Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Em debate, a crise do jornalismo — e as saídas

Quarta, 13 de novembro de 2024

Outras Palavras abre curso e série de entrevistas sobre tema quase ausente nas grandes mídias. Objetivo: entender por quê, na era da dominação tecnofinanceira, o jornalismo não serve mais ao capital; e formular políticas para recriá-lo

OUTRASPALAVRAS                                    
por
Antonio Martins


Artigo publicado em OUTRASPALAVRAS em 11/11/2024


Em tempos ásperos, é preciso buscar o novo. Em meio ao desencanto crescente com a democracia e a um declínio prolongado do jornalismo, esta revista decidiu apostar na formulação de alternativas para ambas as crises. Uma entrevista com o sociólogo e cineasta Leandro Sarava, às 19h desta segunda-feira (11/11), dará início a um esforço de investigação, debate público e construção de políticas. Diálogos subsequentes ouvirão, entre outros, Bruno Torturra, Luís Nassif, Marilena Chauí (a confirmar), Rosemary Segurado, Sérgio Amadeu, Rafael Evangelista e outros pensadores que têm algo a dizer sobre o tema. Numa segunda fase, as entrevistas, acrescidas de outros conteúdos, comporão dois cursos. Todo o projeto é parte do plano de trabalho de um Pontão de Cultura, executado em parceria pelo Coletivo Digital e por Outras Palavras.

Queremos examinar em profundidade a crise do modelo empresarial de jornalismo. Mas não pretendemos nos deter no diagnóstico. Vamos sondar saídas — em especial os caminhos para que a atividade jornalística seja mantida, essencialmente, com recursos originários da sociedade, transferidos pelo Estado por meio de mecanismos que asseguram independência e qualidade editorial.

O declínio do jornalismo corporativo é visível para onde quer que se olhe. Os jornais estão mais distantes que nunca do exame crítico dos grandes temas nacionais ou internacionais. Sua cobertura reduz-se, na Política, às miudezas e fofocas da vida institucional; e na Economia, a ecoar as interpretações (e, frequentemente, as ameaças) dos “operadores de mercado” — um eufemismo para rentistas. As centenas de revistas existentes no Brasil até a virada do século estão hoje reduzidas a um punhado de títulos, pouco atraentes e de influência cada vez mais reduzida. Os portais de internet degradaram-se, ao mimetizar a superficialidade temática e a estética mal-acabada das postagens em redes sociais.

Não é um fenômeno apenas brasileiro (embora aqui a queda assuma tons dramáticos). Em todo o Ocidente, grandes jornais encolhem suas redações (como fez o New York Times em sucessivas rodadas) ou deixam-se vender para grandes grupos econômicos (como o Washington Post, hoje controlado por Jeff Bezos).

Por algum tempo, a internet representou um respiro. Há cerca de vinte anos, era o território onde se acessavam publicações internacionais relevantes e um jornalismo multitemático e renovador, produzido pelos blogs. Mas esta fase está sendo sepultada pela onipresença das redes sociais; pela determinação de seu conteúdo por algoritmos que privilegiam a estridência e o conflito, em busca de visualizações e receita publicitária; e pela emergência inevitável, neste ambiente, das fake news. Caso se mantenha controlada por megacorporações, a Inteligência Artificial poderá agravar este quadro, como já começou a ocorrer.

A deterioração do jornalismo está em contraste com o desenvolvimento técnico. As novas tecnologias permitiram, ao contrário do que se dá hoje, produzir informação e comunicação de profundidade como nunca antes na história humana. A circulação das notícias e sua interpretação é instantânea. Os dados que permitiriam apurar e analisar realidades complexas são produzidos em abundância inédita. Mas há dois obstáculos gigantescos. Primeiro: o que Leandro Saraiva — nosso primeiro entrevistado — chama de “concentração absurda do poder propiciada pela tecno-financeirização” está tornando a democracia supérflua. Ela é, na verdade, indesejável, para as megacorporações que tomam as decisões fundamentais – situando-se acima dos próprios governos, na escala de poder — mas estão livres do escrutínio público. Veja-se, por exemplo, como “os mercados” “exigem” o “ajuste fiscal” antiinvestimento público no Brasil ou como, na Europa, a guerra prossegue — e pode agravar-se e se espalhar — apesar de indesejada pela maior parte das opiniões públicas.

Em ambos os casos, é notável o autonomismo dos processos; ou seja, o modo como são transformados em fatos consumados à revelia da vontade política das sociedades. É ainda mais assustador que o planeta seja inundado, todos os dias, por uma enxurrada de imagens retratando o morticínio cometido por Israel na Palestina e no Líbano; e que as sociedades e governos não encontrem, na política, meios para frear o genocídio transmitido ao vivo diante de nossos olhos.

A segunda barreira, consequência direta da primeira, é o que Leandro Saraiva chama de “fragmentação da experiência subjetiva e da própria ideia de tempo e de história”. Se para os grandes poderes a democracia é incômoda, então é perfeitamente natural que ajam para “manter as pessoas distraídas”. Ou seja: “Não é mais preciso discutir a organização do mundo; basta mobilizar para lá e para cá, em termos de ondas afetivas, as massas. Não é mais necessário o jornalismo”.

* * *

Como encarar este cenário claramente orwelliano? É preciso lembrar, antes de tudo, que as contradições continuam a pulsar. O sistema que deseja o controle absoluto é incapaz de oferecer vida aceitável à maior parte da população do planeta, ou de tomar até mesmo medidas paliativas contra a catástrofe climática. E a financeirização, fonte da hiperconcentração de riqueza e de poder, é também o que mantém, no Ocidente, a produção estagnada ou o risco constante de novos terremotos nos cassinos globais do rentismo.

A instabilidade do sistema, porém, não fará seu trabalho sozinha. É preciso formular as saídas — no caso, para a reconstrução da democracia e do jornalismo. É este debate, quase ausente no Brasil, que Outras Palavras quer provocar. Nossa principal hipótese de trabalho — a ser debatida e aprofundada nos próximos meses – é: também aqui a resposta passa pelo investimento público, pela aposta no Comum.

Se o jornalismo é essencial à democracia, mas tornou-se descartável para o capitalismo contemporâneo, então é preciso que a sociedade mobilize-se para financiá-lo. O Estado precisa garantir que parte da riqueza social seja canalizada para produzir as informações e interpretações capazes de orientar as sociedades em suas escolhas – ou seja, permitindo-lhes retomar a democracia em suas mãos.

Esta opção implica — sabemos — desafios e problemas. O primeiro é alcançar consensos. A luta para alterar o atual ecossistema de (des)informação, alienação e distração permanentes — para voltar aos conceitos de Leandro — será árdua e prolongada. Por isso mesmo, é preciso começá-la…

O segundo risco é o de cooptação. Sabe-se que os Estados têm sido máquinas políticas avessas à crítica e à dissidência. Como enfrentar esta sua resistência, se eles serão necessários à tarefa de reconstruir o jornalismo? As entrevistas e os cursos sondarão caminhos. Os internacionais, no próprio campo editorial. Embora insuficiente, a autonomia de um editor da BBC britânica é certamente maior que a de um seu colega numa publicação comercial brasileira. Ou outras relações em que, sendo o financiador, o Estado não interfere na liberdade de quem produz conhecimento, porque há mecanismos refinados de mediação. O ministro da Educação, ou o governador do Estado, não decidem quem serão os professores nas universidades públicas brasileiras, muito menos controlam os currículos e as opiniões emitidas nos cursos.

Ao menos parte das dificuldades que as forças da chamada esquerda vive hoje pode ser atribuída a um estancamento da teoria. O capitalismo transmutou-se – e com ele as formas de produzir riqueza, de distribuí-la, de exercer hegemonia política e simbólica sobre as sociedades. Em muitos casos, a resistência ao sistema continua a fazer as mesmas críticas e a defender os mesmos projetos que tinham eficácia nos séculos passados, mas tornaram-se inócuos agora. Com as novas entrevistas e cursos, Outras Palavras busca dar uma contribuição — certamente muito modesta, mas muito empenhada — para enfrentar este déficit.

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