Segunda, 16 de julho de 2012
Nós e Deus que tudo vê sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura.
O tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugenio Sales,
com direito à pomba branca no velório, me fez lembrar o filme alemão
‘Uma cidade sem passado’. Os dois casos são exemplos típicos de como o
poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de
fatos vergonhosos, inventa novas lembranças e usa a memória, assim
construída, como um instrumento de controle e coerção.
O filme
Comecemos pelo filme, baseado em fatos reais. Na década de
1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de
redação escolar, de âmbito nacional, cujo tema é ‘minha cidade natal na
época do III Reich’. Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles
Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade
natal, considerada baluarte da resistência antinazista.
Mas a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória – o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal fecham-lhe suas portas. Ninguém quer futucar o passado. Sônia, porém, não desiste. Entrevista pessoas próximas que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, não passam de fiapos sem sentido.
Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário
e entra com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o
processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no
meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões do silêncio:
a cidade havia sediado um campo de concentração. Lá, os nazistas
prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a
omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha
vergonhosa da memória.
No entanto, o mais doloroso era que aqueles que, ontem, haviam sido
carrascos, posavam, hoje, como heróis. Quanto escárnio! Os safados
haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.
Deus tá vendo
E é aqui que entra a morte do cardeal, que comandou a Arquidiocese do
Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos
de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? Até hoje,
não temos acesso aos documentos.
Se pudéssemos criar, no campo da memória, algo similar à operação
Deus tá vendo, organizada pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul,
talvez encontrássemos a resposta. Tive a oportunidade de acompanhar a
trajetória do cardeal, na qualidade de repórter da Asapress, uma agência
nacional de notícias arrendada pela CNBB em 1967. Deus é testemunha de
que quem lutava contra as arbitrariedades eram dom Helder Câmara, dom
Paulo Arns e alguns outros mais que foram perseguidos. Padres e leigos
foram presos e torturados, sem que escutássemos um pio de dom Eugênio.
Nós e Deus que tudo vê sabíamos que dom Eugênio era, com todo o
respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia, posso garantir
que na época ele nem disfarçava, ao contrário tinha orgulho do livre
trânsito que tinha entre os militares. “Quem tem dúvidas… basta
pesquisar os textos assinados por ele no JB e n’O Globo” – escreve a
jornalista Hildegard Angel.
Por isso, a jornalista estranhou a forma como o cardeal Sales foi
retratado no velório pelas autoridades. O prefeito Eduardo Paes declarou
que o cardeal “defendeu a liberdade e os direitos individuais”. O
governador Sérgio Cabral e até José Sarney insistiram no mesmo tema.
Mas não foram só os políticos. O jornalista Luiz Horta escreveu que
dom Eugênio abrigou no Rio “uma quantidade enorme de asilados
políticos”, calculada em “mais de 4 mil pessoas perseguidas por regimes
militares da América do Sul”. É. Pode ser. Um agente duplo.
Publicamente, apoiava a ditadura e, por baixo dos panos, ajudava quem
lutava contra.
No entanto, ajudaria muito se o jornal entrevistasse um por cento das vítimas, se 40 perseguidos nos contassem como foram ajudados pelo cardeal. O jornal, porém, não dá o nome de uma só dessas mais de 4 mil pessoas.
No entanto, ajudaria muito se o jornal entrevistasse um por cento das vítimas, se 40 perseguidos nos contassem como foram ajudados pelo cardeal. O jornal, porém, não dá o nome de uma só dessas mais de 4 mil pessoas.
Enquanto isto não acontecer, ficamos com o depoimento de Hidelgard
Angel, cujo irmão Stuart foi torturado e morto pelo Serviço de
Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o
cardeal.
Segundo Hilde, dom Eugênio “fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos ‘subversivos’ que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)”. Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar “que ocorreu justo o contrário!”…
Os jornais elogiaram até o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada
vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João Paulo 2, com o
mesmo zelo com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumã já
descascado para o café da manhã do então governador Amazonino. São os
rituais do poder.
Um corretor de imóveis, Gilberto de Almeida, 59 anos, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25, soltando-a dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: “Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo” – berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memória.
Um corretor de imóveis, Gilberto de Almeida, 59 anos, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25, soltando-a dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: “Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo” – berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memória.
A mídia nos forçou a fazer esses comentários, o que pode parecer
indelicadeza num momento como esse de morte e de perda. Mas se a gente
não falar agora, quando então?