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(Millôr Fernandes)

sábado, 14 de maio de 2016

Mefistófeles e a responsabilidade fiscal do presidente Temerário

Sábado, 14 de maio de 2016
Do Blogue Náufrago da Utopia
Por Dalton Rosado
 


Mefistófeles, no Fausto de Goethe, encarnava o diabo, que com suas promessas de vida faustosa, mas ilusória, encobria a tragédia premeditada. 

Na modernidade, o diabo atende pelo nome de capitalismo e sua promessa miraculosa é o desenvolvimento econômico. O brilho falso do progresso econômico e, com ele, a esperança de obtenção da “grana que ergue e destrói coisas belas” (Caetano Veloso), é a vã promessa de vida faustosa para todos. 

O referencial de todos são os chamados países desenvolvidos, cuja dívida pública beira o PIB anual. A rica e culta União Europeia, formada por países como Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Holanda, Espanha, Portugal, entre outros, tem dívida pública de 92% do PIB; os Estados Unidos, de 104%; e o Japão, de 220% do PIB.
São países que, juntos, representam grande parte do PIB planetário, o que torna a dívida pública mundial impagável. Mesmo assim, não recebem reprovação das agências de classificação de risco internacionais, como Standard and Poor’s, Fitch, Moody’s e outras (as mesmas que davam notas altas para o Lehman Brothers e outros grandes bancos responsáveis pela crise de 2008). 

Pior: nem por isso as nações prósperas são responsabilizadas por suas emissões de moedas sem lastro e gastos acima da arrecadação fiscal (o Brasil, por sua vez, tem dívida pública de 66% do PIB). 

Assim, aos países pobres, Mefistófeles pede que arrochem os cintos em nome de um futuro radiante, mesmo que morram os Filemos e Báucias (casal de velhos que são tragados e mortos pelo progresso ansiado por Fausto); ou seja, que se danem os supérfluos do capitalismo, como aqueles mais de 3.000 imigrantes afogados na tentativa de chegarem ao 1º mundo.
 
A esquerda, entronizada no podre poder institucional do Estado, serviçal do poder econômico (o verdadeiro poder), diz com ares de suprema sabedoria que devemos pugnar por “mais Estado e menos mercado” como afirmou recentemente e antes da queda de Dilma, seu líder na Câmara Federal, deputado José Guimarães, sem compreender que mercado (de onde o Estado tira o seu sustento) e Estado são faces indissociáveis de uma mesmo moeda, literalmente. 

A direita, como o fez em seu primeiro discurso o ex-executivo do Banco de Boston para a América Latina e ex-presidente do Banco Central do Governo Lula, Henrique Meirelles, quer enxugar o Estado e manter o arrocho fiscal para salvar o dito cujo, sob a alegação de que se trata de instrumento indispensável à retomada do desenvolvimento econômico. 

Tudo e todos falam e atuam como forma de manutenção da exploração capitalista. No fim, ambas as correntes de pensamento ideológico (keynesiana e neoliberal) terminam por se fundir num único conceito: o Estado é imprescindível à relação social mercantil, por eles defendida; e que se constitui na razão de ser de toda a miséria social e ecológica que nos encaminha para o abismo.  

O Estado obtém seus recursos na economia, daí porque todos são facilmente seduzidos por Mefistófeles com suas promessas de desenvolvimento econômico, mesmo que este tenha chegado ao seu limite interno absoluto, tornando-se destrutivo e autodestrutivo. 

A meta de responsabilidade fiscal num estágio de recessão econômica mundial e nacional representa a negação de todos os postulados dos segregados sociais para quem a esquerda e a direita diz governar prioritariamente; mas o não cumprimento da meta de responsabilidade fiscal significa endividamento insuportável e juros escorchantes. 

As contradições se explicitam e Mefistófeles, ao ver o seu desiderato maléfico se cumprir, esboça um sorriso irônico de satisfação (em off).

A questão é que os países periféricos da ordem econômica mundial, com renda per capita anual abaixo de US$ 11 mil, são chamados a doar seu sangue para a manutenção do capitalismo decadente, e em fase de iminente colapso. Esses países não podem emitir moedas sem lastro, sob pena de aceleração da inflação e o descrédito completo de seus padrões monetários que representam um padrão mundial de valor (ao qual todas as moedas são referenciadas), e nem podem vender seu títulos da dívida pública a juros baixos (irresgatáveis ao longo prazo como também o são os títulos dos chamados países do G7). 

Não é por menos que a ideia dos Brics de criação e uso de uma nova moeda internacional, a ser emitida pelo conjunto dos países emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e criação de um Banco de Desenvolvimento, causaram tanto alvoroço no sistema financeiro mundial controlado pelos países condutores do Consenso de Washington.    

Mas os administradores da ordem institucional capitalista, sejam de esquerda como de direita, não conseguem se livrar de suas contradições internas. No Brasil, o governo do Presidente Temerário já anuncia, por meio dos seus ministros, a tomada ou estudo de medidas que até ontem eram consideradas (merecidamente) como escorchantes. Estas, p. ex.: 


  • a reedição da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, o chamado imposto do cheque;
  • o aumento da idade mínima para aposentadoria, de modo a que somente depois da morte o contribuinte possa ser aposentado, como forma de tornar economicamente sustentável a imprevidência social capitalista, que em todo o mundo roda em falso com o desemprego dos jovens e a impossível criação de novos nichos de emprego, única forma de sustentação financeira previdenciária;
  • se mantiverem alta taxa de juros para controlar a inflação, isto terá reflexo na pretendida redução da dívida pública que confessam ser meta prioritária do Governo, impactando a desejada e impossível retomada do crescimento econômico;
  • se reduzirem os juros, correm o risco de ver recrudescer a taxa de inflação, fenômeno que representa confisco salarial e empobrece ainda mais os já explorados trabalhadores, levando ao desespero os desempregados (na Argentina do neoliberal Mauricio Macri, foi de quase 20% no primeiro quadrimestre deste ano);
  • se pagarem os escorchantes juros da divida pública, que somente em 2015 consumiu dos brasileiros R$ 277,3 bilhões (com os programas sociais o Brasil gasta por ano apenas 8% desse valor), sacrificarão um povo já exaurido e vão correr o risco de promoção de uma convulsão social (já em curso);
  • se não a pagarem, entrarão no rol de estados inadimplentes aos quais são imputadas pesadas penas econômicas, e por aí vai...
 
Enfim, a (des)ordem econômica mundial faz água. E, quando estamos num beco sem saída, não será por dentro do beco que vamos conseguir sair, senão criando asas e voando; mas somente poderemos alçar o nosso voo e criar as nossas próprias asas fora da lógica mercantil.
Compreender isso nunca foi tão urgente. É preciso arrebentar as amarras que aprisionam o nosso pensar, que somente consegue raciocinar dentro da lógica do sistema produtor de mercadorias, pois afinal, de tudo que consumimos, não existe um grama sequer de valor, mas apenas matérias orgânicas e esforço humano, que podem e devem prescindir desse intruso espoliador chamado dinheiro e de sua força primária substancial –o trabalho abstrato (ora paradoxalmente negado).

Enquanto isso, na terra do poeta Carlos Drummond de Andrade, onde antes tinha uma pedra no caminho, hoje corre um rio de lama de minério de ferro...   (por Dalton Rosado)