Quinta, 22 de dezembro de 2011
Robert Fisk (The Independent, UK)
Escrevendo da região que produz a maior quantidade de clichês por
palmo quadrado em todo o mundo – o Oriente Médio –, talvez eu devesse
fazer uma pausa e respirar fundo antes de dizer que jamais li tal
quantidade de lixo, de tão completo e absoluto lixo, como o que tenho
lido ultimamente, sobre a crise financeira mundial.
Mas… que seja! Nada de meias palavras. A impressão que tenho é que a
cobertura jornalística do colapso do capitalismo bateu novo recorde
(negativo), tão baixo, tão baixo, que nem o Oriente Médio algum dia
superará a acanalhada subserviência que se viu, em todos os jornais, às
instituições e aos ‘especialistas’ de Harvard, os mesmos que ajudaram a
consumar todo o crime e a calamidade.
Comecemos pela “Primavera Árabe” – expressão publicitária, grotesca,
distorcida, que nada diz sobre o grande despertar árabe/muçulmano que
está sacudindo o Oriente Médio – e os escandalosos, obscenos paralelos
com os protestos sociais que acontecem nas capitais ocidentais. Fomos
inundados por matérias sobre os pobres e oprimidos do ocidente que
“colheram uma folha” do livro da “Primavera Árabe”; sobre manifestantes,
nos EUA, Canadá, Grã-Bretanha, Espanha e Grécia que foram “inspirados”
pelas manifestações gigantes que derrubaram regimes no Egito, Tunísia e –
só em parte – na Líbia. Tudo isso é loucura. Nonsense.
A verdadeira comparação, desnecessário dizer, ficou esquecida pelos
jornalistas ocidentais, todos ocupadíssimos em não falar de rebeliões
populares contra ditaduras, tanto quanto ocupadíssimos em ignorar todos
os protestos contra os governos ocidentais “democráticos”, desesperados
para separar as coisas, dedicados a sugerir que o ocidente estaria
apenas colhendo um último alento dos estertores das revoltas no mundo
árabe. A verdade é outra.
O que levou os árabes, às dezenas de milhares e depois aos milhões,
às ruas das capitais do Oriente Médio, foi uma demanda por dignidade, a
recusa a aceitar os ditadores & famílias e claques de ditadores
que, de fato, viviam como se fossem donos de seus respectivos países. Os
Mubaraks e os Ben Alis e os reis e emires do Golfo (e da Jordânia),
todos acreditavam que tinham direitos de propriedade sobre tudo e todos.
O Egito pertencia à Mubarak Inc.; a Tunísia, a Tunisia à Ben Ali Inc.
(e à família Traboulsi) etc. Os mártires árabes, das lutas contra as
ditaduras, morreram para provar que seus países pertencem a eles, ao
povo.
E aí está a real semelhança que aproxima as revoluções árabes e
ocidentais. Os movimentos de protesto que se veem nas capitais
ocidentais são movimento contra o Big Business – causa perfeitamente
justificada – e contra “governos”.
O que os manifestantes ocidentais afinal entenderam, embora talvez um
pouco tarde demais, é que, por décadas, viveram o engano de uma
democracia fraudulenta: votavam, como tinham de fazer, em partidos
políticos. Mas os partidos, imediatamente depois, entregavam o mandato
democrático que recebiam do povo, do poder do povo, aos banqueiros e aos
corretores de ‘derivativos’ e às agências ‘de risco’ – todos esses
apoiados na fraude que são os ‘especialistas’ saídos das principais
universidades e think-tanks dos EUA, que mantêm viva a ficção de que
viveríamos uma ‘crise de globalização’, e não o que realmente vivemos:
uma falcatrua, uma fraude massiva, um assalto, um golpe contra os
eleitores.
Os bancos e as agências de risco tornaram-se os ditadores do
ocidente. Exatamente como os Mubaraks e Ben Alis, os bancos acreditaram –
e disso continuam convencidos – que seriam proprietários de seus
países.
As eleições no ocidente, que deram poder aos bancos e às agências de
risco, mediante a conluio de governos eleitos – tornaram-se tão falsas
quanto as urnas que os árabes, ano após ano, eram obrigados a visitar,
décadas a fio, para ‘eleger’ os proprietários deles mesmos, de sua
riqueza, de seu futuro.
Goldman Sachs e o Real Banco da Escócia converteram-se nos Mubaraks e
Ben Alis dos EUA e da Grã-Bretanha, cada um e todos esses dedicados a
afanar a riqueza dos cidadãos, garantindo ‘bônus’ e ‘prêmios’ aos seus
próprios gerentes pervertidos. Isso se fez no Ocidente, em escala
infinitamente mais escandalosa do que os ditadores árabes algum dia
sonharam que fosse exequível.
Não precisei – embora tenha ajudado – de Inside Job, de Charles
Ferguson, essa semana, na BBC2, para aprender que as agências de risco e
os bancos nos EUA são intercambiáveis: o pessoal que lá trabalha
muda-se sem sobressalto, dos bancos para as agências, das agências para
os bancos… e todos, imediatamente, para dentro do governo dos EUA.
Os rapazes ‘do risco’ (a maioria, rapazes, claro) que atribuíram grau
AAA aos empréstimos e derivativos podres nos EUA estão hoje – graças ao
poder vicioso que exercem sobre os mercados – matando de fome e medo os
povos da Europa, ameaçando-os de ‘rebaixar’ os créditos europeus,
depois de se terem associados a outros criminosos do lado de cá do
Atlântico, associação que já se construía desde antes do crash
financeiro nos EUA.
Acredito que dizer menos ajuda a vencer discussões, mas, perdoem-me:
Quem são esses seres, cujas agências de risco metem mais medo nos
franceses hoje, que Rommel em 1940?
Por que os meus colegas jornalistas em Wall Street nada me dizem?
Como é possível que a BBC e a CNN e – ah, santo deus, também a
al-Jazeera – tratem essas comunidades criminosas como inquestionáveis
instituições de poder? Por que nada investigam – Inside Job já abriu o
caminho! – desses escandalosos corretores duplos?
Fazem-me lembrar o modo igualmente acanalhado como tantos jornalistas
norte-americanos cobrem o Oriente Médio, delirantemente evitando
qualquer crítica direta a Israel, imbecilizados por um exército de
lobistas pró-Likud, dedicados a explicar aos leitores e telespectadores
por que devem confiar no “processo de paz” norte-americano para o
conflito Israel-Palestinos, porque os ‘mocinhos’ são os “moderados” e
todos os demais são os ‘bandidos’ “terroristas”.
Os árabes, pelo menos, já desmascararam todo esse nonsense. Mas
quando os manifestantes contra Wall Street fazem o mesmo, imediatamente
passam a ser “anarquistas”, os “terroristas” sociais das ruas dos EUA
que se atrevem a exigir que os Bernankes e Geithners sejam julgados pelo
mesmo tipo de tribunal que julga Hosni Mubarak. Nós no Ocidente –
nossos governos eleitos – criamos nossos ditadores. Mas, diferentes dos
árabes, ainda mantemos intocáveis os nossos ditadores, intocáveis.
O chefe de governo da República da Irlanda, Enda Kenny, solenemente
informou ao povo que seu governo não é responsável pela crise em que se
debatem todos os irlandeses. Todos já sabiam, é claro. O que ele não
contou ao povo é quem, então, seria o responsável. Já não seria mais que
hora de ele e seus colegas primeiros-ministros da União Europeia contar
o que sabem? E quanto aos nossos jornalistas e repórteres?
Fonte: Tribuna da Imprensa