Estados Unidos, França e Israel, é que o Marrocos controla dois terços do território do Saara Ocidental. Essa ocupação se dá devido a grandes riquezas minerais que existem no país saarauí.

Em 1941, o governo espanhol descobriu a mina de fosfato de Bou Craa, que é uma das maiores do mundo (o fosfato é uma substância usada para a produção de fertilizantes); a descoberta passou a nortear o desenvolvimento do antigo Saara Espanhol. Desde 1953, quando foram descobertos enormes depósitos de fosfato na parte norte do Saara Ocidental, a região virou uma área cobiçada por qualquer país que pudesse impor-lhe controle. O Saara Ocidental passou a ter grande importância estratégica com ainda mais descobertas, na década de 1960, de importantes jazidas de fosfato, que passaram a ser exploradas por uma empresa espanhola.

A mina de Bou Craa pertence, atualmente, à empresa estatal marroquina Office Chérien des Phosphates-OCP. É a segunda maior produtora de fosfato do mundo e principal exportadora de fosfato bruto e ácido fosfórico, bem como uma das principais exportadoras de fertilizantes fosfatados; em 2012, a OCP era responsável por 6% do Produto Interno Bruto do Marrocos, mas chegou a responder por até 33% do PIB, em 2008. A Espanha ainda retém 35% das ações da empresa Phosboucraa sobre os depósitos das minas de fosfato de Bou Craa.

O Saara Ocidental é um país que possui importantes recursos naturais, como minérios de ferro, urânio, cobre, petróleo, gás natural e peixes, não obstante a monarquia marroquina se apropriar de tudo. O Marrocos explora os recursos econômicos do Saara Ocidental sem que tenha direito sobre eles, principalmente o fosfato e a pesca.

Há interesses economicamente muito fortes de empresas espanholas no Marrocos para a exploração de diversos setores do Saara Ocidental: turismo, minérios, interesses da monarquia espanhola e interesses pessoais de muitos políticos espanhóis. O Marrocos é o principal sócio comercial da Espanha fora da União Europeia, concentrando 45% das exportações espanholas para o continente africano. Há também um acordo que dá à Espanha direitos de pesca nas águas territoriais do Saara Ocidental (existem empresas espanholas que exploram a pesca – todas negociam diretamente com o Marrocos).

Sua costa é rica em recursos pesqueiros. A Vila Cisneros (Dakhla), capital da província de Oued-Ed-Dahab-Lagoura, é uma cidade administrada pelo Marrocos, que, usurpadoramente, a considera parte do seu território. Ela fica à beira de uma lagoa de água salgada, tendo, como principais atividades econômicas, a pesca e o turismo. Vila Cisneros tornou-se, nos últimos anos do século XX, um centro de “surf casting” (pesca nas ondas), “kitesurf” e “windsurf”, mas toda a riqueza que ela gera é usurpada pelo Marrocos.

No Saara Ocidental, existem empresas de diversos países, notadamente porque, há aproximadamente 12 anos, descobriram que o país possui petróleo e gás natural. Na contramão da luta saarauí pela libertação, corporações estadunidenses e europeias têm-se apressado por aproveitar as concessões das reservas de petróleo localizadas no território ocupado. Empresas e Estados que atuam de forma ilegal e sob total impunidade constituem um apoio material e político à ocupação ilegal marroquina, portanto, contribuem com as violações sistemáticas aos direitos humanos da população saarauí.

Como os Estados Unidos apresentam vulnerabilidade no que diz respeito a recursos minerais para abastecer seu consumo, são altamente dependentes de importações de minerais não-combustíveis, necessitando de fosfato de rocha, cobre, sal, cimento, produtos que são estratégicos para sua economia, visto que se usam também em fertilizantes. São produtos que o Saara Ocidental os tem em quantidade plenamente significativa, e que os EUA compram por intermédio do Marrocos.

Existe produção agrícola no Saara Ocidental para os quais há um mercado significativo na União Europeia. Essa produção foi estimada em 64 mil toneladas, em 2016. O valor da importação dessa produção ascende a cerca de 65 milhões de euros. Assim, também a terra agrária está gerando negócios muito lucrativos para o Marrocos, com empresas do próprio rei Mohamed VI à frente; o exemplo mais nítido são os tomates “cherry” que se produzem em estufas ou em cultivos abertos à volta de Djla, a segunda cidade mais importante do Saara Ocidental. É um açambarcamento de terras pela via da violência direta, visível.

Em 2004, os Estados Unidos renunciaram a seu Acordo de Livre Comércio com o Marrocos, por entender como ilícitas suas atividades econômicas e comerciais na área do Saara Ocidental, enquanto a Alta Corte do Reino Unido excluiu do seu Acordo de Pesca com aquele país produtos pescados no litoral do Saara Ocidental.

A Frente Polisário pediu ao Tribunal de Justiça da União Europeia-TJUE a anulação do Acordo de Pescas firmado entre a UE e o Marrocos por incluir as águas territoriais do Marrocos Ocidental – cada vez que os europeus compram polvo, é altamente provável que provenha de águas territoriais do Saara. Em 10 de dezembro de 2016, o Tribunal de Justiça da União Europeia condenou o Reino do Marrocos ao julgar que os frutos que cultivava no Saara Ocidental seriam excluídos do Acordo de Comércio entre o Marrocos e a União Europeia.

Há uma campanha mundial das organizações progressistas para impedir a exploração dos recursos naturais saarauís, as quais já obrigaram empresas norueguesas e australianas a se retirarem, sob argumentos éticos. Brasil, Índia, China, Nova Zelândia e Japão são os países que ainda recebem o fosfato roubado do Saara Ocidental.

O Brasil importa recursos ilegais dos territórios ocupados, como fosfato e sardinha. Nos últimos três anos, o Brasil recebeu, ilegalmente, embarcações com fosfatos do Saara Ocidental, totalizando centenas de milhares de toneladas, consolidando-se entre os quatro maiores importadores mundiais de minério. Na pauta de importações brasileiras originárias do Marrocos, predominam os adubos e fertilizantes, como o superfosfato de fósforo; em 2014, esse grupo representou 59,7% do total, seguido de sal/pedras/cimento – fosfatos de cálcio naturais, não-moídos, com 5,6%, e produtos químicos inorgânicos (outros ácidos fosfóricos), com 2,1%.

O fosfato roubado do Saara Ocidental vai para duas empresas em Cubatão-SP: a Cesari Fertilizantes-Cefértil e a Copebras, vinculada ao grupo chinês China Molybdenum-CMOC; para elas, as Minas de Bou-Craa exportaram um milhão de toneladas em 2019, com uma receita estimada de U$200 milhões de dólares revertidos ilegalmente ao Marrocos. A multinacional chinesa CMOC, dona da indústria de fertilizantes Copebras prometeu a seus investidores não importar mais para o Brasil fosfato roubado do Saara Ocidental.

O “marrocosgate”

A Frente Polisário acusa Madri de ter feito um acordo informal com Rabat para apoiar o Marrocos em troca de mais controle da polícia marroquina na fronteira entre os dois países. Para a União Europeia, Marrocos é um parceiro imprescindível no Frontex, o programa de controle de fronteiras da UE fora das fronteiras da Europa, em que europeus, para se defenderem, empurram para o continente africano, como quem lava as mãos, a responsabilidade pela sua vergonhosa e violenta política de imigração.

O Marrocos tentou influenciar deputados, ex-deputados e funcionários do Parlamento Europeu por meio de corrupção; era o “lobby” das criptomoedas junto àquele Parlamento, no qual se reconhece que o Marrocos era o cérebro da trama. Há suspeita de que, na votação que em 2019 incluiu o Saara Ocidental no âmbito geográfico do acordo de Pesca entre a UE e o Marrocos, havia uma organização usada pelo Marrocos para interferir na política europeia com a missão de gerir dinheiro: a Fight Impunity, com sede em Bruxelas.

Enquanto isso, as investigações dom Parlamento Europeu sobre o escândalo do “marrocosgate” avançam com o pedido de proibição da entrada de diplomatas marroquinos naquele parlamento devido à constatação da corrupção do Marrocos na instituição legislativa europeia, bem como à exigência de revisão de todos os acordos celebrados entre o Parlamento Europeu e o Reino do Marrocos que incluem a área ocupada do Saara Ocidental. Afirma-se, no Parlamento Europeu, que o Poder Legislativo da União Europeia foi cúmplice do país ocupante quando se recusou a criar comissões de inquérito sobre a tortura e as violações dos direitos humanos cometidas pelo Marrocos naquele território.

O Primeiro-Ministro do Marrocos quis subornar o ex-deputado José Bové, quando este era relator do Acordo Comercial entre a UE e o Marrocos em 2012. A influência marroquina nas decisões dos eurodeputados se fez na escolha de quem receberia o Prêmio Sakharov: na ocasião, os eurodeputados socialistas espanhóis receberam ordem escrita do eurodeputado português Pedro Marques, vice-presidente do grupo socialista e membro da subcomissão dedicada às relações com o Magreb, para que não votassem na presidente da Liga Saarauí de Direitos Humanos, Sultana Khaya. Essa decisão foi tomada com o conhecimento e acordo da presidente do grupo socialista (a espanhola Iratxe Garcia) depois de consulta ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Espanha, que, naquela ocasião, procurava normalizar a sua relação com o Marrocos.

Os aliados do Marrocos e os países e organismos que apoiam a RASD
Estados Unidos e França são os principais aliados do Marrocos no Conselho de Segurança da ONU a frear o avanço da causa saarauí naquele organismo. Embora a Subsecretária de Estado dos Estados Unidos para os Assuntos das Organizações Internacionais, Michele Sison, tenha afirmado, durante visita a Argel, em 26 de janeiro passado, que os EUA apoiam os esforços de Staffan de Mistura, enviado do Secretário-Geral das Nações Unidas para o Saara Ocidental e o trabalho desenvolvido pela MINURSO, os Estados Unidos continuam, indiretamente, a apoiar a prática marroquina de usurpação da soberania da RASD.

Contudo, o Ministro de Negócios Estrangeiros de Portugal, João Cravinho, declarara, em 24 de janeiro de 2023, que a situação no Saara Ocidental se agrava em face do descumprimento do Direito Internacional e das resoluções das Nações Unidas pelo Reino do Marrocos, pela forma como este país tem inviabilizado sistematicamente a realização do referendo e da própria atuação da missão da ONU para o Saara Ocidental.

A RASD é membro oficial da União Africana e é formalmente reconhecida por 82 países que já estabeleceram relações diplomáticas formais com o governo saarauí. Argélia e África do Sul, dois membros influentes da UA, apoiam há tempos a luta da Frente Polisário. Também diversos organismos estrangeiros e a Organização das Nações Unidas consideram que o Saara Ocidental tem direito à independência.

Após uma manifestação de milhares de pessoas em Madri, em apoio à autodeterminação do Saara Ocidental logo depois de o governo espanhol apoiar a posição intervencionista do Marrocos naquele país africano, a Espanha mudou de posição e abandonou sua postura de apoio à monarquia marroquina.

Há muita omissão da comunidade internacional e do Brasil. Nosso país é um dos únicos da América do Sul, ao lado do Chile e da Argentina, que ainda não reconhecem a independência do Saara Ocidental, apesar de mantermos uma posição de neutralidade – contudo, três países lusófonos reconhecem a República Árabe Saarauí Democrática: Angola, Moçambique e Timor Leste. Já a Bolívia promete a abertura de uma embaixada saarauí em La Paz, neste ano.

Dia 24 de dezembro, houve manifestação pró-reconhecimento do Saara Ocidental em frente ao hotel onde Lula se encontrava hospedado em Brasília. O novo representante da Frente Polisário para o Brasil, Ahmed Mulay Ali Hamadi, espera que Lula faça com que o Brasil reconheça a República Árabe Saarauí e permita a abertura de uma embaixada em Brasília.


O 16º Congresso da Frente Polisário

Recentemente, a Frente Polisário realizou seu 16º Congresso em Dajla — um dos cinco acampamentos de refugiados saarauís —, na cidade de Tindouf, na Argélia. Durante o mês de janeiro passado, 2 mil delegados reuniram-se nesse conclave oficial, elegeram o novo Presidente da República e Secretário-Geral da Frente Polisário e definiram as táticas políticas dos próximos três anos de luta armada. Além dos delegados, o Congresso recebeu mais de 300 visitantes internacionais, representando países aliados e associações de solidariedade; todo o evento foi transmitido ao vivo para todos os acampamentos de refugiados pela TV Arasdtb, canal estatal saarauí.

O 16º Congresso foi o primeiro que foi realizado pela Frente Polisário desde o fim do cessar-fogo contra o exército marroquino, no dia 13 de novembro de 2020. O Congresso aconteceu sob o lema “Intensificar a Luta Armada para Expulsar o Invasor e Culminar a Soberania”. Lá também foi aprovada uma nova Lei de Bases da Frente Polisário, que contém recomendações para fortalecer as instituições e estruturas do movimento e do Estado da República Árabe Saarauí Democrática-RASD. O evento apoiou incondicionalmente retomar a luta armada contra os invasores.

Contando 73 anos de idade, o veterano de guerra Brahim Ghali foi reeleito para um novo mandato para Presidente da RASD e Secretário-Geral da Frente Polisário. A prioridade para o próximo governo é reforçar o Exército Popular de Libertação Saarauí, dando-lhe recursos humanos e materiais necessários para fazer frente à cooperação entre Marrocos e Israel em matéria de defesa e inteligência. Inclusive, no dia 20 de janeiro deste ano, o Exército Popular de Libertação Saarauí bombardeou as forças marroquinas na região de Al Mahbas, cidade localizada no nordeste do Saara Ocidental invadida pelo Marrocos e que faz fronteira com a extremidade sudeste da Argélia. De acordo com o Relatório de Guerra nº 551, do Ministério de Defesa Nacional, o Exército Saarauí também atacou concentrações de forças de ocupação nas áreas de Al Aarya, no setor norte do Saara Ocidental, bombardeando fortemente com mísseis o 65º Quartel-General do Exército Marroquino, e as localidades de Laagad, Aagad Arkan e Tamushad.


Conclusão

No Brasil, uma série de fatos recentes tem ocorrido em prol da causa saarauí. Em abril de 2022, foram assinados Memorandos de Entendimento para Cooperação Acadêmica, Científica e Cultural entre a Universidade de Tifari (pertencente à República Saarauí) e a Rede Internacional de Educação Popular Diálogos com a África e Rede de Pesquisa sobre Pedagogias Decoloniais na Amazônia. Também foi assinado pelo Prefeito de Belém acordo de irmandade entre a capital do Pará e a cidade de Tifarit- RASD.

A Assembleia Legislativa do Estado do Pará homenageou o ex-representante do Saara Ocidental no Brasil, Dr. Embeirek Ahmed, atribuindo-lhe a Medalha de Direitos Humanos Paulo Frota, no dia 8 de dezembro passado, em reconhecimento pelo seu desempenho na promoção e defesa dos direitos humanos. No dia 14 de dezembro de 2022, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias-CDHM da Câmara dos Deputados recebeu o representante atual da Frente Polisário, Ahmed Mulay Ali Ahmadi, em Audiência Pública, na qual ele informou a respeito do conflito com o Marrocos.

O conflito continua e complica também as relações entre Marrocos e Argélia, assim como dentro da União Africana. Têm existido demasiadas iniciativas dificultadas e oportunidades perdidas para se chegar a uma solução justa e duradoura que permita a autodeterminação do povo do Saara Ocidental, já que é uma guerra que alimenta os interesses econômicos de várias forças internacionais. Conforme afirma o oficial do Exército Popular de Libertação do Povo Saarauí, Paco Sidha: “Buscamos todo tipo de soluções. Lutamos, esperamos, negociamos”.