Segunda, 10 de março de 2014
Por Celso Lungaretti
Uma falácia das viúvas e discípulos da ditadura são as comparações desfavoráveis à democracia que espalham entre os desinformados. Dizem que a economia era mais próspera nos anos de chumbo, que havia menos violência e corrupção, etc.
Há idosos que avalizam esse besteirol, ajudando a desnortear as novas
gerações. No fundo, sua opinião é influenciada pelas saudades dos tempos
em que eram vigorosos e tinham muita vida pela frente. Tudo lhes
parecia melhor então.
Ademais, o homem comum tende a engolir a propaganda oficial e a não
reparar quando notícias lhes são sonegadas pela censura. A percepção
do povão
que aplaudia o sanguinário ditador Médici quando ele ia posar de
torcedor no estádio do Maracanã era bem diferente da de quem conhecia as
entranhas, os escândalos abafados e os esqueletos nos armários do
regime.
Agora, p. ex., há total transparência nos casos de produtos e serviços
que, por quaisquer imperfeições, causam prejuízos e/ou malefícios aos
consumidores.
Atuando em assessorias de imprensa, cheguei a formular e implementar a estratégia de comunicação de vários recalls.
Alertavam-se as autoridades, os comerciantes, o público em geral.
Substituíam-se os itens imperfeitos, ofereciam-se gratuitamente os
serviços que haviam sido insatisfatórios. Prestavam-se contas e
apresentavam-se civilizadas desculpas, juntamente com o anúncio das
providências adotadas para que a falha não se repetisse.
Ou seja, a opção nunca era por ocultar o problema, mas por corrigi-lo
com o máximo profissionalismo. Houve vezes em que nenhuma fiscalização
ou consumidor percebeu o ocorrido e este não era potencialmente
perigoso, mas, mesmo assim, foi feito o recall.
Já nos estados policiais as informações adversas são sonegadas dos cidadãos com a maior sem cerimônia.
AGROTÓXICOS LETAIS
O primeiro episódio eu acompanhei de perto. Trabalhava na agência de
comunicação empresarial que, em meados da década de 1970, foi contratada
por uma multinacional para evitar que repercutissem as seguidas
ocorrências de envenenamento de cidadãos brasileiros nas áreas rurais.
Tratava-se de um contrato tão crapuloso que a conta era integralmente
paga pela tal multinacional, mas o trabalho executado em nome de uma
associação fantasma de fabricantes de agrotóxicos, criada às pressas
para servir como fachada.
Coube-me redigir material de imprensa destacando a notável contribuição que os defensivos agrícolas estariam dando à agricultura brasileira e os terríveis prejuízos que sua eventual proibição acarretaria: fome da população, desemprego no campo, queda das exportações.
Eram textos aparentemente inocentes, mas não o que estava por trás
deles: o raciocínio desumano de que, para evitarem-se tais prejuízos,
poderiam ser relevadas as mortes que foram noticiadas. Muitas outras não
o foram, com a conivência das otoridade.
Pior ainda era o papel do dono da agência, um pioneiro da área de assessoria de imprensa e eventos (por ele designados como promoções), que se incumbia pessoalmente de falar com os jornalistas influentes, distribuindo subornos e fazendo ameaças veladas.
"EU PAREI AS ROTATIVAS"
Repugnava-me vê-lo elogiar a si próprio por haver conseguido sustar a
publicação de uma notícia sobre mortes de trabalhadores rurais que já
descera para a gráfica de um jornalão. “Eu parei as rotativas”,
proclamava, orgulhoso, para os empresários interessados nos seus
serviços.
Ele considerava que haver levado a bom termo uma incumbência tão infame
lhe servia como galardão profissional. E não é que os empresários
entravam na dele?! Eu assistia e ficava pensando: "Este é o verdadeiro milagre brasileiro, o amoralismo e os embustes impunes".
Participar dessa empreitada foi a primeira grande decepção de minha
carreira jornalística. Muitas outras viriam, com os interesses
econômicos prevalecendo sobre o bem comum e eu nada podendo fazer para
remediar a situação, sob pena de perder o emprego e ficar com o mercado
de trabalho fechado para mim.
Então, graças à censura sobre a imprensa e aos mecanismos de persuasão
dos poderosos, o povo brasileiro deixou de ser informado dos riscos que
corria quem utilizasse agrotóxicos. E ocultar-lhe mortes por
envenenamento registradas em todo o País certamente contribuiu para que
outras ocorressem.
A tal multinacional jamais ousaria proceder de forma tão leviana no 1º
mundo: para reduzir custos, não investira no treinamento adequado dos
usuários de seus produtos.
Mesmo assim, com a conivência do regime militar, conseguiu apagar o incêndio:
ministrou rapidamente os cursos que deixara de promover no momento
exato e não arcou com as multas astronômicas que lhe seriam aplicadas em
qualquer país cujo governo zelasse pelos governados.
De quebra, indenizou mal e porcamente, por baixo do pano, as famílias
das vítimas, que não tiveram como arrancar reparações à altura da
gravidade das perdas que sofreram.
Ficou-me também a impressão de que o êxito da operação de acobertamento se deveu ao fato de que os mortos eram irrelevantes. Se os finados não fossem os coitadezas dos grotões, certamente aquelas mortes acabariam tendo maior repercussão.