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(Millôr Fernandes)

domingo, 26 de fevereiro de 2023

O VALOR SOCIAL DA LINGUAGEM

O VALOR SOCIAL DA LINGUAGEM

Salin Siddartha

De acordo com Gramsci, “toda linguagem contém os elementos de uma concepção de mundo e de uma cultura, a partir da linguagem de cada um é possível julgar da maior ou menor complexidade a sua concepção do mundo”(1). Isso ocorre porque as pessoas apreendem o mundo pela linguagem, pois ela é um meio de expressão social, é uma forma, não é uma substância — que seria o homem concretizado no processo de movimento dialético da história, por sua relação produtiva e transformadora do meio —, ela é o plano de expressão, é o nível em que a sociedade atinge o poder de interação dos seus indivíduos com base na significação dos textos; a linguagem verbal é o principal plano de expressão social porque possui a mais completa codificação organizada pela própria sociedade. Onde houver signos há códigos (que são reflexos de interação), porém os signos não-verbais (gestos, manifestações de sexualidade, ícones, indícios, sintomas etc.) não têm o mesmo grau de codificação, apesar de possuírem o mesmo valor com relação ao verbal, em virtude de sua receptibilidade não ter a mesma universalidade do código linguístico; por isso é que a linguagem verbal é o principal plano de expressão social do que é social.


A linguagem verbal expressa os valores que a sociedade dá aos signos linguísticos (palavras), que têm por referentes o desenvolvimento da contradição dialética existente entre as forças produtivas e as relações sociais de produção. A linguagem é o plano de expressão que tem a sociedade para, na relação sujeito/objeto histórico, situar-se como sujeito e a realidade sobre a qual atua, esta como objeto. No equacionamento do homem como força produtiva, ele somente se situa como tal pelo intercâmbio social da produção, pois é isso que realiza o homem como força social produtiva, visto que o ser humano não se realizaria como o faz se produzisse apenas para si. Na verdade, a sociedade também é um produto, e foi o intercâmbio social da produção que “produziu” a sociedade, se não fosse assim, o homem seria um ser sem história e inserir-se-ia dialeticamente apenas em contradição com a natureza, como os animais. Pelo intercâmbio social é que a produção é transformada em bem social; a linguagem corporifica esse bem pelo seu poder de simbolização da produção, aliás, a linguagem nem existiria socialmente, seria uma mera manifestação psíquica, emotiva, tal qual o latido dos cães, o mugido de dor do gado no matadouro, se não possuísse o poder de simbolização da produção. É isso o que faz da linguagem um meio de expressão social. O significante linguístico (os sons emitidos quando se fala uma palavra) em si nada é socialmente caso não esteja relacionado a um referente material para que dessa relação se fixe um significado, é isso o que produz a significação social do signo linguístico.


A linguagem corporifica os bens sociais pelo seu aspecto metafórico, de forma que ela deixa de ser uma coisa, um mero sintoma acústico produzido pelo movimento fisiológico do aparelho fonador, para ganhar um valor que visa expressar o mesmo valor da produção; o valor social da linguagem está em ser “um sistema de equivalência entre coisas de ordens diferentes: um significado e um significante"(2), ao que acrescentamos, também, o referente, de acordo com a teoria peirceana, pois a linguagem recobre-se de valor a partir do que ela representa para a sociedade e da sociedade. É de uma relação de equivalência sistemática que nasce o valor e essa relação existe dentro do sistema linguístico, entre seus diversos elementos estruturais e na relação do sistema linguístico para com a vida social. “Todos os valores qualquer que seja amaneira de compreendê-los, resultam do trabalho que o homem realizou e pode realizar novamente”(3) e é também disso que resulta a linguagem, ela é um trabalho que possui o atributo da reiterabilidade. Considere-se a língua um trabalho de produzir-se a si própria, reproduzir-se diacronicamente através do processo de diferenciação de suas variantes, que redundam em dialetos e que, posteriormente, transforma-se em outras línguas, como provam as leis da evolução linguística; a língua é também um trabalho de reprodução dos referentes (realidade material ou produto da realidade material) no nível dos conceitos.


Aqui, torna-se necessário diferenciar a língua, como sistema abstrato, da fala, fato concreto que se dá pela sua execução verbal por parte dos seus falantes/ouvintes. “O valor tem uma estreita relação com a noção de língua (oposta à fala); leva a despsicologizar a Linguística e aproximá-la da Economia; ele é central em Linguística estrutural”(4). “Para que haja signo (ou ‘valor’ econômico) é preciso poder permutar coisas dessemelhantes (um trabalho e um salário, um significante e um significado) e, por outro lado, comparar coisas similares entre si: pode-se trocar uma nota de R$50,00 [atualização feita por mim, pois a da tradução deste trecho publicado está em cruzeiros, por ser anterior ao real] por pão, sabão ou cinema, mas pode-se também comparar essa nota com notas de R$100,00, de R$200,00 [idem] etc.; do mesmo modo, uma ‘palavra’ pode ser ‘trocada’ por uma ideia (isto é, o dessemelhante); o sentido só se fixa realmente a partir dessa dupla determinação: significante e valor. O valor não é a significação, provém, diz Saussure, ‘da situação recíproca das peças da língua’; é até mais importante do que a significação: o que há de ideia ou de matéria fônica em um signo importa menos do que há ao seu redor nos outros signos”(5).


Vejamos o que nos diz o linguista russo Bakhtim (Voloshinov):

“Não pode entrar no domínio da ideologia, tomar formas e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social.

É por isso que todos os índices de valor com características ideológicas, ainda que realizada pela voz dos indivíduos (por exemplo, na palavra) ou, de modo mais geral, por um organismo individual, constituem índices sociais de valor...”(6)

        E continua o mestre:

“O índice de valor é por natureza interindividual. O grito do animal, enquanto pura reação de um organismo individual à dor, é despido de índice de valor. É um fenômeno puramente natural. O grito não depende da atmosfera social, razão pela qual ele não recebe sequer o esboço de uma formalização semiótica”(7).


Quando falamos que a linguagem expressa o valor da produção, estamos nos servindo do termo tanto no sentido de “valor de uso”, quanto no sentido de “valor de troca”. Nesse aspecto é que se permite uma analogia entre a Linguística e a Economia, pois ambas são ciências do valor. “É que aqui, como na Economia Política, estamos perante a noção de valor; nas duas ciências, trata-se de um sistema de equivalência entre coisas de ordens diferentes: numa, um trabalho e um salário, noutra, um significado e um significante”(8). O salário é relacionado com o significante, e o trabalho com o significado. O que constitui o análogo do significante é o dinheiro e a moeda que serve para pagar o trabalho, como valor de troca (mercadoria/força de trabalho). Na medida em que o significante remete ao que é formal e simbólico, é o valor de troca ou a moeda (valor de troca por excelência) que é sua metáfora. Na medida em que o significado remete ao que é deslocado pelo significante, o que constitui o seu sentido é o valor de uso que é sua metáfora, o trabalho concreto, o objeto útil. Jean Baudrillard vai mais longe, e identifica para o simplesmente valor de troca o significante, e valor de uso o significado. A mercadoria, como signo, é feita da união dos dois. A massa de valores de uso só se trona uma mercadoria pela troca que a liga ao equivalente geral. Tornando-se mercadoria, o objeto torna-se signo. Ele é tomado num sistema de significação que o torna inteligível, isto é, socialmente útil.


Voltemos a Saussure: “Enquanto, por um dos seus lados, um valor tenha raízes nas coisas e em suas relações naturais (como é o caso da ciência econômica – por exemplo, um campo vale na proporção do que produz), pode-se, até certo ponto, seguir esse valor no tempo, lembrando sempre que, a cada momento, ele depende de um sistema de valores contemporâneos. Sua ligação com as coisas lhe dá, apesar de tudo, uma base natural e, por isso, as apreciações que se lhe apliquem não são jamais completamente arbitrárias; sua variabilidade é limitada”(9).


A moeda, como o mostra intuitivamente Saussure, não pode ter substância e, sem dúvida, Marx o sabia. A moeda concreta é símbolo ou signo, jamais mercadoria. Somente o capitalismo com fins ideológicos (com os modos de produção com circulação mercantil numa certa medida) provocou a necessidade de tentar regular o valor dos objetos/signos servindo de reserva de valor sobre a produção de bens materiais. É a duplicação (redobramento da ordem do significado pela do significante, da ordem do valor de troca pela do valor de uso) que torna possível o sistema. Dessa duplicação, Saussure nos diz que ela é o postulado inicial e que não se pode aí dizer nada. Marx, na gênese do equivalente geral, racionalizando-a faz sair a moeda (negação da mercadoria) da própria mercadoria.


Portanto, a moeda é um signo, só existe como um signo inserido numa linguagem monetária que tem por função expressar o valor de troca da mercadoria. Assim também, em “Obligo et Cretesa Nella Dogmatica, Nella Teoria General e Nella Filosofia del Direitto”, diz Emilio Betti:


“As linguagens são em certo sentido como as moedas, e a linguagem tomada em geral poderia ser comparada à moeda em geral. Existem diversos tipos de moedas, de diferente cunho e diferente metal (ou de papel ou de outra matéria); são diferentes para um tempo infinito e para uma infinidade de países; é possível trocá-las entre si, ao menos em certos limites; é também possível falsificá-las, aqui também em certos limites; enfim, é possível (pelo menos este foi o caso, mesmo que não para todos) produzir novas e apresentá-las no mercado.

“Existe um grande número de linguagens, de diferentes naturezas e com diferentes tipos de signos, diversos, também, por muito tempo e para um grande número de países; é possível trocá-las, ou antes, traduzi-las em outras linguagens, é também possível falsificar os signos e as linguagens para enganar aqueles aos quais a linguagem é determinada e lhes fazer crer que possui significações diferentes daquelas que se compreendem na realidade; enfim, é possível (ao menos o é muito ainda, mesmo que não para todos) produzi-las novas e autênticas depois de apresentá-las aos seus semelhantes como signos e linguagens a adotar.

“[...] Existem (na medida em que é o caso) significações mínimas comuns que são atribuídas à linguagem e à moeda por todos aqueles a quem o processo linguístico ou o processo monetário dizem respeito”(10).


“A língua, enquanto meio de troca universal válido para toda comunicação, apresenta o aspecto do dinheiro com o qual se compram e vendem as outras mercadorias(11). “Como material, instrumento e dinheiro, a língua constitui de direito e de fato o capital constante de toda operação linguística posterior, isto é, de toda expressão e comunicação, e pode ser compreendida apenas como capital constante sob os três aspectos de material, instrumento e dinheiro”(12).


“Na mesma qualidade dos outros produtos do trabalho humano, as palavras, as expressões e as mensagens têm valor de uso, ou utilidade, na medida em que satisfazem necessidades fundamentais da expressão e da comunicação com todas as estratificações móveis que, no curso da história, se formaram e se acumularam em torno delas. Sem signos linguísticos é impossível satisfazer tais necessidades numa escala humana (...) as palavras, do mesmo modo que as expressões, são utilizadas, as mensagens transmitidas e recebidas, não somente segundo o seu valor de uso, mas também e principalmente segundo seu valor de troca. Numa primeira aproximação, pode-se dizer que, no caso das palavras e expressões, o valor de troca será pesquisado nas relações recíprocas que instauram no interior de uma língua da qual fazem parte; no caso das mensagens, ele será pesquisado no seu processo de transmissão e de recepção no interior de uma comunidade linguística, isto é, no seu próprio processo de circulação sobre um mercado linguístico constituído por elas”(13).


Devido ao anteriormente exposto, a transmissão linguística passa a ter um valor de troca simbólica presa à troca dos bens materiais, ou seja, presa à troca concreta dos produtos sociais do trabalho humano — ao que o homem produz visando à satisfação de suas necessidades materiais e, também, à matéria natural, aos quais a sociedade dá um valor econômico e que constituem riqueza. Pelo seu conteúdo metafórico, a linguagem de um povo passa a expressar a ideologia que subjaz a si própria, pois nela não se metaforiza apenas a produção, mas também a relação social de produção – relação existente entre os agentes de produção, isto é, entre todos os indivíduos que participam na produção de bens materiais – e nas contradições nelas inerentes do ambiente social a que pertence e expressa. O homem visa apreender o mundo por um pensamento filosófico que, subjetiva ou objetivamente, procura defini-lo no seio da sociedade em que se encontra; dessa definição nascem os conceitos em que vai a sociedade adequar-se no grau ético de seu comportamento determinado pelos “costumes da classe que protagoniza a própria história”(14). A maneira como a classe dominante conceitua filosoficamente a realidade é que é o elemento determinante do comportamento ético da sociedade. A linguagem é também a expressão dos conceitos, visto que conceitos também são valores e, na linguagem, passam a ser valores linguísticos.


A linguagem expressa os conceitos por intermédio do elemento significado do signo. “Existe uma relação semiótica entre signo e conceito, o qual, por sua vez é signo da coisa”(15). “As estruturas conceptuais formam o sistema de informação do indivíduo e da coletividade. Elas são organizadas hierarquicamente e constituem códigos de comunicação cultural”(16). Logo, o próprio sistema linguístico repousa sobre os conceitos, é por eles organizado e, para expressá-los, construído. Cada linguagem expressa os conceitos específicos de sua nacionalidade, ou seja, as características que tomou a “filosofia” de uma determinada nação no que tange aos aspectos das particularidades culturais da maneira como se desenvolveu a contradição de suas forças produtivas com suas relações sociais; assim, no sentido da história objetivamente própria de um povo, pode-se falar em historicismo da linguagem, que seria, dentro do aspecto geral de um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção, o que uma determinada língua tem de conceituações específicas que divergem dos aspectos gerais da conceptualização do mundo que possivelmente tenha ela em comum com as línguas de outros povos. Aliás, a conceptualização do mundo não existiria sem a linguagem. Na opinião de Gramsci, “todo homem, pelo simples fato de que fala, tem a sua concepção do mundo, ainda que não consciente, ainda que acrítica, já que a linguagem é sempre, embrionariamente, uma forma de concepção do mundo”(17).


NOTAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS:

(1) GRAMSCI, Antonio. Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 13

(2) SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 95 (3) ROSSI-LANDI, F. A Linguagem como Trabalho e como Mercado, in “Semiologia e Linguística Hoje”. Rio de Janeiro: Palas, 1965. p. 112

(4) BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 56

(5) Ibid. p. 57

(6) BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981. p. 45

(7) Ibid. loc. cit.

(8) SAUSSURE, Ferdinand. Op. cit., loc. cit.

(9) Ibid. p. 96

(10) Apud. Rossi-Landi. Op. cit. p. 138

(11) ROSSI-LANDI, F. Op. cit. p. 127

(12) Ibid. loc. cit.

(13) Ibid. p. 131

(14) GRAMSCI, Antonio. Op. cit. p. 222

(15) ECO, Umberto. O Signo. Lisboa: Perspectiva, 1977. p.138

(16) COUTO, Hildo. Linguística e Semiótica Relacional. Brasília: Thesaurus, 1982. p. 67

(17) GRUPPI, Luciano. O Conceito de Hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: Graal, 1980. p. 67


Guará 2-DF, 25 de fevereiro de 2023


SALIN SIDDARTHA