Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 3 de março de 2023

CORRUPÇÃO, PREVENÇÃO E DESIGUALDADE. PARTE XIII — O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL: A DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICA. NÃO É A CORRUPÇÃO

 Sexta, 3 de março de 2023

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 3 de março de 2023

Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.

Os dois escritos anteriores desta série (Partes XI e XII) permitem elaborar este singelo gráfico:


1. Cancelamento de autuações, em 2022, a partir de decisões do CARF favoráveis aos contribuintes
2. Benefícios fiscais em 2022
3. Juros pagos em decorrência da dívida pública nos doze meses terminados em setembro de 2022
4. Sonegação fiscal em 2022
5. Posição das “operações compromissadas” em dezembro de 2022
6. Juros pagos anualmente aos bancos brasileiros pelo Poder Público, famílias e empresas
7. Reservas internacionais em dezembro de 2022
8. “Ricos brasileiros têm a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais”

A imagem apresentada indica que o mais relevante dos problemas do Brasil consiste na apropriação profundamente desigual da riqueza produzida, viabilizada por um conjunto de mecanismos políticos, jurídicos, sociais e econômicos cuidadosamente construídos e mantidos pelas elites dirigentes. Decorre daí uma realidade socioeconômica de extrema injustiça.

Essa percepção, análise ou conclusão parece claramente confirmada a partir dos dados veiculados por importantes estudos de âmbitos nacional e internacional. Eis algumas das informações mais relevantes e espantosas: a) no final de 2020, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) divulgou o novo ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). O Brasil caiu cinco posições e figurava em 89º lugar entre 189 nações; b) segundo dados de 2018, com um índice de Gini de 0,539 em termos de concentração de renda, o Brasil apareceu entre os dez países mais desiguais do mundo. Era o único latino-americano acompanhado por países africanos; c) oito pessoas, em âmbito mundial, detêm o mesmo patrimônio que a metade mais pobre da população. No Brasil, seis pessoas possuem riqueza correspondente ao patrimônio dos 100 milhões de brasileiros mais pobres. Não custa frisar que esse conjunto de bens dos seis bilionários tupiniquins não foram construídos com dinheiro oriundo de corrupção política; d) o 1% mais rico da população brasileira recebe, em média, mais de 25% de toda a renda nacional. Já os 5% mais ricos percebem o mesmo que os demais 95%; e) 80% da população brasileira, cerca de 165 milhões de brasileiras e brasileiros, vivem (ou sobrevivem) com uma renda per capita inferior a dois salários mínimos mensais; f) pelo menos 32 milhões de meninos e meninas no Brasil vivem na pobreza, segundo estimativa do Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef). Esse número corresponde a 63% da população com idade até 17 anos no País (as consequências físicas, cognitivas e emocionais são dramáticas com comprometimento do desenvolvimento pleno e do futuro pessoal) e g) a Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgou, no início do mês de abril de 2021, que o número de brasileiros pobres saltou de 9,5 milhões em agosto de 2020 para mais de 27 milhões em fevereiro de 2021. Segundo o economista Marcelo Nery, da FGV Social, “se a gente comparar a situação de março de 2021, sem auxílio emergencial, é o pior nível de pobreza de toda a série histórica que começa em 2012. E o que é impressionante é que saiu do melhor nível, com auxílio emergencial pleno, para o pior nível".

A razão imediata para o impressionante crescimento dos níveis de pobreza no Brasil nos seis meses referidos está expressamente apontada no comentário acima transcrito: o fim do pagamento do auxílio emergencial. Esse auxílio emergencial, no valor de 600 reais mensais para cada trabalhador, em certas condições, foi estabelecido pela Lei n. 13.982, de 2 de abril de 2020. Não custa lembrar que a proposta inicial do governo Bolsonaro apontava para o valor de 200 reais mensais. O aspecto mais estarrecedor da revelação da FGV consiste no fato de que a percepção mensal do valor de 600 reais era capaz de retirar um brasileiro da condição de pobreza.

Assim, não há como negar que são monumentais as carências materiais, no plano elementar da subsistência, de numerosa parcela da população brasileira. Essa questão lembra a Lei n. 10.835, de 8 de janeiro de 2004, que institui a renda básica de cidadania, como um benefício monetário, direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica. Foi preciso uma decisão do STF no Mandado de Injunção (MI) n. 7.300 para que a aplicação efetiva da lei não fosse jogada no esquecimento completo e para todo o sempre. Em contraponto, o pagamento bilionário do serviço da dívida pública, já petrificado na Constituição (art. 166, parágrafo terceiro, inciso II, alínea “b”), não é esquecido. A Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal por 20 anos, criou um “teto de gastos” para as despesas primárias (relacionadas com ações sociais do governo) e “esqueceu” de impor limites para as despesas financeiras, como o pagamento do serviço da dívida pública. Na Emenda Constitucional n. 106, de 7 de maio de 2020, que instituiu um regime fiscal extraordinário, o artigo sexto resguarda o refinanciamento da dívida mobiliária e o pagamento de seus juros e encargos.

Destaque-se que os mecanismos aludidos (políticos, jurídicos, sociais e econômicos cuidadosamente construídos e mantidos pelas elites dirigentes) são inseridos de forma competente, com requintes e rigores técnicos, nos vários espaços institucionais, especialmente na ordem jurídica.

Portanto, observada, com o devido cuidado, a realidade socioeconômica brasileira é possível concluir, com relativa facilidade, que a desigualdade, inclusive na forma de pobreza, figura como o principal, mais grave e mais vergonhoso, problema do Brasil na atualidade. A corrupção é uma mazela relevante com enorme importância na vida nacional, mas está longe, bem longe, de ser nosso mais significativo problema.

Os dados apresentados foram coletados nas seguintes fontes: a) Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); b) site do Senado Federal (www12.senado.leg.br); c) A distância que nos une. Um retrato das desigualdades brasileiras. Relatório publicado em 25 de setembro de 2017. Oxfam Brasil; d) site G1 (g1.globo.com) e e) site Estadão (estado.com.br).


Textos anteriores da série:

PARTE I – O SENTIDO COLOQUIAL DE CORRUPÇÃO
PARTE II – A CULTURA DE LEVAR VANTAGEM
PARTE III – O SERVIDOR CORRUPTO SOZINHO
PARTE IV – O CANDIDATO CORRUPTO
PARTE V – O MITO DA FALTA DE PUNIÇÕES
PARTE VI – O SERVIDOR QUE RECUSA A CORRUPÇÃO
PARTE VII - QUADRILHAS ORGANIZADAS POLITICAMENTE
PARTE VIII - A CORRUPÇÃO ESTRUTURAL OU SISTÊMICA
PARTE IX – CORRUPÇÃO NO SETOR PRIVADO
PARTE X - A PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO COMO O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL
PARTE XI – O TAMANHO DA CORRUPÇÃO NO BRASIL
PARTE XII - COMPARANDO A CORRUPÇÃO COM ALGUMAS DAS MAIS IMPORTANTES MANIFESTAÇÕES SOCIOECONÔMICAS NO BRASIL

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