Sexta, 1º de abril de 2016
Do Correio da Cidadania
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Escrito por Ivan de Carvalho Junqueira
“(...) que foi conduzido às dependências do DOI-CODI, onde foi
torturado nu, após tomar um banho pendurado no pau-de-arara, onde
recebeu choques elétricos, através de um magneto, em seus órgãos
genitais e por todo o corpo, (...) foi-lhe amarrado um dos terminais do
magneto num dedo de seu pé e no seu pênis, onde recebeu descargas
sucessivas, a ponto de cair no chão, (...)” (In: Brasil: nunca mais. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985, p. 35).
Segundo a Constituição Federal de 1988, artigo 5.º, XLIII: “A lei
considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a
prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o
terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo
os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Também em âmbito interno, editou-se a Lei n.º 9.455/1997, a qual “define
os crimes de tortura e dá outras providências”.
Dentro do sistema global de direitos humanos, diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo
cruel, desumano ou degradante” (Artigo V). Em reforço, asseverou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos,
de 1966: “ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou
tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo,
submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas
ou científicas” (Artigo 7.º), ratificado pelo Brasil, contudo, só em
1992. No específico, acresça-se a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
de 1984, ratificada em 1989: “Em nenhum caso poderão invocar-se
circunstâncias excepcionais, como ameaça ou estado de guerra,
instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública,
como justificação para a tortura” (Artigo 2.º, 2).
No interior do sistema regional interamericano, mencione-se a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto
de San Jose da Costa Rica), de 1969, ratificada em 1992: “Toda pessoa
tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral
(Artigo 5.º, 1), onde: “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a
penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de
liberdade deve ser tratada com o devido respeito à dignidade inerente
ao ser humano” (Artigo 5.º, 2).
Pela Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura,
adotada em 1985 e incorporada ao direito pátrio no ano de 1989: “...os
Estados-partes tomarão medidas efetivas a fim de prevenir e punir a
tortura no âmbito de sua jurisdição. Os Estados-partes assegurar-se-ão
de que todos os atos de tortura e as tentativas de praticar atos dessa
natureza sejam considerados delitos em seu direito penal, estabelecendo
penas severas para sua punição, que levem em conta sua gravidade”
(Artigo 6.º).
Há um expressivo conjunto de normativas a cuidar do assunto em tela,
prova de que a prática da tortura, repugnante e abominável sob múltiplos
aspectos, torna-se fonte de relevante preocupação entre os países, de
maneira geral.
Note-se que o reconhecimento tardio então relacionado, no particular, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (26 anos após publicado) como, também, à Convenção Americana de Direitos Humanos
(23 anos depois) não é obra do acaso ou mero desleixo. Tal morosidade
é, por evidente, consequência direta da instauração dos governos
militares no Brasil.
O termo “tortura” pode ser definido como: “qualquer ato pelo qual
dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos
intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira
pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou
terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de
intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer
motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores
ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa
no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu
consentimento ou aquiescência (...)” (Artigo 1.º, Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes).
A tortura, por sua gravidade, constitui crime de lesa-humanidade.
Ofende não apenas a localidade na qual incide, mas toda a comunidade
estrangeira. É brutal forma de violência – atentatória aos direitos
humanos –, utilizada em larga escala no Brasil e por toda a América
Latina, de modo institucionalizado, durante os golpes militares.
Ainda hoje, lamentavelmente, em que pese o manto democrático, desde
1988, encontra guarida por entre os entes e a obscuridade do sistema de
justiça, em especial, criminal. Do cometimento de um delito pelo acusado
e no primeiro contato com a delegacia de polícia, passando pelo crivo
do Ministério Público e do Poder Judiciário, até a execução da sentença
em uma penitenciária qualquer para animalizados e indignos.
A tortura, instrumento inaceitável, é delito atemporal e
imprescritível, cujos autores devem ser, sem margem à dúvida,
investigados, processados e punidos, comprovada a culpabilidade. Seja
cometida no presente ou cinco décadas atrás.
Lei de Anistia
A Lei n.º 6.683/1979, sob o governo João Figueiredo, denominada Lei de Anistia, considerou, em pé de igualdade, torturados e torturadores, nivelando-os. Anistia (do grego, amnestia)
significa esquecimento. A incongruência é verificada logo de início, no
artigo 1.º: “É concedida anistia a todos quantos, no período
compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,
cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos
que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da
Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder
público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos
Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com
fundamento em Atos Institucionais e Complementares”. No parágrafo 1.º:
“Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer
natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação
política”.
Referida legislação viola – frontalmente – a Constituição Federal de
1988 e, por tabela, várias normativas internacionais de proteção aos
direitos humanos, algumas delas acima referidas.
Por oportuno, informe-se do Projeto-Lei n.º 573/2011, da autoria da
deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP), intuindo dar interpretação
autêntica ao disposto no art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683, de 28 de agosto
de 1979, reparando-se a incompatibilidade supra.
Também no Congresso Nacional, tramita no Senado Federal o Projeto-Lei
n.º 237/2013, de iniciativa do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), o
qual pede a revisão da Lei de Anistia, “...de maneira a promover sua
adequação aos princípios fundamentais que inspiram a Constituição de
1988 e o sistema de tratados internacionais sobre direitos humanos dos
quais o Brasil é signatário”.
No ano de 2010, sentenciou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs
Brasil: “Por se tratar de violações graves de direitos humanos, e
considerando a natureza dos fatos e o caráter continuado ou permanente
do desaparecimento forçado, o Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia
em benefício dos autores, bem como nenhuma outra disposição análoga,
prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se dessa obrigação (...)” (XI – Reparações, § 256, b),
enfatizando-se que: “As disposições da Lei de Anistia brasileira, que
impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos,
são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos
jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a
investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e
punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante
impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos
humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil” (XII
Pontos Resolutivos, § 325, 3). Ademais disso: “O Estado deve conduzir
eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação dos fatos do
presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes
responsabilidades penais e aplicar as sanções e consequências que a lei
preveja (...)” (XII Pontos Resolutivos, § 325, 9).
Na América Latina, países como Argentina, Chile e Uruguai, por
exemplo, estão anos à frente nesta matéria, de ressaltar-se, inclusive, a
revogação de leis e decretos, outrora editados, inibidores das
apurações, dada a incompatibilidade diante das normativas atuais em sede
de direitos humanos. No território chileno, v.g., o
Decreto-lei n.º 2.191/1978 – “lei de amnistia” – acabou invalidado, por
ferir, como a lei brasileira, o ordenamento internacional, ao prever a
anistia aos crimes cometidos, naquele país, de 1973 a 1978, sob a
ditadura de Augusto Pinochet, das mais sanguinárias, cujas vítimas,
entre torturados, mortos e desaparecidos, chegam a 40 mil.
*Ivan de Carvalho Junqueira é especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública.
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