Terça, 25 de setembro de 2018
Última indicação para diretoria da Agência Nacional de Saúde Suplementar mostra a que ponto os interesses particulares penetraram no órgão que deveria regular as empresas
Por Marilena Lazzarini, Ligia Bahia e Mario Scheffer*, no Outra Saúde
24 de setembro de 2018
É notória a influência das empresas de planos de saúde na indicação de diretores para a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A interferência ocorre em todas as etapas do processo de nomeação, que se inicia quando o Ministro da Saúde encaminha à Casa Civil um nome (geralmente de seu partido ou da base aliada do governo) que tenha “experiência”, ou seja, confiável para levar adiante os interesses do mercado. A Casa Civil, após certificar-se do nome com empresários de planos de saúde, submete o candidato à avaliação do Presidente da República, que encaminha mensagem de indicação ao Senado Federal.
Neste momento ocorre a apresentação do escolhido a parlamentares também de “confiança”, para que facilitem a aprovação do indicado. No Senado, a Comissão de Assuntos Sociais (CAS), em atenção aos padrinhos políticos e ao relatório favorável à indicação, sabatina o candidato e vota, invariavelmente, por sua aprovação. A CAS envia então o nome ao plenário do Senado, que confirma a aprovação em meio a articulações e combinados elogios. O encaminhamento ao Presidente da República é o último passo antes de o diretor ser nomeado e assumir uma das diretorias da ANS. Tais práticas de escolha de dirigentes não são exclusivas para a ANS. Ocorrem também nas indicações para Anvisa e demais agências reguladoras.
No passado havia tentativas de disfarçar a origem das indicações. Sabatinas no Senado costumavam, no mínimo, opor parlamentares da situação a alguns da oposição. Denúncias e documentos produzidos por entidades da sociedade civil, da saúde e da defesa do consumidor, sobre a evidente vinculação dos indicados com empresas de planos, chegaram a ser parcialmente acatadas por comissões de ética e levadas em consideração por parlamentares no momento da sabatina. O padrão de imposição de nomes e formação de resistências minoritárias foi, no entanto, alterado.
A mais recente aprovação de um diretor da ANS, Paulo Rebello, explicitamente vinculado ao Partido Progressista (PP), não teve nenhuma contestação no Senado e obteve aprovação por unanimidade. A decisão ocorreu após a retirada do nome de Davidson Tolentino de Almeida, antes indicado pelo PP, porém desgastado por acusação pública de envolvimento em esquema de corrupção, arrecadação e estocagem de dinheiro ilícito. Mesmo sem qualificações técnicas para ocupar uma diretoria da ANS, Paulo Rebello teve sua indicação aceita pela oposição no Senado, o que sugere o reatamento de coalizões parlamentares incluindo PP, PT e PSDB, entre outros partidos.
Ou seja, prevaleceram interesses paroquiais mesmo em pleno contexto da disputa eleitoral de 2018. A saúde e sua imensa relevância para a população são, portanto, objetos de arranjos domésticos e de acordos entre parlamentares de partidos de distintas tradições ideológicas.
O currículo do indicado, Paulo Rebello, chama a atenção por revelar trabalhos anteriores para o setor privado e por uma carreira de ocupação de cargos em órgãos públicos diversos. Ele foi procurador-geral do município de Esperança (PB), assessor jurídico da Companhia de Águas da Paraíba (Cagepa) e da Fundação de Ação Comunitária do Estado da Paraíba. Atuou como conselheiro no Conselho Nacional de Trânsito – Contran, Conselho Fiscal da Companhia Brasileira de Transportes Urbanos (CBTU), e suplente no Conselho Fiscal da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba. Trabalhou no Ministério das Cidades como gerente de projetos e assessor especial do ministro, mesma função que exerceu no Ministério da Integração Nacional. Recentemente tornou-se chefe de gabinete do ministro da Saúde e membro do conselho de administração do Grupo Hospitalar Conceição.
Sua experiência é de assessor/conselheiro indicado por partidos políticos para cargos comissionados. Consequentemente, não preenche os requerimentos para ocupar a diretoria de um órgão estratégico para a saúde cujas decisões incidem sobre aproximadamente 50 milhões de brasileiros.
De acordo com o art. 5º da lei nº 9.986/2000, um diretor da ANS deve ter reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade do cargo. Para um profissional com tal trajetória, a diretoria da ANS significa uma promoção de cargo, um posto melhor do que os anteriores e não a perspectiva de dedicação ao trabalho para assegurar direitos à saúde e interesses da coletividade.
O partido responsável pela indicação foi o PP, o mesmo que ficou com o Ministério da Saúde na partilha para a composição da maioria parlamentar do governo Temer. Por isso, o relator para a aprovação do nome de Rebello foi o Senador Roberto Muniz (PP/BA). Dezesseis senadores, entre os quais parlamentares vinculados ao PT, aprovaram por unanimidade a indicação. No plenário do Senado esse quórum se estendeu para 43 parlamentares. O novo diretor, indicado pelo PP e apoiado unanimemente, se soma àqueles que, segundo informações veiculadas na imprensa, foram apadrinhados por Eunício Oliveira (MDB/CE), Romero Jucá (MDB/RR) e Renan Calheiros (MDB/ AL). Assim, quatro diretores atuais da ANS teriam possivelmente o carimbo das relações entre empresas do setor e parlamentares.
A submissão aos acordos empresariais e políticos tornou-se um padrão para a nomeação de diretores da ANS, o que inverte a direção das soluções para a saúde. A prioridade passou a ser o atendimento de interesses de empresários da saúde intermediados por políticas públicas. As empresas impõem regras à ANS e não o contrário. Esse modus operandi impede que o órgão regulador tenha autonomia para definir e executar políticas regulatórias relativas a coberturas, qualidade e preços ajustadas às necessidades e problemas de saúde. É o que está por trás de processos de desregulamentação propostos pela ANS, inspirados pelas acepções empresariais, tais como a liberação de cobranças de franquias e coparticipação, neste caso sustada pelo Supremo Tribunal Federal.
Tudo isso resulta numa instituição pública de saúde que não tem credibilidade e custa muito caro para os contribuintes. Embora a ANS conte com corpo de técnicos qualificados, esses não conseguem avançar proposições para uma regulamentação não capturada. Constituiu-se um ciclo vicioso: a ANS é fraca e a regulação serve aos interesses das empresas. A debilidade institucional da ANS é consequência da rarefação do debate técnico, acadêmico e político. A regulação necessariamente requer transparência e discussões intensas. Portanto, a aprovação de nomes da diretoria da ANS, sem debates e sem polêmicas, é extremamente preocupante.
A sabatina, por exemplo, do diretor nomeado antes de Paulo Rebello foi controversa (pelo fato de o indicado ter sido sócio de escritório de advocacia que defendia empresas junto à ANS) e a votação (nove a favor, três contra) expressou contradições. A unanimidade agora é assustadora, sinaliza que nem sequer é necessário disfarçar o consentimento das instâncias partidárias à captura da ANS e não há pudor algum em reduzir a sabatina do Senado Federal a um grotesco teatro de favas contadas e cartas marcadas. Empresas de planos de saúde e partidos políticos transformaram a ANS, definitivamente, em um escritório para despachar seus negócios.
*Marilena Lazzarini é presidente do Conselho Diretor do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Ligia Bahia, professora da UFRJ e Mario Scheffer, professor da USP.