Sexta, 23 de janeiro de 2015
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Escrito por Jorge Luiz Souto Maior — professor
livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP
Velhas e novas ameaças do neoliberalismo aos direitos trabalhistas (1)
1. Os direitos
trabalhistas sob vigilância
Muitos olhares
desconfiados de parte do setor econômico foram voltados para o Supremo Tribunal
Federal depois que algumas decisões progressistas foram tomadas no âmbito
daquela Casa a respeito do direito de greve no serviço público, notadamente no
que se refere à impossibilidade do corte de ponto e à consequente preservação
do salário durante a greve (vide Reclamações ns. 11.536; 11.847; 16.535 e
Processo Eletrônico DJe-177).
A repercussão dessas
decisões demonstra o quanto as questões trabalhistas se mantêm na centralidade
das preocupações sociais, políticas e econômicas e como ainda é forte a
resistência à afirmação de direitos trabalhistas na realidade brasileira,
sobretudo no contexto neoliberal instaurado a partir da década de 90, cujo
propósito foi, precisamente, reduzir, ou até eliminar, a proteção jurídica dos
trabalhadores.
No Brasil, que
conviveu com a escravidão em quase quatrocentos anos de uma história de 500
anos e que ainda convive com estruturas culturais escravistas, o advento dos
direitos trabalhistas foi marcado por muita resistência do ainda restrito setor
industrial. Depois de instituídos, esses direitos têm sido alvo de constantes
ataques desferidos por esse mesmo setor – que só cresceu desde então, vale
frisar – com os mais variados adjetivos e estigmas: no começo a legislação
trabalhista seria “inoportuna”. Na sequência foi chamada de “fascista”,
“paternalista”, “intervencionista”, “retrógrada”... Presentemente, vive sob o
fogo das retóricas da “cubanização” e do “bolivarianismo”.
Cumpre compreender
que esse modo de refutar a posição do Estado e de suas instituições frente às
questões trabalhistas põe em grave risco o projeto constitucional, que está
baseado na essência do valor social do trabalho e dos direitos sociais. Quando
a retórica do “paternalismo” ganha força os direitos sociais tendem a perder
eficácia, não só do ponto de vista da construção teórica, mas, sobretudo, no
aspecto da sua concretização, porque a efetividade de muitos desses direitos
depende da implementação de políticas públicas que intervenham diretamente nas
relações socioeconômicas, sendo que no que se refere especificamente aos
direitos trabalhistas é inegável a necessidade de um Estado que não apenas
proclame esses direitos, mas que também garanta a sua aplicabilidade com
serviços de fiscalização, impondo limites aos interesses meramente econômicos,
notadamente do grande capital.
Quando esse projeto
constitucional, que se traduz pela ideia de uma democracia pautada pelo Direito
Social, é apelidado de “paternalista” – seja lá o que queira dizer com isso,
afinal os direitos liberais clássicos, propriedade e contrato, não existem sem
a força coercitiva do Estado tanto para garantir a eficácia dos tratos
negociais quanto para impedir a rebeldia dos excluídos do “sagrado” direito de
propriedade, ou seja, sem um “paternalismo” em favor da classe dominante – corre-se
o risco dos direitos trabalhistas virarem fumaça. Claro que não há nisso muita
novidade, pois, como já advertia Marx, mais cedo ou mais tarde as coisas se
revelam e tudo que era sólido se desmancha no ar...
É, por isso, bastante
oportuno verificar o quanto esses ataques ideológicos, que já se expressaram,
no início da era neoliberal, em fórmulas como “modernidade” e “globalização”,
visam mascarar a realidade da sociedade de classes, trazendo consigo, no âmbito
específico das relações de trabalho, para essa mesma finalidade, noções como as
de “parceiros sociais” e de “colaboradores”, e que hoje, em época nem tão
distinta assim, se valem de outras fórmulas como a do “bolivarianismo”, tudo
para minar a eficácia dos direitos trabalhistas, sendo que, presentemente, o
risco é ainda maior na medida em que já não se fala mais eufemisticamente em
flexibilização, e sim de retirada, pura e simples, de direitos.
Claro que nada disso
se manifesta de forma clara e mesmo a existência de um projeto neste sentido
será negada por todas as formas.
Cumpre analisar, com
cuidado metodológico, portanto, o que vem ocorrendo nas relações de trabalho
desde a década de 90, pois permitirá perceber a continuidade de um projeto que
visa minar a força dos direitos sociais e trabalhistas, para a satisfação de
interesses estritamente econômicos, sem apoio em qualquer projeto de sociedade,
ou seja, apenas para favorecimento do capital que atua em escala mundial.
2. Ataques aos
direitos trabalhistas na década de 90
Na década de 90, os
direitos trabalhistas foram alvo de diversos ataques, alguns vindos diretamente
do Executivo.
As reformas
legislativas encontravam, no entanto, três obstáculos: a Constituição de 1988,
que conduziu ao Capítulo dos Direitos Fundamentais as conquistas trabalhistas,
inscritas no art. 7º., acompanhado da ampliação do direito de greve no art.
9º.; uma doutrina jurídica trabalhista resistente à derrocada de direitos,
inspirada nos princípios do Direito do Trabalho e na própria instrumentalidade
constitucional; e a Justiça do Trabalho, impulsionada também pela atuação de
uma combativa advocacia trabalhista e pelo ativismo do Ministério Público do
Trabalho, o qual ganhou bastante relevo após a Carta de 88.
3. A Reforma do
Judiciário – ditada pelo Banco Mundial
Corria em paralelo,
como forma de completar a obra neoliberal, um projeto de Reforma do Judiciário,
iniciado, de fato, em 1994, e que previa nada mais, nada menos, que o fim da
Justiça do Trabalho.
A Reforma do
Judiciário se insere no contexto de um projeto internacional, vez que o
neoliberalismo é uma forma global de impulsionar o capitalismo. O propósito da
Reforma era o de impedir que o Direito, os juristas e os juízes constituíssem
empecilhos à imposição da lógica de mercado.
Essa, ademais, não é
mera interpretação individual da história. Está consignada, com todas as
letras, no Documento Técnico n. 319, do Banco Mundial: “O Setor Judiciário na
América Latina e no Caribe - Elementos para Reforma”, elaborado por Maria
Dakolias, denominada “especialista no Setor Judiciário da Divisão do Setor
Privado e Público de Modernização” (tradução de Sandro Eduardo Sardá, publicado
em junho de 1996).
Ainda que no prefácio
do Documento, elaborado por Sri Ram Aiyer, Diretor do Departamento Técnico para
América Latina e Região do Caribe, haja a advertência de que “As interpretações
e conclusões expressadas neste documento são de inteira responsabilidade dos
autores e não devem de nenhuma forma serem atribuídas ao Banco Mundial, as suas
organizações afiliadas ou aos membros de seu quadro de Diretores Executivos ou aos países que eles
representam. O Banco Mundial não garante a exatidão dos dados incluídos nesta
publicação e não se responsabiliza de nenhuma forma pelas consequências de seu
uso”, é mais que evidente que a sua publicação representa uma forma de
influenciar as políticas internas dos diversos países, sobretudo aqueles
considerados “em desenvolvimento”, até porque o próprio prefaciador se revela
quando diz ao final: “Esperamos que o presente trabalho auxilie governos, pesquisadores,
meio jurídico e o staff do Banco Mundial no desenvolvimento de futuros
programas de reforma do judiciário”.
4. Novos ataques aos
direitos trabalhistas no início dos anos 2000
Na década seguinte, a
saga persiste com o advento da Lei n. 10.101/00, que regulou a participação nos
lucros e nos resultados, recusando a natureza salarial do montante pago a tal
título e prevendo a instituição de mediação ou de arbitragem de ofertas finais
para a solução das controvérsias decorrentes da aplicação da lei, de modo a dar
impulso ao projeto já iniciado, em 12 de janeiro de 2010, com a edição das Leis
ns. 9.957/00 (sumaríssimo) e 9.958/00 (comissões de conciliação prévia), no
sentido da integração de modos extrajudiciais de solução de conflitos às
relações de trabalho, contribuindo, assim, para o esvaziamento da participação
da Justiça do Trabalho. Na sequência, adveio a Lei n. 10.243/01, que, alterando
o art. 458, da CLT, afastou a natureza salarial de diversas parcelas recebidas
pelo trabalhador em contraprestação ao trabalho prestado.
No apagar das luzes
do governo FHC, mais precisamente no dia 05/10/01, foi enviado, pelo próprio
Executivo, ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 5.483, que alterava o
artigo 618 da CLT, visando a institucionalizar o negociado sobre o legislado. O
projeto entrou com regime de urgência e tramitou a passos largos, tendo sido
levado a plenária no dia 26/11/01 e posto em discussão nos dias 27 e 28/11/01,
até que, em 04/12/01, foi aprovado e enviado, no dia 6 de dezembro, ao Senado
Federal.
Em março de 2002, o
projeto deveria ter sido votado, mas negociações para a aprovação da CPMF
fizeram com que o regime de urgência fosse cancelado e depois novos ajustes e a
proximidade com a eleição mantiveram o projeto sem tramitação.
O ano de 2002 acabou
sendo um marco da desaceleração desse processo, o que pode ser creditado, por
certo, ao avanço da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, que deu força
para os atos de resistência à derrocada de direitos, especialmente no âmbito
acadêmico, com reflexos na Justiça do Trabalho.
Do ponto de vista
legislativo, no entanto, ainda que com menor intensidade, em 2003 mantém-se a
lógica anterior.
O Ministério do
Trabalho inaugurou, em fevereiro de 2004, um movimento de “faxina” da CLT, como
se a CLT contivesse disposições que seriam autênticos lixos. Criou-se um
Conselho responsável por colocar em discussão a legislação social, o que, por
si, permitiu que a legislação trabalhista fosse, mais uma vez, alvo de muitos
ataques. Pautou-se uma reforma sindical, que, partindo do pressuposto de que a
reforma fortaleceria os sindicatos, retomava a ideia do negociado sobre o
legislado.
No mesmo ano de 2004,
após a edição da Emenda Constitucional n. 41/03, que aumentou o tempo para a
aposentadoria, substituindo o requisito do tempo de serviço para tempo de
contribuição, o governo federal utilizou todas as suas armas para influenciar
decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade de taxação
dos inativos, o que se concretizou, em 18 de agosto de 2004, no julgamento das
ADIs 3105 e 3128, prevalecendo, por 7 a 4, o voto do Min. Cezar Peluso.
Cumpre relembrar que
a EC 41 (que trazia também a implementação imediata do teto remuneratório
criado pela EC 19/98 e a implementação da contribuição previdenciária dos
servidores públicos inativos) estava inserida no contexto de uma Reforma do
Estado iniciada em 1998, com a EC n. 19/1998, seguida da EC 20/1998 (esta com
foco na Previdência). A Reforma do Estado buscava atrair para os entes
administrativos a lógica de mercado. A EC 19/98 encampou expressamente o
princípio da eficiência no caput do art. 37 e admitiu a possibilidade de
servidores estáveis perderem o cargo por insuficiência de desempenho e por
excesso de gastos da Administração Pública, consolidando a ideia de
subsidiariedade do Estado, que foi iniciada em 1995 com a criação do MARE –
Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Na ocasião, o então
Ministro Bresser Pereira criou uma cartilha neoliberal de enxugamento da
Administração Pública, da qual adveio a intensa – e inconstitucional –
utilização da terceirização no serviço público.
Ainda na linha do
resgate histórico da EC 41, vale lembrar que foi nesse período que se deu
impulso pesado para as terceirizações, principalmente com a criação do
Ministério da Administração e da Reforma do Aparelho do Estado, embora as Leis
8.031/90 e 9.491/97 já tivessem se referido a respeito. A pressão pela
contenção dos gastos com pessoal imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal
(LC 101/2000) também estimulou a terceirização, pois ainda que equiparasse
terceirização de mão de obra a gastos com pessoal, a terceirização por meio da
contratação de serviços sempre foi deixada de fora do limite orçamentário pelos
Tribunais de Contas.
Voltando aos anos
2000, em 2005, adveio um dos maiores baques dos direitos trabalhistas, a Lei n.
11.101, da recuperação judicial, que retirou do crédito trabalhista (superior a
150 salários mínimos) o caráter privilegiado com relação a outros créditos,
buscou eliminar a sucessão trabalhista e tem servido até hoje como forma de
institucionalização do “calote” trabalhista.
Em março de 2007,
chegou a ser aprovado no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLC
n. 7.272/05), que criou a denominada “Super Receita”. No bojo dessa lei se
inseriu, pela Emenda aditiva (n. 3), de autoria do Senador Ney Suassuna,
apelidada de Emenda 3, a retirada do poder de fiscalização dos fiscais do
trabalho.
Jorge Luiz Souto
Maior é professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito
da USP.
A publicação deste
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