Segunda, 5 de dezembro de 2011
Do MPF
Os índios convidaram procuradores da
República do Pará e do Mato Grosso para falar da revolta pela forma como
o governo tenta barrar o rio sem consultá-los
Rio Teles Pires
Procuradores da República do Mato Grosso e do Pará
estiveram semana passada na Terra Indígena Kayabi, na divisa entre os
dois estados, a convite dos índios kayabi e munduruku, para debater os
projetos de usinas hidrelétricas que afetam suas terras. Em outubro,
essas mesmas etnias fizeram reféns sete funcionários da Funai e da
Empresa de Pesquisa Energética (EPE) que faziam estudos sobre as
hidrelétricas.
O governo federal planeja seis barragens para o
Teles Pires, que juntamente como o Juruena, forma o rio Tapajós. Para a
bacia toda, que inclui ainda os rios Jamanxim e Apiacás, o plano é fazer
um total de 16 barragens, o que vai impactar de maneira decisiva mais
de 10 mil indígenas que vivem as margens desses rios e dependem dele
para sobreviver.
Inconformados com os projetos e com a velocidade
dos acontecimentos – as usinas Teles Pires, Colíder e Sinop já estão em
execução, sem estudos indígenas concluídos – os índios convidaram os
procuradores da República que atuam no Mato Grosso e no Pará para uma
visita à aldeia Kururuzinho, onde denunciaram a forma como o governo
conduz os empreendimentos e o abandono que as comunidades enfrentam. O
MPF já iniciou duas ações civis públicas na Justiça Federal contra as
usinas Teles Pires e São Manoel e acompanham o andamento das outras.
A
principal queixa dos índios é a ausência de consulta sobre os
empreendimentos. “Pra quê todos os governos do mundo assinaram a
Convenção 169?”, questionou Jairo Munduruku, referindo-se à convenção
internacional da qual o Brasil é signatário, que obriga consulta aos
povos indígenas para projetos de infraestrutura que afetem suas terras.
“Se
o governo tá desrespeitando a lei, a Constituição, a Convenção169, tá
desrespeitando também todos os caciques. E pra nós isso é questão de
vida ou morte, porque a água é a nossa vida”, discursou. “Enquanto tiver
cacique e tiver a Constituição, vamos lutar contra essas barragens”,
finalizou.
Cidade dos antepassados - Além da
perda dos peixes e da navegação, bases da vida indígena, uma das
questões mais graves para os índios é a destruição de três locais
sagrados de suas crenças no rio Teles Pires: o Morro do Jabuti, o dos
Macacos e um conjunto de cachoeiras conhecidas como Sete Quedas. Eles
acreditam, segundo a tradição, que nesses locais vivem os antepassados
mortos e que, se eles permitirem a violação, grandes tragédias se
abaterão sobre a região. “Vai acontecer muita coisa ruim com branco e
com índio, nós avisamos, mas branco é teimoso”, disse Walmar Munduruku.
“O
branco tem seu patrimônio cultural dentro da cidade, o patrimônio
cultural dos índios é nos campos, no mato, nas cachoeiras, no rio”,
explicou Walmar. “As coisas aqui são sagradas, que nossos avós e Deus
deixaram pra nós. Nas Sete Quedas onde estão os maiores peixes do mundo é
onde mora também a Mãe dos Peixes”, relatou José Emiliano Munduruku.
Ele
explicou a crença deles sobre o local: “é por isso que os peixes vêm
todo ano, para visitar as sete cachoeiras onde vive a mãe deles. Não
pode mexer lá, se a gente deixar mexer, vai levar muita gente junto,
porque embaixo das cachoeiras tem uma cidade que não é dos brancos, é
dos índios. É a cidade para onde vão todos os índios mortos”, contou.
A
importância religiosa e mitológica que os índios atribuem ao local
coincide com a importância ecológica: nas sete cachoeiras enfileiradas,
de fato, ocorre a desova de algumas espécies de peixes da região, como
pacu, pirarara, matrinchã, pintado e piraíba, que chegam a medir até 2
metros.
Apesar dos apelos e temores dos índios, as cachoeiras de
Sete Quedas no rio Teles Pires podem ser destruídas a qualquer momento,
porque o Consórcio Construtor da Usina Teles Pires já começou a fazer
explosões nessa área do rio, mesmo com a usina sendo questionada pelo
Tribunal de Contas da União e por ação judicial do MPF. Entre as
irregularidades apontadas, ainda não julgadas pela Justiça Federal de
Belém, consta a falha dos estudos em apontar todos os impactos.
No
caso dos impactos sobre a reprodução e sobrevivência das espécies de
peixes há sérios problemas nos estudos ictiológicos, que não chegaram a
fazer observação em campo e foram considerados insuficientes pelo
próprio Ibama.
No caso do patrimônio cultural indígena
relacionado aos acidentes geográficos do Teles Pires, o problema é ainda
mais grave. O governo brasileiro não se preocupou em identificar e
estudar a importância cosmológica, mitológica e religiosa do rio,
desrespeitando o direito dos índios à própria identidade cultural.
Elenildo
Kayabi acrescentou seu espanto com a rapidez dos projetos. “Eles estão
atropelando a gente, quando começamos a entender a usina de Teles Pires,
eles já vieram com a usina de São Manoel”, disse. E ironiza as soluções
da engenharia para os problemas que as usinas vão causar: “falam pra
gente que o peixe vai subir normalmente, que eles vão fazer elevador, a
gente até faz piada com isso: se tem gente que se perde em elevador lá
em Brasília, imagine os peixes aqui”.
“O governo e a Funai nunca
vieram aqui falar sobre demarcação, saúde, educação. Só vêm aqui falar
sobre barragem”, se admirou Floriano Munduruku. “A gente acredita que um
dia vai ter um limite, branco vai parar, estudar outra forma de energia
para deixar a gente em paz. Nossa vida era muito fácil, agora vai ficar
muito difícil”, disse.
A revolta dos índios chegou ao ponto de,
em outubro, fazerem reféns os sete funcionários que foram à aldeia
Kururuzinho para falar de barragens. Os reféns chegaram a ser ameaçados
de morte e foi construída uma gaiola no centro da aldeia para prendê-los
se o governo não paralisasse o projeto da usina. A gaiola ainda está
lá, como uma lembrança da revolta dos índios.
Sinais contraditórios
- Depois que libertaram os reféns, com a presença do exército e da
Polícia Federal, os Kayabi e os Munduruku foram levados para uma reunião
em Brasília com representantes dos Ministérios das Minas e Energia,
Meio Ambiente e Justiça. Eles exigiram a paralisação do processo de
licenciamento das usinas, mas até hoje não receberam nenhum documento
sobre a reunião.
Sinais contraditórios são emitidos de Brasília
sobre a Usina de São Manoel, o estopim da revolta, projeto que estava
previsto para entrar no próximo leilão de energia, e que incide
diretamente sobre a Terra Kayabi. Para libertar os reféns, o governo
prometeu adiar as audiências públicas, mas publicou o edital delas no
Diário Oficial e recorreu contra a liminar do MPF que garantia o
adiamento.
Depois de nova carta dos índios acusando o governo de
traição, o Ibama voltou atrás e comunicou que as audiências estavam
realmente adiadas. Elas não ocorreram no última dia 25 de novembro, como
anteriormente previsto.
Mas, no dia 21 de novembro, no balanço
do PAC apresentado pela ministra do Planejamento Miriam Belchior, a
usina de São Manoel aparece como pronta para receber licença prévia até
30 de janeiro de 2012. E ainda não foi retirada do edital do leilão do
próximo dia 20 de dezembro, que está no site da Agência Nacional de
Energia Elétrica.
“Concordamos com os índios que a rapidez e o
atropelamento do processo são assustadores”, diz o procurador Felício
Pontes Jr., que acompanha o caso a partir de Belém. “Como o governo
anuncia a data para uma usina receber licença prévia sem ter feito
consulta ou sequer concluído os estudos dos impactos aos índios?”,
pergunta a procuradora da República Márcia Zollinger, que atua em Mato
Grosso.
Além das UHE São Manoel e Teles Pires, afetando
diretamente as Terras Munduruku, Apiacá e Kayabi o governo projeta as
usinas de Foz do Apiacás, Colíder e Teles Pires. Para nenhuma delas até
agora foi feita consulta aos índios ou concluídos estudos de impacto
sobre a vida deles.