Por GerivaldoNeiva*
O adolescente foi Representado pelo Ministério Público, acusado da
prática de fato análogo ao tráfico de drogas e furto qualificado, pois havia
arrombado a janela da residência para furtar um aparelho celular. Como já fora
apreendido várias vezes, é quase sempre o culpado dos arrombamentos na área.
Abordado pela polícia na mesma noite, ainda tinha em seu poder o celular,
pedras de crack e baseados de maconha.
Sentou-se à minha frente para ser ouvido, acompanhado da mãe. Tinha 17
anos de idade, mas aparentava ter 14 ou 15. Magro, descuidado, dedos queimados
pelo cachimbo do crack, olhos sem brilho e fala desconexa. A mãe é diarista,
separada do marido, tem outros filhos menores que ficam em casa sem companhia.
Aquele era o mais velho e desde que o pai os abandonou, quando tinha apenas 10
anos de idade, tornou-se rebelde e passou a praticar pequenas infrações. Não
demorou e estava fumando maconha, depois crack e praticando pequenos furtos
para alimentar a dependência. Não trabalha, não estuda e vive tempos em casa da
avó materna e tempos em casa da mãe. Já foi ameaçado por moradores dos dois
barros e pode ser morto qualquer dia.
Segundo a mãe, o filho não lhe obedece e não tem mais o que fazer. É um
bom menino, carinhoso e prestativo, mas não gosta de trabalhar e faz apenas o
que quer. Não tem como ficar com ele em casa, pois precisa trabalhar para sustentar
os outros. O dinheiro do bolsa família não é suficiente. - Então, a solução
seria internar em alguma instituição, insiste a mãe. Com expressão tensa,
informou que o filho por pouco não morreu de overdose, pois ficou dias sem se
alimentar e fazendo uso de múltiplas drogas.
Sobre os fatos da Representação, confessou sem o menor receio que, de
fato, forçou um pouco a janela da casa da vítima e viu logo um celular sobre a
mesa. A intenção era vender para comprar droga. Sobre as pedras de crack e
maconha, alegou que seria para seu uso e para fumar com os amigos. De quem
comprou, não se lembrava e nem o preço e nem de onde teria conseguido o
dinheiro. Enfim, confessou o furto qualificado pelo arrombamento, mas negava a
acusação de tráfico de drogas.
Antes de prosseguir, falei com os advogados presentes para outras
audiências que aquele era o caso típico de uma morte anunciada, caso o poder
público não fizesse nada por aquele adolescente. Acrescentei que aquele não era
o único caso e a cada dia crescia o número de meninos dependentes químicos e
praticantes de pequenos furtos para manter a dependência. Disse ainda que meu
trabalho estava parecendo com o de enxugar gelo. Determinava medidas cautelares
de prestação de serviço e liberdade assistida, sendo que algumas vezes
decretava a internação, mas a cada dia crescia o número de adolescentes em
conflito com a lei, ou seja, a ação da justiça da infância e adolescência de
nada servia.
Prosseguindo com meu discurso, disse que estava há muitos anos na
Comarca e o quadro se agravava a cada dia em relação a prática de atos
infracionais por adolescentes e com relação ao uso de drogas. Em determinado
momento do meu discurso, disse que estava juiz de direito na comarca há mais de
17 anos e não via mudanças significativas com relação à assistência de crianças
e adolescentes em conflito com a lei; que me sentia impotente por não ter muito
mais o que fazer a não ser aplicar as medidas coercitivas previstas no ECA, mas
tinha a certeza de que não estava resolvendo os problemas da delinquência
juvenil e, quase sempre, sabia que estava apenas agravando situações quando
determinava a internação de adolescentes.
Por um momento, enquanto colocava um sachê de chá em uma caneca, fiz a
relação dos anos trabalhando na mesma comarca com a idade do adolescente à
minha frente esperando uma sentença. Ora, sendo assim, como eu tinha mais de 17
anos na titularidade da Comarca, o adolescente infrator ainda não tinha nascido
ou era apenas um bebê quando aqui cheguei. Senti um frio na espinha, um misto
de vergonha e impotência e, muito profundamente, um sentimento de
corresponsabilidade por aquela situação e também de dezenas de outros jovens
nesta cidade, bem como pelos milhares de jovens na mesma situação espalhados
por este imenso país.
Ora, em 17 anos, contando-se mandatos políticos de 4 anos, são mais de 4
prefeitos no período, 4 governadores, 4 presidentes da república, 4 câmaras
municipais, 4 assembleias legislativas e 4 congressos nacionais com a
incumbência de elaborar e efetivar políticas públicas voltadas para a
concretização da Constituição de 1988, principalmente com relação aos
fundamentos da cidadania, da dignidade da pessoa humana e de um Estado que tem
como objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e que visa
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades regionais,
conforme previsto nos artigos 1º e 3º da Constituição. Além disso, garantir uma
assistência social a quem dela necessitar e que tem por objetivo a proteção à
família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, bem como o
amparo às crianças e adolescentes carentes, conforme previsto no artigo 203, da
Constituição.
Ora, para que nosso adolescente infrator tenha 17 anos de idade,
evidente que nasceu em 1998 e quando a Constituição já contava com 10 anos de
promulgada, ou seja, foi um felizardo por ter nascido soba égide da
“Constituição Cidadã”, mas que não viu ainda seus direitos saírem do papel.
Continua, portanto, à espera de ser cidadão de fato e de direito, de ter sua
dignidade respeitada, de ter acesso à saúde e educação de qualidade e de ver
seus pais amparados por políticas de assistência social.
Além das garantias constitucionais, sendo nascido em 1998, nosso
adolescente infrator já tinha 8 anos de idade quando do surgimento do Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que deveria ter resolvido todos os
seus problemas de dignidade, cidadania, saúde, educação, assistência social e,
sobretudo, a criação dos equipamentos e fundamentos jurídicos para sua proteção
integral. Aliás, bastaria o cumprimento integral de dois artigos para que este
país fosse outro com relação à violência que atinge crianças e adolescentes:
Art. 3º A
criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,
assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É
dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.
Se tudo isso ainda é pouco, em 1993, quando faltavam ainda 5 anos para
que nosso adolescente infrator chegasse ao mundo, o Estado brasileiro editou a
Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993, a Lei Orgânica da Assistência Social,
que estabeleceu como objetivos da assistência social, dentre outros: a proteção
à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice e o amparo às
crianças e adolescentes carentes.
Pois bem, apesar de todo este aparato legislativo; de tantos direitos e
garantias que jamais saíram do papel; de tantas promessas, projetos e
programas, cujos recursos somem pelo ralo da corrupção, nosso adolescente
tornou-se um “bandido” e agora uma sociedade inerte e indiferente ao seu
sofrimento, que não consegue colocar-se em seu lugar, quer que seja internado
em local onde sofra severos castigos ou que vá para a cadeia. - Ora, se tem
discernimento para saber o que é crime e o que não é, pode muito bem ser
condenado a pena de prisão em penitenciária, pois já um bandido, argumentam.
Terminada a audiência, por não ter sido decretada a internação, a cidade
vai dizer que o aumento de crimes praticados por adolescentes, de arrombamentos
das casas e uso de drogas são causados por essas leis frouxas que
estabelecem penas brandas demais, pelo próprio Estatuto da Criança e do
Adolescente e por esses juízes que se dizem garantistas de direitos humanos de
quem não respeita os direitos dos outros. - Ora, direitos humanos para
humanos direitos, defendem com vigor. E mais: - Tudo isso resulta
em impunidade e neste quadro absurdo de descumprimento da Lei e falta de
segurança para as famílias, que estão cada vez mais presas dentro de suas
casas, enquanto os bandidos estão soltos pelas ruas, argumentam cheios de
razão.
Sem entender esta lógica cruel contra os menos favorecidos, enquanto o
Oficial de Justiça de plantão apregoava a próxima audiência, preparando outro
chá para me manter sereno, ainda pensando em meus 17 anos de atividade nesta
Comarca e em tantas leis em favor dos pobres e excluídos que não saíram do
papel neste período, mais angustiado do que satisfeito, procurava entender a
valentia de uns contra os pequenos e a covardia de quase todos diante dos
poderosos.
* Juiz de Direito
(Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Porta-Voz no Brasil
do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil).