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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 5 de novembro de 2024

MITOS E REALIDADE SOBRE A DEMOCRACIA ESTADUNIDENSE - ELEIÇÃO PRESIDENCIAL

Terça, 5 de novembro de 2024

Pedro Augusto Pinho*

Neste 5 de novembro de 2024, uma terça-feira, concluiu-se mais um processo de escolha para a Presidência dos Estados Unidos da América (EUA), país auto proclamado a maior democracia mundial.

Neste artigo vamos percorrer aspectos históricos que revelam que os EUA são, efetivamente, uma plutocracia, que só não é a mais antiga existente no planeta por que teve no atual Reino Unido, antiga Grã-Bretanha, Inglaterra, seu exemplo secular e, consequentemente, anterioridade.

Diferentemente do Brasil, dos países surgidos na América Espanhola, na África sul saariana, os EUA não tiveram um país europeu lá estabelecido para constituir formalmente seu governo colonial. Não houve um governador geral, ou um vice-rei, nem mesmo um encarregado dos negócios que representassem o Império.

Pode-se afirmar que a colônia de Jamestown, fundada em 14 de maio de 1607, na atual Virgínia, o primeiro assentamento britânico permanente, foi muito mais um empreendimento comercial, criado por colonos ingleses liderados pela Companhia de Londres, do que a expressão do poder imperial inglês no outro lado do Atlântico.

Os colonos viviam em estado de maior liberdade do que no Brasil Colônia, ou na Nova Espanha ou Nova Granada, ou nas possessões africanas, da própria Inglaterra, da França, Espanha, Portugal, os primeiros colonizadores.

Nancy Pricilla Naro, doutora em filosofia pela Universidade de Chicago, em seu livro “A Formação dos Estados Unidos” (Editora da UNICAMP, Campinas, 1985), assinala que “dentro de cada região, o caráter político da cidadania se manifestava conforme as especificidades locais”. E nada mais razoável para a diversidade destes pioneiros da conquista estadunidense.

É necessário entender o que se passava na Europa do século XVI até o XVIII.

A primeira grande transformação veio com a chegada às cidades estados italianas, no século XV, das invenções e produtos chineses: a bússola, a pólvora, a fabricação de papel, a impressão e a seda.

Além de Gênova, Portugal e Espanha, que já saiam contornando a costa africana, detinha capacitação para melhor absorver e utilizar o conhecimento chinês. Daí a precedência nas viagens oceânicas e descoberta das Américas.

Em 31/10/1517, Martinho Lutero abre uma cisão no cristianismo com suas 95 teses, fixadas na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, onde se constituiria a Alemanha.

Era o início de guerras religiosas que abalaram a Europa a partir deste final da Idade Média e chegam à Idade Moderna, quando a economia feudal, reduzida espacialmente, se transforma na economia industrial se espalhando pelo mundo.

Estas guerras religiosas, associadas às de conquista e às transformações das sociedades, resultaram em milhares de pessoas lançadas à miséria, à fome, às perseguições, que viram no Novo Mundo, principalmente ao norte das Américas, onde não se impusera qualquer poder europeu, o abrigo disponível.

Chegaram com seus idiomas, costumes, histórias, no que viriam constituir as 13 Colônias, eram ingleses, obviamente, mas, igualmente, irlandeses, escoceses, holandeses, suecos, belgas, suíços, e das regiões onde se formaria a Alemanha.

A geografia estadunidense contempla, no nordeste do País, os Montes Apalaches, ao norte dos quais estão os Grandes Lagos. Em 1492, cerca de oito milhões de índios habitavam o território estadunidense, na mesma época, nas ilhas Britânicas viviam três milhões de pessoas. Em toda França, o mais populoso país europeu de então, estimam-se 15 milhões de habitantes.

Mas o território dos EUA é hostil. Entre os Apalaches e as Montanhas Rochosas existe a planície que liga o gelo do norte ao calor do Golfo do México, provocando, desde sempre e ainda hoje, tornados e furacões que dão asas à imaginação cinematográfica e literária e a desastres efetivos, reais e permanentes, junto ao complexo fluvial Mississipi-Missouri-Arkansas.

Os índios da América do Norte preferiram habitar a região sul, especialmente o planalto mexicano, e onde hoje estão os Estados da Califórnia, Novo México, Texas e a Flórida.

Os poucos que ficaram ao norte, habitavam as margens dos Grandes Lagos, ou na costa atlântica junto aos rios: Potomac e Susquehanna, desembocando na Baía de Chesapeake, Hudson, desaguando na Upper New York Bay, e o rio Connecticut, como vários outros menores, correndo para o Estuário de Long Island.

Os indígenas dos EUA, como também ocorreu com os brasileiros, haviam desenvolvido culturas adequadas às condições geográficas onde construíram suas habitações, daí não terem as mesmas práticas, talvez nem os mesmos deuses, pois não tinham, diferentemente dos maias, astecas, incas, uma escrita e uma unidade governamental.

Mas se no Brasil havia um único idioma colonizador, nos EUA, pela origem das migrações, estes também eram diversificados e nem sempre compreendidos uns pelos outros.

Pelas informações que temos, nem pelos índios, nem pelos europeus e seus descendentes, até o século XVII, nada havia, exceto para enfrentamento de alguma grande tragédia da natureza ou provocada pelos próprios homens, que os levassem a unir esforços. E se todos também a entendessem da mesma maneira.

Em 1619 começam a chegar africanos no que se constituiriam os EUA. Foram vinte angolanos trazidos por corsários que fundearam no porto de Point Comfort, na Virgínia. Entre 1514 e 1866, nas Américas, chegaram perto de 13 milhões de africanos, representando o maior movimento de migração forçada do mundo.

A chegada do “Mayflower”, para muitos o início da colonização dos EUA, ocorreu em 1620, quando, conforme já sabemos, existiam até escravos africanos.

Alguns historiadores, para evitar confusão de lendas com história, preferem que esta última seja narrada a partir de 1700, quando a ideia de país soberano começa a correr entre os descendentes europeus.

O historiador Ray Raphael escreveu mais de 400 páginas (“Founding Myths: Stories that Hide our Patriotic Past”, The New Press, NY, 2nd edition, 2014) revelando que “a tradição oral e a imaginação artística preencheram as lacunas deixadas pela documentação”, sendo esta seletiva e, obviamente, incompleta.

Outros, como o historiador francês, Pierre Melandri, “História dos Estados Unidos desde 1865” (Nathan, Paris, 7ª edição, 2000), preferem começar depois da Guerra de Secessão ou Guerra Civil dos Estados Unidos da América, de 12 de abril de 1861 a 9 de abril de 1865, quando os EUA já se apresentavam como um País.

A CONSTITUIÇÃO DOS EUA

Muito se elogia a perenidade da Constituição Estadunidense que, aprovada em julho de 1788, entrou em vigor em março de 1789, e sofreu somente vinte e sete emendas. Porém vamos refletir o que significa esta lei que permanece dirigindo um país, seus habitantes e seus relacionamentos, por 235 anos de profundas mudanças sociais, econômicas e tecnológicas.

Charles Louis Mee Jr. é um intelectual estadunidense que alia a dramaturgia (comédias, romances, peças teatrais) à história (peças históricas e sobre as ruas de Nova Iorque) e produziu a melhor narrativa do cotidiano das dezenas de delegados, todos brancos, de boa reputação, homens de posses e de escravos, donos de plantações, fazendas, negócios, embarcações, advogados e banqueiros, que se reuniram na Filadélfia, estado da Pensilvânia, entre 25 de maio e 17 de setembro de 1787, para redigir a Constituição dos Estados Unidos da América.

Mee Jr. (“A História da Constituição Americana”, na tradução de Octávio A. Velho de “The Genius of the People”, de 1987, para Editora Expressão e Cultura, RJ, 1993) afirma que “ao término da Convenção, nenhum dos delegados – nem um sequer – estava inteiramente satisfeito com a constituição que haviam elaborado. Alguns recusaram-se firmemente a assiná-la e os que a assinaram fizeram-no com graus variáveis de relutância, desalento, angústia e desagrado”.

Certamente que todos os acordos, “concessões vexatórias ou detestáveis” a que se obrigaram, “não eliminaram a escravidão ou deram voto às mulheres ou ampararam indigentes”. Porém, ainda que “esperando conceder-se a si próprios vantagens no novo governo”, concordavam que estavam protegidos na democracia que ali se estabelecia. E que o futuro tratasse de aperfeiçoá-la.

Filadélfia, com 40 mil habitantes, era a maior cidade dos EUA e atraíra imigrantes do País de Gales, da Inglaterra, da Suécia, da Holanda, da França e da Alemanha. Nova Iorque tinha 33 mil habitantes, Boston 18 mil, enquanto Londres tinha 950 mil e Paris 600 mil. Mas era suficientemente civilizada para sustentar dez jornais, uma Universidade, dois teatros, um museu e 662 lampiões de rua.

Conforme Mee Jr, o número de delegados de cada estado à convenção constituinte “dependia mais da proximidade da Filadélfia e da facilidade e custo da viagem do que de qualquer outro fator. Alguns estados enviaram uns poucos delegados; a Pensilvânia elegeu oito”.

O general George Washington foi por unanimidade eleito para presidir os trabalhos e, mesmo mantendo-se calado, sua presença foi sentida, a favor de um governo central vigoroso, por todo tempo pelos delegados.

Pelas narrativas e documentos que ficaram, a impressão é que poucos, como Washington, tinham a perspectiva de um trabalho para toda nação. Na maioria, eram questiúnculas locais, desavenças minúsculas, que motivavam os congressistas. “Todos queriam dizer alguma coisa e não serem responsabilizados por isso”, a ponto de Rufus King, de Massachusetts, propor que votos individuais dos delegados não fossem registrados. Coronel George Mason, da Virgínia, escreveu ao filho manifestando seu desejo que as comunicações sobre os trabalhos da Convenção, “fossem proibidas durante seu funcionamento evitando que deturpações e enganos fossem revelados ao olhar do público”.

Os 55 convencionais estavam assim constituídos pelos 12 estados, que fizeram a Constituição dos atuais 50: dois de New Hampshire; três de Connecticut e Nova Iorque; quatro da Geórgia, Massachusetts e Carolina do Sul; cinco da Carolina do Norte, Nova Jersey, Delaware e Maryland; sete da Virgínia e oito da Pensilvânia. Dezesseis delegados não assinaram a Constituição. Dez emendas, das 27 até hoje aprovadas, o foram em 1791, apenas dois anos depois da entrada em vigor da Constituição.

Foi o retrato do individualismo exacerbado da quase totalidade dos constituintes, nomes que a história esqueceu. Restaram poucos, com interesse mais amplo, no País, na política ou na economia, para os livros escolares, como Benjamin Franklin, da Pensilvânia, o nova-iorquino Alexandre Hamilton, e os virginianos James Madison e George Washington.

O QUE ESPERAR DA ELEIÇÃO DE 2024

Se a Constituição representou o ideal individualista, a história dos EUA vem estreitando a liberdade com o totalitarismo eclesiástico, que encontrou no neopentecostalismo sua expressão contemporânea, e com o fascismo político, que vem mantendo a crescente desigualdade da população sob domínio financeiro.

Como de costume, apenas dois candidatos disputam efetivamente a presidência. Foi a inteligência da plutocracia, dominante à época da elaboração da constituição dos EUA, para evitar a perda do poder. Os candidatos sempre representam o mesmo establishment, a eventual diferença está no estilo de administrar.

Porém, com a votação para Presidente, os Estados Federados incluem consultas para mudanças em suas legislações. Mudanças que são o termômetro das campanhas das mídias, das igrejas e de setores atuantes da sociedade.

A decisão da Suprema Corte dos EUA, em 2022, que anulou o direito das mulheres ao aborto, tornou-o agora uma questão central. Dez estados — Arizona, Colorado, Flórida, Maryland, Missouri, Montana, Nebraska, Nevada, Nova Iorque e Dakota do Sul — terão medidas relacionadas ao aborto com a eleição presidencial. Curioso é que, por tratar do corpo da mulher, não é percebido como violação a um direito que diz respeito apenas à própria pessoa, nada mais individual.

Mas o mundo mudou e muito, sob qualquer aspecto que se tome. Não é possível manter a bipolaridade da guerra fria, do confronto capitalismo x comunismo, que destruiu o projeto terceiro mundista da Conferência de Bandung (1955).

A África desperta para segunda luta pela independência, desta vez não mais apoiada por única potência (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS), mas por duas grandes potências militares, Federação Russa e República Popular da China, e por diversos países que constituem o mundo islâmico, com tendências políticas e economias diferentes, como o Irã, os Emirados Árabes, a Arábia Saudita, o Kuwait, o Catar, o Líbano, a Síria, o Afeganistão, o Paquistão, entre outros, ou seja, pelo mundo multipolar.

Mesmo o isolacionismo estadunidense não consegue fugir das consequências das guerras, que o poder financeiro-industrial incita.

Duas guerras ocupam as manchetes ocidentais, mas travam-se muitas outras fora dos olhos vendados pelas donas de quase todos meios de comunicação. A guerra provocada pelos EUA e União Europeia (UE), isto é, pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contra a Federação Russa, e o genocídio que o governo do Estado de Israel pratica contra os palestinos, com apoio dos EUA e do Reino Unido.

Ambos partidos, Democrata e Republicano, neste século XXI, foram iniciadores de guerras fora do território estadunidense, embora as farsas do 11 de setembro de 2001 tivessem ocorrido em Nova Iorque (Torres Gêmeas) e Virgínia (Pentágono), mas, obtida a legislação de exceção para calar o público interno, logo foram conduzidas para o estrangeiro.

Que diferencia a eleição da democrata Kamala Harris do republicano Donald Trump? Apenas a guerra na Ucrânia, que Trump promete encerrar tão logo seja eleito e empossado, enquanto Kamala silencia.

Seria apenas esta a diferença? Talvez sim. Desde as desregulações financeiras na década de 1980, do Consenso de Washington como bíblia para o neoliberalismo ocidental, e a aceitação dos EUA como representante do poder financeiro apátrida, vocalizando pelos gestores de ativos dos paraísos fiscais, hoje perto de 100, quando não passavam de uma dezena em 1980.

Assim, não é o interesse do povo estadunidense, se alguma vez, conscientemente, o foi, o que está em votação. É o aprofundamento do poder financeiro, provocando desemprego, concentração de renda, desigualdades e cada vez maior ignorância do povo sobre seus verdadeiros algozes.

*Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.