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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Corrupção, prevenção e desigualdade. Parte XII — Comparando a corrupção com algumas das mais importantes manifestações socioeconômicas no Brasil

Sexta, 10 de fevereiro de 2023

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 10 de fevereiro de 2023


Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.

Apesar das evidentes e reconhecidas dificuldades, o esforço de apurar o tamanho da corrupção, como antes realizado (Parte XI), permite identificar a ordem de grandeza do fenômeno e realizar algumas importantes (e até necessárias) comparações. Os cotejos adiante efetivados consideram algumas das realidades socioeconômicas mais relevantes do Brasil na atualidade. Não se trata de importância meramente numérica. São itens reveladores das estruturas fundamentais de organização da sociedade brasileira quanto à produção das riquezas econômicas e sua distribuição em relação aos vários segmentos sociais.

Lembramos que a magnitude da corrupção no Brasil, para o período de um ano, foi calculada, por aproximação, num valor em torno de 160 bilhões de reais (Parte XI desta série de escritos). Observe-se que os juros pagos anualmente aos bancos brasileiros pelo Poder Público, famílias e empresas alcançam um montante dez vezes maior, aproximadamente. São 1,5 trilhão de reais pagos em função do alto grau de endividamento e da prática dos maiores juros do mundo, sem nenhum razão econômica legítima.

Separados os juros pagos em decorrência da dívida pública (algo em torno de 7,2 trilhões de reais ao final de 2022), temos um montante aproximado de 592 bilhões de reais nos últimos doze meses terminados em setembro de 2022. Não custa lembrar que essa ocorrência (pagamento de juros da dívida pública no patamar de centenas de bilhões de reais) resulta de um deliberado equívoco de política econômica. Trata-se do combate à inflação pela via do aumento de juros a partir do pressuposto falso de que o aumento de preços está preponderantemente relacionado com altos e crescentes níveis de consumo. Outra lembrança importante é que até hoje não foram fixados os limites para o endividamento público, mas o teto de gastos primários (ou sociais) é tratado (pelas elites econômicas e seus técnicos e jornalistas) como algo mais vital que o oxigênio ou a água. Recentemente, Luís Carlos de Magalhães calculou, para o período de 2011 a 2019, um acréscimo de 2,1 trilhões de reais no estoque da Dívida Pública Mobiliária Federal interna pela incorporação do serviço de juros nominais, não obstante a apuração de superávit primário corrente no período.

Ademais, como alerta o movimento Auditoria Cidadã da Dívida: “Está mais do que comprovado que a dívida não tem crescido devido aos gastos sociais, mas sim devido aos diversos mecanismos financeiros que geram e aumentam a dívida pública, como o abuso das ‘operações compromissadas’ e os ‘depósitos voluntários remunerados’ (mediante os quais o Banco Central garante a remuneração diária da sobra de caixa dos bancos à custa do orçamento público); os escandalosos swaps cambiais (mediante os quais o Banco Central garante a variação do dólar a investidores sigilosos), e principalmente as altíssimas taxas básicas de juros (que constituem o principal fator de crescimento da dívida), entre vários outros mecanismos”. A posição das aludidas “operações compromissadas” em dezembro de 2022 apontava o valor de 919,5 bilhões de reais. Entre os “outros mecanismos” deve ser ressaltado o fortíssimo impacto da exagerada formação de reservas internacionais no crescimento da dívida pública. Em dezembro de 2022, as citadas reservadas alçaram a impressionante cifra de 1,6 trilhão de reais.

Três comparações são relevantíssimas, entre muitas outras. No ano de 2022 a sonegação fiscal atingiu cerca de 626,8 bilhões de reais. É a estimativa do Sonegômetro, placar criado pelo SINPROFAZ (Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional). O antigo Ministério da Economia calculou em cerca de 450 bilhões de reais os benefícios fiscais no ano de 2022. Informações jornalísticas da BBC News Brasil, em 2012, com base no documento “The Price of Offshore Revisited”, escrito por James Henry, economista-chefe da consultoria McKinsey, indicam que os “ricos brasileiros têm a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais”. Essa montanha de recursos somava cerca de 2,5 trilhões de reais em 2010. Não custa lembrar que o imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição desde 1988, ainda foi criado.

Recentemente, o debate político, jurídico e econômico foi tomado por um tema que retrata como são construídos, no plano institucional, instrumentos  voltados para viabilizar a apropriação de riquezas, na casa das centenas de bilhões de reais, pelas classes privilegiadas de sempre. Trata-se do chamado “voto de qualidade” no âmbito do CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). Na ausência daquele tipo de manifestação, suprimida em 2020, “… apenas em 2022, houve cancelamento de R$ 108 bilhões em autuações, a partir de decisões do Carf favoráveis aos contribuintes, em patamar que alcançou 78% dos montantes que estavam em exame recursal naquele exercício” (fonte: conjur.com.br).

Todas as comparações realizadas mostram, de forma clara e incisiva, que a corrupção está longe, muito longe, de ser o principal problema socioeconômico brasileiro. O Brasil figura como uma das maiores economias do mundo e também como um dos líderes globais no quesito da exploração da imensa maioria de sua população. Essa triste contradição se explica pela existência de vários e sofisticados mecanismos institucionais de criação e reprodução de vergonhosas desigualdades no seio da sociedade.

Os dados apresentados foram coletados nas seguintes fontes: a) site do Banco Central do Brasil (bcb.gov.br); b) site da Auditoria Cidadã da Dívida (auditoriacidada.org.br); c) site CONJUR (conjur.com.br); d) site do SINPROFAZ (sinprofaz.org.br); e) site G1 (g1.glogo.com) e f) livro “A Era do Capital Improdutivo” de Ladislau Dowbor (dowbor.org).


Textos anteriores da série:

PARTE I – O SENTIDO COLOQUIAL DE CORRUPÇÃO
PARTE II – A CULTURA DE LEVAR VANTAGEM
PARTE III – O SERVIDOR CORRUPTO SOZINHO
PARTE IV – O CANDIDATO CORRUPTO
PARTE V – O MITO DA FALTA DE PUNIÇÕES
PARTE VI – O SERVIDOR QUE RECUSA A CORRUPÇÃO
PARTE VII - QUADRILHAS ORGANIZADAS POLITICAMENTE
PARTE VIII - A CORRUPÇÃO ESTRUTURAL OU SISTÊMICA
PARTE IX – CORRUPÇÃO NO SETOR PRIVADO
PARTE X - A PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO COMO O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL
PARTE XI – O TAMANHO DA CORRUPÇÃO NO BRASIL

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