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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Editorial Ponte | Bolsonaro e seu exército: quem vai ‘pagar para ver’?

Terça, 23 de outubro de 2018
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Contando com o apoio entusiasmado de alguns e a covardia de outros, o projeto autoritário de Bolsonaro tem tudo para ir ainda muito longe

Protesto contra Jair Bolsonaro em 20/10, na Avenida Paulista, em São Paulo | Foto: Daniel Arroyo/Ponte
A poucos dias da eleição, parece que a ficha começa a cair. Uma parte dos veículos de imprensa que fazem jornalismo passou a questionar se Jair Bolsonaro devia ser tratado como um candidato normal, e não como um representante da extrema direita ou mesmo do fascismo. Ouvindo estudiosos do tema nos EUA e na Europa, tanto o Nexo como a Folha de S.Paulo apontaram que é praticamente um consenso considerá-lo um político de extrema direita — exatamente como a imprensa internacional costuma fazer.
Já rótulo de fascista não é tão simples de aplicar, até porque os estudiosos costumam usar definições diferentes para o termo, algumas mais estritas ao jeito de ser do regime totalitário, nacionalista e imperialista do italiano Benito Mussolini, enquanto outros preferem definições mais amplas, válidas para diferentes épocas e lugares. Ouvido pelo repórter João Paulo Charleaux, do Nexo, Lawrence Rosenthal, coordenador do Centro Berkeley de Estudos sobre a Direita, afirma que, para Bolsonaro ser chamado de fascista, ainda falta “uma milícia privada”, como os camisas pretas de Mussolini, que atacavam pessoas em nome de seu “mito”.
Se para Bolsonaro ser fascista só faltam as milícias, como declarou Rosenthal, pode ser que logo não falte mais nada. É só ver as dezenas de ataques realizados por apoiadores do candidato em várias partes do país, na maioria das vezes contra mulheres, negros e pessoas LGBT, e que já mataram ao menos três pessoas: o mestre de capoeira Moa do Katendê, em Salvador, e duas mulheres trans, a cabeleireira Laysa Fortuna, em Aracaju, e uma jovem identificada como Priscila, no centro de São Paulo.
Tudo indica que são atos de violência espontâneos, sem relação direta com o presidenciável do PSL, da mesma maneira como Adélio Bispo de Oliveira, o homem que esfaqueou Bolsonaro, parece ter agido sozinho. Não dá para negar, contudo, que a pregação carregada de ódio do candidato, que ontem mesmo falou em “varrer do mapa” os seus rivais, acabe por estimular esse tipo de violência, ainda mais num país que nunca precisou de muito incentivo para atacar suas minorias. O presidenciável disse dispensar o voto de quem pratica a violência em seu nome, mas não soou convincente. É fato que o deputado já defendeu a ação de grupos de extermínio e que seu filho Flavio já propôs legalizar as milícias do Rio.
É um histórico que não aponta para nada de bom. O contexto atual indica que, ganhando ou perdendo a eleição, Bolsonaro terá à sua disposição um exército de apoiadores disposto a usar a violência em seu nome, nas redes e nas ruas. Como um político que vê na guerra civil o caminho para dar jeito no país e que acredita no papel positivo das milícias irá se relacionar com esses grupos? Vai apoiá-los? Vai fortalecê-los? Veremos o surgimento dos camisas pretas de Bolsonaro, em versão verde e amarela?
Tomara que não. Mas suponha que sim, só por hipótese. Se Bolsonaro quisesse fortalecer a criação de milícias em apoio ao seu nome, quem iria impedi-lo?
A polícia, talvez? O problema é que já faz tempo que as forças de segurança do Brasil abandonaram qualquer pretensão de isenção política. Diversos policiais apoiam Bolsonaro, fazem campanha para ele nas ruas e nas redes sociais e, em São Paulo, já foram flagrados ignorando atos de violência praticados por bolsonaristas. O pior é que nem dá para reclamar com a Corregedoria da PM, que deveria punir os maus policiais: o corregedor também apoia Bolsonaro e ainda defende que o herói do capitão, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, não era torturador e a ditadura militar nunca existiu. A situação entre os policiais civis também não parece ser muito melhor, a julgar pela reação do delegado que viu uma suástica talhada na pele de uma jovem e enxergou “um símbolo de amor”.
E o Judiciário, quem sabe? Volta e meia, porém, algum magistrado dá sinal de que compartilha do mesmo desprezo de Bolsonaro pelos direitos humanos. É muito simbólico que, no momento de ascensão do bolsonarismo, movimento que prega uma imensa nostalgia pela era de ouro da ditadura militar e que elege o torturador Ustra como um de seus heróis, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, resolva nomear um general como assessor e negue a existência do golpe militar de 1964, preferindo chamá-lo de “movimento”. E não é que a novilíngua de Toffoli já tem outros falantes? Na semana passada, ao julgar uma ação por danos morais movida pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, assassinado pela repressão em 1971, o desembargador Salles Rossi falou em “suposta ditadura” ao se referir à ditadura militar e ainda chamou de “suposto torturador” o torturador Ustra.
Quem não reconhece as ditaduras e torturadores do passado dificilmente poderá tomar uma atitude em relação aos ditadores e torturadores que virão.
O cenário que se arma é assustador, ao misturar um líder autoritário, apoiado por embriões de milícias, com autoridades que se mostram inclinadas a passar um enorme pano para as violações que ele possa vir a cometer.
Contando com o apoio entusiasmado de uns e a covardia de outros, o projeto autoritário de Bolsonaro tem tudo para ir ainda muito longe.