Sábado, 17 de janeiro de 2015
Do Correio da Cidadania
http://www.correiocidadania.com.br/
Escrito por Atilio A. Boron*
O atentado terrorista
perpetrado na redação da revista Charie Hebdo deve ser condenado sem
atenuantes. É um ato brutal, criminoso, que não tem justificativa alguma. É a
expressão contemporânea de um fanatismo religioso que – desde tempos imemoriais
e em quase todas as religiões conhecidas – recheou a humanidade de mortes e
sofrimentos indizíveis.
A barbárie perpetrada
em Paris causou o repúdio universal. Mas, parafraseando um enorme intelectual
judeu do século 17, Baruch Spinoza, diante de tragédias como esta não basta chorar,
é preciso compreender. Como dar conta do ocorrido?
A resposta não pode
ser simples porque são múltiplos os fatores que se acumularam para produzir um
massacre tão infame. Descartemos de antemão a hipótese de que foi obra de um
comando de fanáticos que, em um inexplicável rasgo de loucura religiosa,
decidiu aplicar uma lição exemplar a um semanário que se permitia criticar
certas manifestações do Islã e também de outras confissões religiosas.
Que são fanáticos,
não restam dúvidas. Crentes ultraortodoxos abundam em muitas partes,
principalmente nos Estados Unidos e Israel. Mas, como os de Paris chegaram ao
extremo de cometer um ato tão execrável e covarde como o que comentamos?
Impõe-se diferenciar
os elementos que atuaram como precipitantes ou desencadeadores – por exemplo,
as caricaturas publicadas pela Charlie Hebdo, blasfêmias para a fé islâmica –
das causas estruturais ou de larga duração, que se encontram na base de uma
conduta aberrante. Em outras palavras, é preciso ir mais além do acontecimento,
por mais doloroso que seja, e averiguar seus determinantes mais profundos.
A partir dessa
premissa metodológica há um fator que merece especial consideração. Nossa
hipótese é que o ocorrido seja um lúgubre sintoma do que foi a política dos
Estados Unidos, e seus aliados, no Oriente Médio, desde o final da Segunda
Guerra Mundial. É o resultado paradoxal – mas previsível, para quem é atento ao
movimento dialético da história – do apoio que a Casa Branca brindou ao
radicalismo islâmico, desde o momento em que, produzida a invasão soviética no
Afeganistão em dezembro 1979, a CIA determinou que a melhor maneira de
repeli-la era combinar a guerra de guerrilhas do mujaidines com a
estigmatização da União Soviética por seu ateísmo, convertendo-a em uma
sacrílega excrescência que deveria ser eliminada da face da terra.
Em termos concretos,
isso se traduziu em um apoio militar, político e econômico do fundamentalismo
islamista do talibã, que, entre outras coisas, via a incorporação das meninas
às escolas afegãs, promovida pelo governo pró-soviético de Cabul como um
intolerável pecado. A Al-Qaeda e Osama bin Laden são filhos dessa política. Nos
azarados anos Reagan, Thatcher e João Paulo II, a CIA era dirigida por William
Casey, um católico ultramontano, cavaleiro da Ordem de Malta, cujo zelo
religioso e seu visceral anticomunismo lhes fizeram acreditar que, apesar das
armas, o fomento à religiosidade popular no Afeganistão seria o que acabaria
com o sacrílego “império do mal”, que a partir de Moscou estendia seus tentáculos
sobre a Ásia Central. E a política seguida por Washington foi essa: potenciar o
fervor islamista, sem medir suas previsíveis consequências a médio prazo.
Horrorizado pela
monstruosidade do gênio que escapou da lâmpada e produziu os confusos atentados
de 11 de setembro (confusos porque as dúvidas sobre a autoria do atentado são
muito maiores que as certezas) Washington proclamou uma nova doutrina de
segurança nacional: a “guerra infinita” ou “guerra contra o terrorismo”, que
converteu três quartos da humanidade em uma tenebrosa conspiração de
terroristas (ou cúmplices deles) enlouquecidos por seu afã de destruir os
Estados Unidos e o “modo americano de vida”, e estimulou o surgimento de uma
corrente mundial de “islamofobia”.
Tão vaga e frouxa foi
a definição oficial do terrorismo que na prática este e o Islã passaram a ser
sinônimos, e a túnica cabe a qualquer um que seja crítico do imperialismo
norte-americano. Para acalmar a opinião pública, aterrorizada ante os
atentados, os assessores da Casa Branca recorreram ao velho método de buscar um
bode expiatório, alguém para culpar, como Lee Oswald, inverossímil assassino de
John F. Kennedy. George W. Bush o encontrou na figura de um antigo aliado,
Saddam Hussein, que havia sido incumbido da chefia do Estado iraquiano para
guerrear contra o Irã, após a vitória da Revolução Islâmica em 1979, privando a
Casa Branca de um de seus mais valiosos peões regionais.
Hussein, como Kadafi
anos depois, pensou que tendo prestado seus serviços ao império teria mãos
livres para atuar à vontade em seu entorno geográfico mais próximo.
Equivocou-se ao acreditar que Washington lhe recompensaria tolerando a anexação
do Kuwait ao Iraque, ignorando que tal coisa era inaceitável em função dos
projetos estadunidenses na região. O castigo foi brutal: a primeira guerra do
golfo (agosto de 1990 a fevereiro de 1991), um bloqueio de mais dez anos que
aniquilou mais de um milhão de pessoas (a maioria crianças) e um país
destroçado.
Contando com a
cumplicidade da dirigência política e a imprensa “livre, objetiva e
independente”, dentro e fora dos EUA, a Casa Branca montou uma farsa ridícula e
inacreditável pela qual acusava Hussein de possuir armas de destruição em
massa, e de ter forjado uma aliança com seu arqui-inimigo, Osama bin Laden, para
atacar os Estados Unidos. Nem tinha tais armas, como era mais do que sabido; e
nem poderia se aliar com um fanático sunita como o chefe da Al-Qaeda, sendo ele
um eclético em questões religiosas e chefe de um Estado laico.
Inabalado diante de
tais realidades, em março de 2003, George W. Bush deu início à campanha militar
para castigar Hussein: invadiu o país, destruiu seus fabulosos tesouros
culturais e o pouco que restava em pé depois de anos de bloqueio, depôs as
autoridades, montou um simulacro de julgamento, no qual Hussein foi sentenciado
à pena capital e morreu na forca. Mas a ocupação norte-americana, que durava
oito anos, não conseguiu estabilizar econômica e politicamente o país, acossada
pela tenaz resistência dos patriotas locais. Quando as tropas dos Estados
Unidos se retiraram, comprovou-se a humilhante derrota: o governo ficou nas
mãos dos xiitas, aliados do inimigo público número 1 de Washington na região, o
Irã, e irreconciliavelmente enfrentados com o outro ramo principal do Islã, os
sunitas.
Aos efeitos de
dissimular o fracasso da guerra e debilitar uma Bagdá, se não inimiga, pelo
menos inamistosa – e, de passagem, controlar o vespeiro iraquiano – a Casa
Branca não teve ideia melhor do que replicar a política seguida no Afeganistão
nos anos 80: fomentar o fundamentalismo sunita e atiçar a fogueira das
clivagens religiosas e guerras sectárias, dentro do turbulento mundo do Islã.
Para isso, contou com a ativa colaboração das reacionárias monarquias do Golfo,
e muito especialmente da troglodita teocracia da Arábia Saudita, inimiga total
dos xiitas e, portanto, do Irã, Síria e dos governantes xiitas do Iraque.
Está claro que o
objetivo global da política estadunidense e, por extensão, de seus clientes
europeus, não se limita tão somente ao Iraque ou Síria. É de maior abrangência,
pois procura concretizar o redesenho do mapa do Oriente Médio, mediante o
desmembramento de países artificialmente criados pelas potências triunfantes
das duas guerras mundiais. A balcanização da região deixaria um arquipélago de
seitas, milícias, tribos e clãs que, por sua desunião e rivalidades mútuas não
poderiam oferecer resistência alguma ao principal desígnio “humanitário” do
Ocidente: apoderar-se das riquezas petrolíferas da região.
O caso da Líbia,
depois da destruição do regime de Kadafi, prova com eloquência e antecipou a
fragmentação territorial em curso na Síria e no Iraque, para nomear os casos
mais importantes. Esse é o verdadeiro, quase único, objetivo: desmembrar os
países e ficar com o petróleo do Oriente Médio. Promoção da democracia, dos
direitos humanos, da liberdade e da tolerância? Esses são contos pra crianças,
ou para consumo de espíritos neocolonizados e da imprensa marionete do império,
para dissimular o inconfessável: o assalto petrolífero.
O resto é história
conhecida: recrutados, armados e apoiados diplomática e financeiramente pelos
EUA e seus aliados, até outro dia os fundamentalistas sunitas exaltados como
“combatentes da liberdade”, utilizados como forças mercenárias para
desestabilizar a Síria, fizeram o que em seu tempo Maquiavel profetizou que
fariam todos os mercenários: declarar independência de seus mandantes, como
antes o fizeram a Al Qaeda e bin Laden, e dar vida a um projeto próprio: o
Estado Islâmico.
Levados a Síria para
montar, de fora, uma infame “guerra civil” forjada por Washington para produzir
a esperada “mudança de regime” neste país, os fanáticos acabaram ocupando parte
do território sírio, se apropriaram de um setor do Iraque, puseram em
funcionamento os campos de petróleo desta zona e em convivência com as
multinacionais do setor e dos bancos ocidentais se dedicaram a vender o
petróleo roubado a preço vil e transformar-se na guerrilha mais endinheirada do
planeta, com receitas estimadas em 2 bilhões de dólares anuais para financiar
seus crimes em qualquer país do mundo.
Para dar mostras de
seu fervor religioso, as milícias jihadistas degolam, decapitam e assassinam
infiéis a torto e a direito, não importa se mulçumanos de outra seita,
cristãos, judeus ou agnósticos, árabes ou não, tudo em aberta profanação dos
valores do Islamismo. Após ter avivado as chamas do sectarismo religioso, era
questão de tempo que a violência desatada por essa estúpida e criminosa
política do Ocidente tocasse as portas da Europa ou dos Estados Unidos. Agora
foi em Paris, mas antes Madrid e Londres já haviam colhido das mãos dos
ardentes islamistas o que seus próprios governantes plantaram
inescrupulosamente.
A partir disso, se
desprende com clareza qual a gênese oculta na tragédia do Charlie Hebdo. Quem ateou
fogo no radicalismo sectário não poderia agora surpreender-se e muito menos
proclamar sua falta de responsabilidade pelo ocorrido, como se o assassinato
dos jornalistas parisienses não tivesse relação alguma com suas políticas. Seus
antigos alunos responderam com as armas e argumentos que lhes foram
inescrupulosamente cedidos, desde os anos de Reagan até hoje. Mais tarde, os
horrores perpetrados durante a ocupação norte-americana no Iraque os
endureceram e inflamaram seu zelo religioso.
O mesmo ocorreu com
as diversas formas de “terrorismo de Estado” que as democracias capitalistas
praticaram, ou perdoaram, no mundo árabe: as torturas, perseguições e
humilhações cometidas em Abu Ghraib, Guantánamo e as prisões secretas da CIA;
as matanças consumadas na Líbia e no Egito; o assassinato indiscriminado que os
drones estadunidenses cometem diariamente no Paquistão e Afeganistão, onde só
duas de cada cem vítimas alcançadas por seus mísseis são terroristas; o
“exemplar” linchamento de Kadafi (cuja notícia provocou a repugnante gargalhada
de Hillary Clinton); o interminável genocídio a que são submetidos os
palestinos por Israel, com a anuência e a proteção dos Estados Unidos e os
governos europeus, crimes estes que lesam a humanidade e que, mesmo assim, não
comovem a suposta consciência democrática e humanista do Ocidente. Repetimos:
nada, absolutamente nada, justifica o crime cometido contra o semanário
parisiense.
No entanto, como
recomendava Spinoza, há que compreender as causas que fizeram com que os
jihadistas decidissem pagar o Ocidente com a mesma sangrenta moeda. Provoca-nos
náuseas ter que narrar tanta imoralidade e hipocrisia da parte dos porta-vozes
de governos supostamente democráticos que não são outra coisa que sórdidas
plutocracias. Houve quem, nos Estados Unidos e Europa, condenasse o ocorrido
com os colegas do Charlie Hebdo por ser, ademais, um atentado à liberdade de
expressão. Na verdade, um massacre como este é de mais alto grau.
Mas carecem de
autoridade moral quem condena o ocorrido em Paris e nada diz acerca da absoluta
falta de liberdade de expressão na Arábia Saudita, onde a imprensa, o rádio, a
televisão, a internet e qualquer meio de comunicação estão submetidos a uma
duríssima censura. Hipocrisia descarada também de quem agora se descabela, mas
não fez nada, absolutamente nada, para deter o genocídio perpetrado por Israel
até poucos meses em Gaza. Claro, Israel é um de nós, diriam entre si; além
disso, dois mil palestinos, várias centenas de crianças, não valem o mesmo que
a vida de doze franceses. A face oculta da hipocrisia é o racismo mais
desenfreado.
*Atílio Boron é
sociólogo argentino
Traduzido pelo
Correio da Cidadania.