Sábado, 13 de abril de 2013
#WikiLeaksPlusD
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
Embaixada pediu a repórter da TV americana para ouvir Roberto Marinho,
da Globo, e Nascimento Brito, diretor do Jornal do Brasil, vozes menos
criticas à censura oficial
Em 1973 o governo do general Emílio Garrastazu Médici entrava em seu
quarto ano, consolidando a presença da chama “linha dura” militar no
governo. A censura à imprensa se estruturou e se oficializou, abarcando
todos os principais veículos de imprensa do país. Sob Médici, a maioria
das redações recebiam bilhetinhos apócrifos ou ligações quase diárias de
membros da Polícia Federal – a força encarregada de controlar a censura
– com a relação de temas que não poderiam ser abordados: desde relatos
de tortura e prisões políticas até reportagens sobre a precária situação
dos trens, a pobreza no país ou escandalosos casos de corrupção.
Outras, como Veja e o Pasquim, tinham que enviar seu conteúdo para a
censura prévia. O Estado de S. Paulo convivia com um censor plantado
dentro da redação, lendo todos os textos para decidir o que podia e o
que não podia ser publicado.
Para os Estados Unidos, porém, país que propagandeava a democracia
como resposta à “ameaça comunista”, nada disso importava. Pelo
contrário: documentos constantes no PlusD, do WikiLeaks, mostram que a
diplomacia americana chegou a defender a censura do regime militar
brasileiro perante um jornalista da poderosa rede de TV americana CBS.
“O cônsul geral de São Paulo relata que o correspondente da CBS na
América Latina, George Nathanson, está em São Paulo, fazendo um vídeo
sobre a censura à imprensa brasileira. A ideia de realizar essa história
foi incitada pelo artigo do New York Times de 21 de feveriro sobre esse
assunto”, escreveu o então embaixador dos EUA no Brasil, William
Rountree, que ficou no posto entre 1970 e 1973. O correspondente estava
filmando na redação do Estado de São Paulo e, segundo ele, a reportagem
corria muito bem.
Mas a embaixada tinha outra ideia de como a censura deveria ser
retratada. “Durante um almoço com Nathanson na semana passado, o Oficial
para Relações Públicas [da embaixada] sugeriu que Nathanson tentasse
obter todos os lados da história da censura no Brasil”, descreve o documento de 9 de março de 1973,
marcado “para uso oficial limitado”. “Além de apenas falar com fontes
da mídia veementemente opostos e afetados pela censura presente, o
oficial de relações públicas mencionou que seria útil a Nathanson falar
com figuras como o conselheiro presidencial Coronel Otávio Costa [chefe
da assessoria de Relações Públicas da Presidência] e outros oficiais do
governo, bem como representantes da mídia como Roberto Marinho, da
Globo, e Nascimento Brito, do jornal do Brasil, que veem a questão da
censura de maneira diferente da família Mesquita, do Estado”. Em seguida
o embaixador, satisfeito, afirma que o jornalista acatou a sugestão e
“expressou interesse nesta abordagem para fazer uma cobertura
balanceada”.
Existe cobertura balanceada sobre censura?
O aparato censório do regime militar foi construído sob as asas do
Ato Institucional no. 5. Logo após sua decretação, em 13 de dezembro de
1969, o general Silvio Correia de Andrade, delegado da Policia Federal
em São Paulo, declarou em entrevista coletiva: “Podem dizer que foi
instaurado o arrocho à imprensa escrita, falada e televisada por parte
do Contel, sob minha fiscalização direta. Os jornais estão sob censura
no que diz respeito a greves, passeatas, comícios, agitação estudantil e
qualquer tipo de ataque às autoridades”.
A PF seria responsável por calar a imprensa; no ano seguinte, dezenas
de delegados destacados para esse fim receberam uma extensa lista de
normas. Eles deviam vetar notícias “falsas” ou sensacionalistas,
testemunhos em “off” (com fontes anônimas), comentários de
pessoas atingidas pelos atos institucionais ou ligadas a entidades
estudantis dissolvidas. Também eram proibidas notícias sobre todo tipo
de repressão: cassações de mandatos, suspensão de direitos políticos,
prisões, tortura.
Em 1971 o ministro da justiça Alfredo Buzaid aumentou a lista,
proibindo também notícias “sensacionalistas” que prejudicassem a imagem
do Brasil no exterior, notícias que colocassem em perigo a política
econômica do governo, e até mesmo a “divulgação alarmista” de
“movimentos subversivos” em países estrangeiros. Segundo levantamento do
jornalista Élio Gaspari, entre 1972 e 1975 o Jornal do Brasil recebeu
270 ordens enviadas por telefone ou por escrito pelos policiais da PF.
Apenas em 1973 – ano em que os diplomatas americanos queriam suavizar a
cobertura da CBS sobre a censura brasileira – o pesquisador Paolo
Marconi – consultando diversos veículos como Folha de S. Paulo, Rádio e
TV Bandeirantes, em São Paulo, e Rádio e TV, em Salvador – contabilizou
um total de 143 ordens enviadas pela PF. A maioria dos veículos
praticava, então, a auto-censura, descartando os temas proibidos. É o
caso da Globo de Roberto Marinho e do Jornal do Brasil de Nascimento
Brito, apontados pelo embaixador como menos críticos à censura oficial.
Os veículos que mostravam alguma resistência tinham edições inteiras
apreendidas ou eram submetidos à censura prévia – caso do Jornal da
Tarde e da Revista Veja, então comandada por Mino Carta, que eram
visitados por censores ou obrigados a mandar as edições antes de
publicadas para a sede da PF em Brasília. Convivendo diariamente com um
censor da PF, o Estado de S. Paulo teve 1136 reportagens censuradas
entre março de 73 e janeiro de 75. Foram vetadas matérias sobre a
Petrobrás, a questão indígena, a política de saúde pública, corrupção no
ensino e até mesmo racismo no futebol.
Por sua vez, semanários pequenos e mais independentes como Opinião,
baseado no Rio de Janeiro, e Movimento, de São Paulo, tiveram
jornalistas presos, edições apreendidas e seus diretores interrogados
inúmeras vezes. Daí o caráter “econômico” da censura, que foi
responsável pelo desmantelamento, por asfixia financeira, de jornais de
extrema qualidade e linhas editoriais progressistas – provocando um
impacto que até hoje influencia o cenário da imprensa brasileira.
Publicações independentes como Opinião, Ex, Movimento e Pasquim tiveram
edições inteiras apreendidas; as três primeiras tiveram que fechar as
portas sob o peso da censura. Só o jornal Movimento teve 40% de todo o
seu conteúdo censurado – mais de 3 mil artigos, mais de 4,5 milhões de
palavras.
Os americanos sabiam, claro
Nada disso era novidade para o Departamento de Estado chefiado por Henry Kissinger – o mesmo que criticou a lei de acesso
à informação americana afirmando “antes da lei eu costumava dizer em
reuniões, ‘o que é ilegal nós fazemos imediatamente; o que é
inconstitucional leva mais tempo’, mas desde a lei eu tenho medo de
dizer coisas assim”. Na verdade, os diplomatas americanos mantinham
contato próximo com jornalistas brasileiros, acompanhando de perto as
consequências da censura.
Assim, em 23 de março de 1973 – mesmo mês em que a embaixada defendia
a censura junto ao correspondente da CBS – o cônsul de São Paulo,
Frederick Chapin, relatou uma longa conversa
com o dono do Estadão, Julio Mesquita, sobre a censura ao jornal.
Embora o general Ernesto Geisel tivesse assumido com o compromisso de
promover a “distensão política”, com a restauração dos direitos civis,
nas duas semanas anteriores a tesoura da censura havia cortado seis
matérias do Estadão, que as substituíra por cartas e receitas
culinárias. Ao mesmo tempo, relata Chapin, Julio Mesquita enviara
telegramas a todos os congressistas, e o Estadão publicou uma nota
avisando que quem quisesse saber por que conteúdos desimportantes
estavam aparecendo no jornal poderia ligar para a redação – receberam
167 ligações. “Julio Mesquita disse que a forte pressão que ele estava
exercendo no governo para relaxar a censura estava fazendo efeito”,
relatou Chapin, já que o Estadão chegara a publicar histórias –
incluindo uma sobre censura – que não teriam passado. “Julio disse que
pretendia continuar a pressionar o governo na questão da censura”.
Ainda assim, os censores só sairiam do Estadão dois anos depois.
Sob o embaixador John Crimmins, que assumiu o posto após Rountree, a
embaixada dos EUA manteve uma “postura de não pôr as mãos” no tema da
censura, segundo palavras do próprio. Mas continuava acompanhando de perto o despropósito da censura, conversando diretamente com editores e publishers. É o que mostra um documento do Rio de Janeiro, datado de 13 de maio de 1974, detalhando a situação do jornal Opinião. Em conversa com o então cônsul geral Clarence Boonstra,
o empresário Fernando Gasparian, do Opinião, contava sobre os cortes
mais recentes: uma entrevista com o então candidato a presidência
francesa, François Mitterand, e com o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.
Nesse momento, a censura exigia novamente que o jornal fosse enviado a
Brasília, antes de ser publicado, até quarta-feira de cada semana.
“Gasparian estava ‘chocado e desanimado’ com os últimos acontecimentos”,
relata Chapin, e decidiu ir a Brasília para investigar o motivo dos
últimos cortes com o diretor-geral da PF, o coronel Moacyr Coelho. O
coronel, que Gasparian descrevia como “deprimido
e vacilante”, lhe disse que a censura havia sido decidida “em altas
instâncias do Ministério da Justiça” e que havia outros jornais sob
maior pressão, escreve Boonstra. “Ele voltou achando que ‘alguma coisa
aconteceu dentro do alto escalão do governo para forçá-los a voltar às
antigas restrições’. Gasparian disse que ouviu rumores em Brasília que
os militares linha-dura não estavam felizes com os passos do regime em
direção à liberalização e haviam demandado ‘apertar’ o controle da
imprensa e de outras áreas”, diz o despacho diplomático.
A partir de 1975, a censura se tornou mais seletiva e a censura
prévia foi sendo retirada aos poucos. Não foi um processo decisivo,
tendo idas e vindas de acordo com as pressões do momento, como mostram
as conversas constamente relatadas pelos diplomatas americanos. Em 4 de abril daquele ano,
a embaixada em Brasília enviou a Washington um relato sobre a
apreensão do jornal Pasquim, do Rio de Janeiro, pela PF, ocorrida logo
depois do veículo ter tido a censura prévia encerrada, e a uma edição
comemorativa especialmente robusta. Chamando-o de “tabloide satírico
semanal de centro-esquerda” Crimmins relata que, durante 5 anos, o
semanário fora obrigado a enviar para Brasília duas a três vezes mais
material do que necessário – texto, charges e fotos – para ser cortado.
“De acordo com [Millôr] Fernandes e outras fontes bem informadas da
imprensa, o alvo real da apreensão do Pasquim era um editorial forte de
Fernandes detalhando os problemas do jornal com a censura. Esses
problemas incluíam: uma queda brusca de leitores (Fernandes afirma que
houve uma queda de 200 mil para 100 mil em circulação nos seis primeiros
meses de censura; alguns observadores acreditam que o cálculo atual
seja de 50 mil) e assédio da equipe do Pasquim quando a censura teve
início (ex. interrogatório policial da maioria deles e prisão de dez
editores por dois meses, seguida da sua libertação e o arquivamento
subsequente do inquérito). Fernandes também argumentava [no editorial]
que o fim da censura prévia não significa que a imprensa livre
brasileira possa imprimir o que quer e lembrava aos leitores que muitos
dos jornais brasileiros ainda estavam sujeitos à censura”. O comunicado
encerrava dizendo que a apreensão “foi um enorme golpe em termos
financeiros”, já que o Pasquim dependia de vendas em banca.
A Veja de Mino Carta
A diplomacia americana também acompanhou de perto o périplo da
revista Veja, fundada e editada por Mino Carta entre 1969 e 1976, e
submetida a dois tipos de censura prévia ao longo dos anos: no geral,
algumas vezes por semana o material tinha que ser enviado à sede da PF
em São Paulo; mas em algumas ocasiões o material tinha que ser enviado a
Brasília dias antes da publicação.
Lembrando-se do episódio, Mino Carta contou á reportagem que era
Falcao quem, pessoalmente, decidia sobre a censura. “Eu tinha ido
almoçar com ele no Rio de Janeiro antes da posse, e ele me disse que a
censura na Veja ia acabar”. Quatro dias depois de tomar posse – no dia
15 de março de 1974 – Falcão o chamou a Brasília. “Ele me disse que ia
acabar a censura, e me deu o seu livro de presente, ‘A Revolução
Permanente’. Perguntei: sem nenhum compromisso? A censura saiu no final
de março, e comecei a publicar o que não tinha publicado até então. Aí
voltou”.
Em maio de 1974, foi a vez do consulado de São Paulo informar sobre a censura a Veja. O primeiro despacho,
do dia 10, é assinado pelo cônsul-geral Frederick Chapin. “Uma
empreitada de censura ameaça a continuação de Veja, respeitada revista
semanal”, descreve o cônsul A nova ordem exigia que todo conteúdo da
revista fosse enviado a Brasília na quarta-feira, inviabilizando a
cobertura de fatos “quentes”. Mino Carta – a quem Chapin chama de “um
dos jornalistas mais hábeis e mais conhecidos” do país – contava que a
nova ordem era uma represália, em especial, por uma charge de Millôr
Fernandes mostrando um homem sendo torturado, sobre a legenda “nada
consta”.
“Essa semana, quando Mino soube do endurecimento, ele ligou para o
general Golbery, que foi ‘evasivo e hipócrita’. O general Golbery
mencionou especificamente alguma insatisfação sobre a charge de Millôr
Fernandes”. Decepcionado, já que tanto Golbery quanto o ministro da
justiça de Geisel, Armando Falcão, haviam se manifestado contra a
censura, mas estariam cedendo aos militares “linha dura”, Mino Carta
ameaçava deixar a Veja. “Carta disse que não quer ter mais nada a ver
com Golbery e Falcão porque ‘seria como lidar com office boys’”, relata
Chapin. “Essas ordens, ele adicionou, vieram do ministro do Exército
Dale Coutinho, um representante do ‘sistema’, ou como ele chama, ‘o capo
máfia’ que ele [Mino Carta] acredita que controla o país’”, relata o
despacho enviado a Washington.
“O cumprimento das novas regras vai efetivamente matar a Veja,
segundo Carta”, escreve o cônsul, que finaliza o documento narrando que,
para o jornalista, “o propósito do endurecimento não é destruir Veja,
mas colocar a revista e a editora Abril ‘de joelhos”.
Roberto Civita, vice-presidente e filho do dono da editora Abril,
viajaria para Brasília em busca de um acordo – que também foi
acompanhado de perto pelos americanos. Em 28 de maio, outro despacho
do consulado de São Paulo, relata que a ordem fora revertida. Como
narrou Victor Civita ao americano, “[Dale] Coutinho se recusou a ver
Roberto, que então ligou para Golbery e para o ministro Falcão”. A
redação, portanto, voltaria a receber a visita de censores. O próprio
Golbery e Falcão haviam servido como “fiadores” do acordo entre os
censores e Veja. “Victor estava otimista sobre as relações futuras com a
administração Geisel”, relatou Chapin. O dono da Abril afirmou: “eu só
tenho três ou quatro amigos no governo agora, mas em um ano ou mais eu
vou conhecer bem 10 ou 12 deles”.
No entanto, a paz não duraria muito, reflexo da queda de braço
interna à administração Geisel. Em agosto de 1975, a ordem de enviar o
material para Brasília voltou – e foi prontamente relatada o
Departamento de Estado dos EUA. O estopim fora uma edição recente de um
discurso de Geisel, que Veja via como um sinal de que a distensão estava
morta. Hernani Donado, Relações Públicas da revista, conversou com os diplomatas.
“Donato disse que a linha dura ficou irritada pelos elogios de Veja ao
general Golbery (….) Golbery ligou pessoalmente para Mino Carta e pediu
que ele parasse com as histórias: ‘toda palavra boa que você fala sobre
mim é uma palavra ruim sobre os oponentes da distensão’”. Segundo o
embaixador Crimmins, Hernani Donato também acreditava que censores de
Brasília “não confiavam totalmente” nos seus subordinados de São Paulo, e
sentiam “que eles podem ter se tornado muito próximos de jornalistas
locais”. Em 27 de agosto, diplomatas da embaixada voltaram a almoçar com
Victor Civita para discutir o assunto. “Ele contou que lhe foi dito
para ser muito cuidadoso porque o governo tinha o poder de ‘colocá-lo de
joelhos’ quando quisesse”.
Na visão de Mino Carta, foi o que aconteceu no ano seguinte. “A
editora Abril queria um empréstimo de 50 milhões de cruzeiros da Caixa
Econômica Federal, mas o Falcão disse que não ia acontecer porque tinha
lá na editora uma revista que era contra eles. Eles queriam a minha
cabeça”, lembra o jornalista, em entrevista à Pública. “Eu era diretor
da empresa, podia ter pedido uma porcentagemn do dinheirão que eles iam
ganhar com o empréstimo. Mas falei pra eles que não queria um centavo
deles, e fui embora. Não sem antes jogar um cinzeiro em cima do Roberto
Civita”.
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