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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 29 de março de 2024

TRANSIÇÃO —A sociedade como um todo foi vítima da ditadura, diz especialista sobre justiça e reparação

Sexta, 29 de março de 2024

Juventudes em protesto contra a ditadura militar - Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Torturados, mortos, desaparecidos e familiares são mártires mais óbvios, porém consequências atingem toda vida política

Caroline Oliveira
Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 29 de março de 2024 às 14:59

O Brasil completa, em 1º de abril deste ano, 60 anos do golpe militar de 1964. Desde o fim da ditadura, em 1985, não houve um acerto de contas definitivo com o passado. Isso significa que nenhuma medida contínua e eficiente ligada à Justiça de Transição foi implementada a fim de reparar as violações praticas pelos militares. Também significa que não houve a construção de um entendimento do quão prejudicial para a sociedade foi o regime.

Apesar de algumas legislações e da instalação da Comissão Nacional da Verdade, bem como da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, as medidas não foram suficientes para trazer reparações às vítimas e à sociedade no geral.

Carla Osmo, que é professora de Direito na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e integrante do Observatório da Proteção dos Direitos Humanos do (CAAF/Unifesp), explica que a Justiça de Transição busca oferecer reparações às vítimas, mas também para sociedade brasileira, que foi vitimada como um todo.

A docente afirma que essas medidas são importantes para responder aos crimes do passado e fortalecer o processo de construção de democracia. "Um processo de olhar para o passado para poder fortalecer a democracia no presente e no futuro e construir um Estado em que a gente tenha uma convicção de que, na teoria e na prática, a tortura é inaceitável", disse a especialista em entrevista ao Brasil de Fato.

Carla Osmo / Acervo pessoal

Osmo afirma que as condutas graves e criminosas precisam ser repudiadas, inclusive, "para simbolicamente ter uma conscientização de que não é aceitável esse tipo de prática. Se não tem um processo de reconhecimento de que isso não só é errado, mas é gravíssimo, e que deve ser repudiado, a mensagem que a gente passa é que isso é aceitável".

"Se a gente desconhece qual é a nossa história, como a gente consegue exercer nossa cidadania? Como a gente consegue de fato tomar uma decisão consciente sobre quem a gente quer eleger como nosso governante? Ou o que a gente quer que sejam as práticas do nosso governo e do nosso Estado?", questiona.


Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: O que é a Justiça de Transição?

Carla Osmo: A Justiça de Transição é um campo de estudo e de prática constituído sobretudo a partir da década de 90, num contexto de pós regimes autoritários em vários lugares do mundo em transições democráticas. Nesse período, passa a haver a discussão sobre uma transição democrática e a lidar com os legados das violações graves de direitos humanos praticadas pelos regimes autoritários.

Isso envolve uma reflexão sobre as políticas e as práticas adotadas em alguns países, como políticas de reparação, comissões da verdade e toda uma discussão sobre exigência de responsabilização individual, especialmente na esfera criminal dos agentes que perpetraram violações graves de direitos humanos durante os regimes autoritários.

Se a gente olhar especificamente para a realidade da América Latina, foi uma realidade bastante comum a adoção de medidas como leis de anistia ou medidas análogas para impedir processos criminais contra os agentes dos regimes que praticaram as violações graves de direitos humanos. Então os movimentos de direitos humanos começam a defender, inclusive acionando os órgãos internacionais de direitos humanos, a necessidade de que haja uma investigação, um esclarecimento sobre os crimes.

Entre os crimes, tem a questão dos desaparecimentos forçados, que foi uma prática amplamente adotada na América Latina no contexto das repressões políticas, que consistiam em matar as pessoas acusadas de participar de organizações da oposição às ditaduras e ocultar os cadáveres por diferentes maneiras.

Os corpos dessas pessoas nunca foram localizados, identificados e restituídos. É uma violação muito grave e cruel. Internacionalmente se equipara à tortura. Os familiares das vítimas ficam sem condição de completar o seu processo de luto e fazer os seus rituais de despedida de acordo com as suas crenças.

Qual foi o papel desses órgãos internacionais?

Existe uma discussão sobre o combate a medidas de anistia ou análogas à impunidade. Os movimentos de direitos humanos e as organizações de familiares de vítimas passam a demonstrar que são medidas violadoras dos direitos humanos por impedirem a responsabilização por violações gravíssimas.

Nesse sentido, os órgãos internacionais estabelecem, de forma expressa, que de fato essas medidas não podem inviabilizar os processos de responsabilização e condenam os Estados que adotaram essas medidas.

O Brasil, por exemplo, foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em casos do período da ditadura. Um é o Gomes Lund, relativo à repressão e aos desaparecimentos forçados no contexto de repressão à Guerrilha do Araguaia. Outro caso é o Vladimir Herzog. Um dos motivos da condenação em um dos casos foi a adoção da Lei da Anistia.

Então, pode-se dizer que papel dos familiares de vítimas e outras pessoas que foram atingidas diretamente foi essencial para o estabelecimento de algumas respostas?

Se a gente olha para o processo brasileiro de Justiça de Transição, a gente percebe algumas coisas. Em primeiro lugar, teve um atraso muito grande na adoção de qualquer tipo de resposta. Prevaleceu, principalmente entre as elites, durante a transição, uma visão de que caberia deixar o passado no passado, virar a página, sem investigar, sem promover reparação e responsabilização, como se fosse possível construir, de fato, uma democracia e evitar a continuidade da prática de violações graves dos direitos humanos sem adotar essas medidas de resposta.

Por muito tempo, quem levou adiante todo o processo de investigação e de luta pela memória e pela justiça foram as pessoas atingidas, os familiares de pessoas mortas, vítimas de desaparecimento forçado, pessoas que sofreram tortura. Essas pessoas por muito tempo carregaram e fizeram o processo de investigações sozinhas, sem apoio do Estado. E é assim até hoje.

Por exemplo, demorou muito para ter a abertura de arquivo. Hoje a gente tem acervos sem acesso com a alegação de que foram destruídos.

Outra coisa que os familiares fizeram foi mover ações judiciais contra o Estado para declarar a sua responsabilidade pelas violações e para pedir o reconhecimento de que o Estado é responsável.

Inicialmente, essas ações conseguiram algumas responsabilizações do Estado na justiça. Mas até hoje somente um processo judicial chegou a uma sentença definitiva, que declara um agente do Estado responsável por violação grave de direitos humanos, que é o processo da família Almeida Telles contra o coronel Brilhante Ustra [essa ação é uma ação declaratória de natureza civil que leva a um único reconhecimento judicial, sem relação com responsabilização criminal].

Por parte do Estado brasileiro houve alguma ação?

Com o entendimento de que isso é uma questão de interesse público para a sociedade brasileira, essas famílias também seguiram demandando do Estado políticas de enfrentamento às violações graves que aconteceram na ditadura.

A primeira, lei 9.140, de 1995, criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e atribuiu a ela a competência de reconhecer os casos de mortes e desaparecimentos de responsabilidades. A própria lei traz uma primeira lista de pessoas desaparecidas por ação do Estado. A comissão ficou responsável por analisar os requerimentos e determinar o pagamento de indenizações a familiares. Também teve a função de proceder as buscas e identificação de desaparecidos.

Depois teve a criação da Comissão de Anistia, que é regulada pela lei 10.559, de 2002. Essa legislação ficou responsável por processos de reparação a outras formas de perseguição política. Só que essas comissões, ainda que com muita dificuldade, tentaram concretizar a concepção de reparação integral, que é parte do Direito Internacional dos direitos humanos.

A existência de um direito à reparação integral em caso de violação de direitos humanos, que vai além de indenização, abarca medidas de várias naturezas, como a atenção médica e psicológica às vítimas e familiares; medidas de reparação simbólica; medidas de promoção da memória; e a garantia de adoção de políticas contra a estrutura de órgãos que favorecem a continuidade da prática de violações de direitos humanos.

Essa competência das comissões não foi bem compreendida pela sociedade brasileira, que achava que essa parte de memória não era importante. Hoje o Brasil está muito atrasado no que diz respeito à promoção da memória das violações da ditadura, como a demarcação dos lugares em que aconteceram as violações graves ou em que aconteceram processos de resistência. A gente tem pouco disso. Muito aquém do que deveria ser.

Essas legislações desembocaram em ações concretas?

Depois teve a Comissão Nacional da Verdade, que trouxe muitas evidências de que a prática de violações graves durante a ditadura fazia parte de uma política de Estado e, portanto, caracterizava crime contra a humanidade.

Mas, diferente do que aconteceu em outros países da América Latina, em que o Judiciário passou a observar a normativa Internacional de direitos humanos admitindo esses processos, houve um bloqueio no Brasil. O Ministério Público Federal, principalmente a partir da condenação do Estado brasileiro no caso Gomes Lund, em 2010, começou a promover uma série de ações de natureza criminal, que hoje já são dezenas. Mas elas, em regra, são bloqueadas pelo Judiciário devido à Lei da Anistia.

Tem algumas poucas exceções, como o processo contra o carcereiro da casa da morte, Antônio Waneir Pinheiro Lima, conhecido como Camarão, responsável pela tortura e pelo estupro de Inês Etienne Romeu. Outro evento é ação contra Cláudio Guerra, um ex-delegado do DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] que participou da ocultação de cadáveres. São processos que tiveram desdobramentos [ambos foram condenados judicialmente no âmbito criminal].

Agora, a regra geral tem sido o bloqueio pelo Judiciário brasileiro, contrariando as normativas internacionais. No campo da responsabilização individual, da responsabilização criminal, a gente não tem quase nada.

E qual é a consequência disso para a sociedade brasileira?

Os processos de Justiça de Transição têm vários objetivos. Uma dimensão é oferecer alguma reparação às vítimas. Mas também têm uma importância de interesse público, porque justamente tem a ver com uma reparação para sociedade brasileira, que também é, de forma geral, vitimada por meio de uma violência disseminada e generalizada.

Na ditadura, a gente teve um incentivo para que empresas fossem instaladas e se desenvolvessem pelo interior do Brasil. Também teve incentivo para grandes empreendimentos, como estradas, atividade de mineração, a construção de hidrelétricas, etc. Isso tudo por meio de muita violência, muita repressão e violações gravíssimas contra povos indígenas, camponeses e quilombolas. Então é uma amplitude de grupos atingidos por essa violência, que também são merecedores de reparação.

A gente percebe que as condutas graves e criminosas, especialmente aquelas que configuram os mais graves crimes, têm que sofrer algum tipo de repúdio. Inclusive para simbolicamente ter uma conscientização de que não é aceitável esse tipo de prática. Se não tem um processo de reconhecimento de que isso não só é errado, mas é gravíssimo e que deve ser repudiado, a mensagem que a gente passa é que isso é aceitável.

Existe um desconhecimento do que foi a ditadura militar, quem e como foi atingido. A gente vê elogios à ditadura e entendimentos de legitimidade do que foi feito. É importante um processo para que a sociedade brasileira conheça a sua história e a partir disso tenha condições não só de avaliar o passado, mas também tomar suas decisões enquanto cidadão e cidadã sobre o presente e o futuro.

Se a gente desconhece qual é a nossa história, como a gente consegue exercer nossa cidadania? Como a gente consegue de fato tomar uma decisão consciente sobre quem a gente quer eleger como nosso governante? Ou o que a gente quer que sejam as práticas do nosso governo e do nosso Estado?

Existe, às vezes, uma ideia muito equivocada de que tratar das violações da ditadura é olhar para o passado quando se tem muitos problemas no presente.

Mas não se trata só de botar o dedo na ferida por botar dedo na ferida. Se trata de reparar os maus do passado e fortalecer o processo de construção de democracia mesmo. Um processo de olhar para o passado para poder fortalecer a democracia no presente e no futuro e construir um Estado em que a gente tenha uma convicção de que na teoria e na prática, a tortura é inaceitável.

Edição: Matheus Alves de Almeida