Quarta, 9 de julho de 2014
Os xingamentos ao
colombiano que tirou da Copa a estrela da seleção revelam o Brasil em que a
abolição da escravatura jamais foi completada
Texto
por Eliane Brum

O zagueiro Juan Camilo Zúñiga entrou bruto com o joelho nas costasde Neymar. Era um jogo duro e a seleção brasileira também já tinha
protagonizado entradas fortes sobre membros adversários. De lado a lado, se
acertava mais do que a bola, como não é raro acontecer em partidas decisivas.
Se pode criticar a arbitragem, reivindicar que a Fifa dê uma punição ao jogador
colombiano, sentir fundo a tragédia de Neymar, que passa a ser a de um país
inteiro. O que não deveria poder é o que aconteceu na sequência. Pelas redes
sociais, brasileiros chamaram Zúñiga de “preto safado”, pediram sua morte e
xingaram sua filha pequena de “puta”. Nos últimos anos, vários jogadores
brasileiros foram chamados de “macacos” por torcidas de outras nacionalidades.
Na sexta-feira (4), eram brasileiros aqueles que, na internet, colaram num
colombiano a expressão racista.
Não
deveria acontecer, mas aconteceu. E aconteceu no dia em que os capitães dos
times que disputaram uma vaga para a semifinal leram um manifesto da campanha
contra o racismo: “Rejeitamos qualquer tipo de discriminação de raça,
orientação sexual, origem ou religião. Através do poder do futebol, podemos
ajudar e livrar o nosso esporte e a nossa sociedade do racismo. Assumimos o
compromisso de perseguir esse objetivo e contamos com você para nos ajudar
nesta luta”. Depois do hino, brasileiros e colombianos posaram para fotógrafos
e cinegrafistas com uma faixa: “Say no to
racism” (“Diga não ao racismo”).
E
então a jogada bruta do campo expôs a brutalidade infinitamente maior fora do
campo, aquela que trespassa a sociedade brasileira há séculos – e atravessa o
futebol que encantou o mundo.
O futebol é fascinante também porque, ao mesmo
tempo em que suspende as tensões ao criar sua própria linguagem, as revela pela
mesma razão. De repente, a “Copa das Copas” expôs o Brasil dos linchamentos, o Brasil que botou a polícia militar para barrar a entrada de jovensdas periferias nos shoppings na virada do ano, o Brasil em que um
adolescente negro foi preso a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta.
Não
tenho instrumentos para medir o alcance dessa reação racista. Torço para que seja
minoritária. Mas é significativo que se destaque nos sistemas de busca. A
palavra que se escolhe para agredir alguém não é casual, ela sempre diz muito
mais de seu autor do que daquele que ele pretende ofender.
A
certa altura, na noite após o jogo, pessoas no Twitter começaram a postar: “Por
favor, não coloquem as palavras ‘Zúñiga’ e ‘preto’ no buscador. É pelo bem de
vocês”. Ao escrever as duas palavras, aparecia o pior. Em uma foto postada no
Instagram do jogador, sua filha pequena escreve na areia: “Papi te amo”. A
menina e sua mãe são ofendidas, até de estupro se fala, como costuma acontecer
com as mulheres.
Esses
torcedores parecem esquecer dos tantos negros da seleção brasileira, assim como
do maior de todos eles, Pelé. Ou mesmo de Neymar, já que, se a questão é de
“cor”, o herói abatido está longe de ser branco. Parecem esquecer de olhar para
si mesmos. Para eles, possivelmente, seja difícil ver. Ver e reconhecer-se.
Quem
chama Zúñiga de “macaco” nas redes sociais demonstra uma enorme ignorância, em
todos os sentidos do que é ignorância – e também sobre o futebol do Brasil. Em
seu belíssimo livro, “Veneno Remédio – o Futebol e o Brasil (Companhia das
Letras)”, José Miguel Wisnik recorda que, ainda nos anos 30 do século 20,
Gilberto Freyre dizia que o modo brasileiro de jogar convertia o “jogo
britanicamente apolíneo” em “dança dionisíaca”, incorporando à sua técnica “o
pé ágil mas delicado” do capoeira e do dançarino de samba. Freyre disse também
que o futebol europeu, reto e anguloso, ganhou, no Brasil, contornos sinuosos e
curvilíneos que arredondam e adoçam o jogo. Era a celebração da mestiçagem do
país que ganhava – talvez – sua melhor expressão na linguagem dos pés.
O
futebol começou no Brasil com os brancos, em clubes de elite. Sobrava aos
negros as bolas de meia ou de qualquer material que se arredondasse, nos
campinhos e nas ruas, nas margens. E foram nestas sobras que se agigantaram,
subverteram o futebol dos ingleses, criaram uma poética. Demoraram a ser
primeiro recebidos pelas portas dos fundos, depois tolerados e por fim aceitos
e aclamados. Mas a tensão persiste apesar das décadas. Expressa-se como um
corte no momento em que, seja na arquibancada ou na arena de vale-tudo das
redes sociais, um jogador negro é chamado de “macaco”.
Então,
por um rasgo no tempo, lembramos que o racismo ainda é uma marca terrível,
escavando abismos na sociedade brasileira. Abismos que também se desvelam na
brancura da torcida dentro dos estádios da Copa, contrastando com os negros que
recolhem as latinhas na parte externa, restos de uma festa em que sobram nas
margens. Ou limitam-se a assistir ao desfile da elite de seu país pelos portões
das “arenas”, reafirmando o seu lugar no lado de fora.
É
cheia de drama e de vergonhas a entrada dos negros nos clubes de futebol do
Brasil. Alguns, como o grande Friedenreich, o mulato com sobrenome alemão,
esticava o cabelo, usava gorros. Esbarrou sempre no preconceito da elite,
preocupada com a imagem do país no exterior, empreendendo grandes esforços para
esconder os negros do futebol brasileiro. Em 1920, quando a seleção visitou
Buenos Aires, um jornal local provocou o elenco brasileiro chamando os
jogadores de “macaquitos”. É possível, mas não há certeza, que esta tenha sido
a primeira vez que a palavra foi usada para expressar a discriminação racial no
campo do futebol brasileiro.
Outro
que demonstrava a força dessa violência era o mulato Carlos Alberto, ao encher
a cara de pó-de-arroz. “Não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção”,
descreve o cronista Mario Filho. “O cabelo de escadinha ficava mais escadinha,
emoldurando o rosto, cinzento de tanto pó-de-arroz. Quando o Fluminense ia
jogar com o América, a torcida de Campos Sales caía em cima de Carlos Alberto:
‘Pó de arroz! Pó de arroz!’”.
Depois
que os negros passaram a jogar nos clubes, pela razão irremovível de que eram
melhores, tinham espaço no campo, mas não na vida construída ao redor do
futebol, como os saraus dançantes das casas finas. A certa altura, os negros
eram chamados na crônica esportiva de “colored”, porque “preto” era um
palavrão. A palavra inglesa buscava escamotear o que ainda envergonhava os
brancos chiques: depender de negros para colecionar vitórias.
Toda
essa saga de resistência, invenção e talento está lindamente contada no livro
seminal de Mario Filho, “O negro no futebol brasileiro (Mauad X)”, que todos os
brasileiros deveriam ler, assim como qualquer pessoa que se interesse pelo país
ou pelo futebol ou por ambos. Quando Leônidas da Silva, o famoso Diamante
Negro, e Domingos da Guia se tornaram fenômenos de popularidade, carregavam com
eles toda uma história brutal e fascinante que, ainda hoje, está longe de
acabar. E que ficaria marcada depois no “Maracanazo”, o suposto trauma que
ainda persistiria no Brasil atual, por ter perdido a Copa para o Uruguai, em
1950. Jogadores negros e especialmente Barbosa, o goleiro, foram escolhidos
como culpados pela derrota, numa vitória que foi comemorada antes do jogo.
Pagaram uma enormidade por algo que avançava muito além deles e do Maracanã.
Com a vida para sempre assinalada, Barbosa apontado na feira, na praia, na rua
como aquele que “tinha feito o Brasil chorar”.
O
futebol festejado nesta Copa do Mundo de 2014 no Brasil é este, em grande parte
moldado por negros que “roubaram” a bola e subverteram a narrativa. É também
por este futebol que parte do país suspira, ansioso para tê-lo de volta. O
futebol da ginga e do encantamento que também nos fez quem somos – mas sem
saber hoje se ainda somos. Para Mario Filho, Pelé completou a obra da Princesa
Isabel, (que assinou a abolição da escravatura). Mas a cada dia a realidade
insiste em reeditar a certeza de que a abolição no Brasil jamais foi
completada.
É
o que acontece quando Zúñiga é chamado de “macaco” ou de “preto safado” por
torcedores brasileiros porque entrou forte em Neymar, numa partida toda ela
forte. Aqui, aparece ainda mais ignorância, sobre uma outra narrativa brutal, a
do futebol na Colômbia. Essa geração, a de James Rodríguez, Cuadrado e Zúñiga,
assinala uma travessia em curso no seu país, ainda com imensas fraturas. O
presidente recém reeleito, Juan Manuel Santos, que estava no Castelão para
assistir ao jogo, ganhou apertado com a bandeira de continuar negociando com as
Farcs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). A geração anterior de futebolistas
entrava em campo sob os gritos das torcidas, que os chamavam de
“narcotraficantes”.
James,
Cuadrado e mesmo Zúñiga encarnam uma possibilidade, um novo, na simbologia em
construção de uma Colômbia que tenta fazer do futuro um presente. Quando
ignorantes pedem a morte de Zúñiga – ou “a ele o mesmo destino de Escobar” –
estão incitando um crime. Há 20 anos Andrés Escobar foi assassinado em Medellín
dias depois de ter feito um gol contra na Copa do Mundo nos Estados Unidos.
Vomitar a ignorância, também de um processo histórico, clamando pela morte de
Zúñiga nas redes sociais – esta sim, uma maldade explícita – é uma covardia
monumental.
Talvez
não saibam o que fazem, mas deveriam saber. Está na hora de a “pátria de
chuteiras” entender mais de futebol.
Eliane
Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e
do romance Uma Duas.