Sábado,
20 de junho de 2015
Escrito por Nildo Domingos Ouriques*
A classe dominante brasileira produziu um consenso
perigoso para o país: segundo afirmam os principais jornais, TVs, rádios,
deputados e senadores (dos principais partidos), professores de economia e
governadores, o país vive uma grave crise fiscal. A produção ideológica deste
consenso se recusa a ver a causa fundamental de todos nossos males atuais: a
imensa crise financeira do Estado, produto do mega-endividamento público
(interno e externo) organizado desde 1994, quando entrou em vigor o Plano Real.
Em junho de 1994, quando o ex-presidente Itamar Franco
anunciou o Plano Real, a dívida interna não superava os 64 bilhões de reais.
Fernando Henrique Cardoso venceu as eleições naquele ano e, ao término de seu
segundo mandato, a dívida alcançou 720 bilhões de reais. A multiplicação da
dívida não tem segredo: os economistas decidiram controlar a inflação com a
brusca elevação da taxa de juros em patamares superiores aos 50%!
Nas duas últimas décadas, o Brasil foi quase sempre o
campeão mundial de juros, alimentando inédita república rentista, onde todas as
frações de capitais (multinacionais, banqueiros, latifundiários, comerciantes e
fundos de pensão) alimentam-se à custa da dívida pública. O governo Lula
(2003-2010) dobrou a aposta, razão pela qual a dívida chegou a 1,5 trilhão de
reais. O governo petista de Dilma Rousseff não amoleceu na generosidade ao
rentismo: a dívida alcançou a estratosférica cifra de 3 trilhões de reais.
Qual a consequência mais importante do fenômeno? O governo
destina a metade do orçamento público, ou seja, quase a metade de tudo que
arrecada em impostos para o pagamento dos juros da dívida que, não obstante,
segue crescendo em ritmo vertiginoso. Em 2014, por exemplo, o governo destinou
45,11% de toda a arrecadação fiscal para o pagamento de juros e amortização
parcial da dívida. É como se o país funcionasse no ritmo de uma economia de
guerra, tal como Nicarágua nos anos 1980. No entanto, a dívida segue crescendo
todos os meses, alimentando o rentismo dos detentores dos títulos da dívida
pública.
Os números deixam claro que não sofremos uma crise fiscal,
ou seja, originada pelo suposto de que o “governo arrecada muito e gasta pior”.
De fato, existe superávit fiscal se excetuamos da conta o gasto financeiro do
governo com os juros da dívida. A constituição de 1988 em vigor prevê a
auditoria da dívida, mas a maioria parlamentar composta pelos dois principais
partidos do país (o governista PT e o oposicionista PSDB) impede qualquer
movimento nesta direção.
Assim, os partidos se digladiam em questões menores
(redução da maioridade penal, sistema de cotas etc.), enquanto mantém sólida
aliança nas questões econômicas de fundo. Da mesma forma, qualquer tentativa
séria de reformar o sistema político termina em pequenas alterações no sistema
eleitoral, que, de fato, são incapazes de outorgar representatividade ao
sistema político, cada dia mais distante das maiorias populares e ainda do
eleitor médio, a caricatura moderna do cidadão.
Há que observar o essencial: o consórcio ‘petucano’ maneja
bem a situação política. A despeito das acusações mútuas sobre corrupção e
pequenas desavenças no Congresso, a verdade é que, no terreno da economia e das
questões centrais, tanto o PT quanto o PSDB estão basicamente de acordo. É o
sistema ‘petucano’, mistura de petistas e tucanos que, para quantidade
expressiva de eleitores, não possuem diferença alguma, razão pela qual o
abstencionismo, o voto nulo e o branco, alcançou 37 milhões de pessoas no
segundo turno de uma eleição considerada como “a mais disputada da democracia
brasileira”. Trata-se de cifra considerável quando levamos em conta que a
presidente reeleita levou 54 milhões e o senador Aécio Neves, candidato
derrotado, chegou aos 51 milhões.
Neste contexto, mais importante que a existência dos
programas sociais do petismo, é a continuidade desta regra de ouro da
estabilidade monetária no país: o pagamento religioso dos juros do sistema de
dívida. É verdade que as últimas medidas votadas no parlamento tiram direitos
dos trabalhadores e, também neste caso, podemos ver como petistas e tucanos
votam conjuntamente nas questões centrais. Ambos possuem o mesmo enfoque e
discurso público: o país “precisa” buscar o superávit fiscal primário para
honrar o custo financeiro da dívida interna e os custos adicionais da dívida
externa.
No debate público, este assunto medular é, sempre,
ocultado do grande público. A imprensa, exibindo inabalável compromisso com a
liberdade de imprensa, atua como se estivesse, de fato, submetida à ordem unida
que podemos ver nos desfiles militares. Em consequência, simplesmente ignoram o
fenômeno como se não existisse. Ninguém escreve ou debate o mega-endividamento
público do Estado, que garante lucros extraordinários para todas as frações de
capitais e destina aos setores mais empobrecidos da população míseros 0,47% do
PIB para o programa Bolsa Família, considerado o principal programa social do
governo. Enfim, enquanto o governo gasta quase 10% do PIB com o aumento anual
da dívida, não reserva sequer 0,5% para o programa social que tem sido
considerado o mais importante da história do país.
Portanto, não podem existir dúvidas sobre o futuro
imediato. As ilusões liberais segundo as quais a “questão social” estaria sendo
resolvida por políticas sociais chegaram ao fim. A abissal desigualdade de
renda – produto da super-exploração da força de trabalho – não pode ser
resolvida sem tocar na propriedade e no poder dos ricos. O sistema ‘petucano’ vivia
comodamente mantendo os pobres na situação de pobreza sem matá-los de fome.
As migalhas orçamentárias (0,47% do PIB) constituíam
caridade católica e passavam a agradável impressão para os ricos e poderosos de
que era possível enfrentar a violência e miséria de milhões de brasileiros com
programas que rapidamente encontraram o apoio dos dois principais partidos do
país. A crise econômica, derivada da ação corrosiva e silenciosa dos juros da
dívida e da queda dos preços dos produtos agrícolas e minerais exportados pelo
Brasil, limitou drasticamente as possibilidades do consenso e, em consequência,
o sistema ‘petucano’ concordou que o ajuste era mesmo inevitável.
Qual será o resultado da política econômica aplicada no
país? Será possível sair da crise econômica e política? É muito pouco provável.
As medidas orientadas pelo Fundo Monetário Internacional – incapazes de tirar
os pequenos países periféricos da Europa da violência da crise financeira –
tampouco funcionarão na periferia capitalista latino-americana. A quantidade de
pobres e miseráveis já voltou a crescer e não existe qualquer programa de
privatização – estradas, portos, aeroportos etc. – capaz de elevar a taxa de
investimento na economia, pois a elevação contínua da taxa de juros torna
sempre mais atrativo o investimento rentista ao produtivo.
Neste ano, há clara redução do setor industrial e o
sustento de taxas de crescimento do PIB próximas ao zero somente é possível
porque a agricultura – turbinada com agrotóxicos e destinada à exportação –
segue crescendo. Em resumo, o país sofre grave regressão industrial e fortalece
sua posição na divisão internacional do trabalho como mero exportador de
produtos agrícolas e minerais. No entanto, os acadêmicos, o jornalismo
dominante e os políticos e empresários exitosos seguirão afirmando seu otimismo
no país enquanto o Brasil aprofunda as características essenciais de qualquer
país subdesenvolvido e dependente.
Leia também:
‘Ajuste fiscal vai liquidar com os mais frágeis e concentrar a renda’
– entrevista com o economista e ex-pesquisador do IPEA Guilherme Delgado
‘É preciso acabar com a sangria da dívida pública para mudar a agenda do Brasil’ – entrevista com Maria Lucia Fattorelli, auditora
fiscal e membro da Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia.
*Nildo Ouriques é professor do
departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos
(IELA)