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(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Primavera Árabe e risco


Segunda, 22 de agosto de 2011 
Por Ivan de Carvalho
    A Primavera Árabe começou de repente, na Tunísia, cujo regime autoritário foi o primeiro a cair. E rapidamente. Em seguida começaram as grandes manifestações no Egito e logo ficou claro que não se restringiriam aos dois países já citados. A onda de protestos e rebeliões que espalhava-se por vários países ganhou então o apelido de Primavera Árabe.

 A inspiração para o apelido veio de longe, de 1968, quando houve o que ficou conhecido como a Primavera de Praga. Na Tchecoeslováquia, país que não existe mais, por ter sido, bem depois, desmembrado, o regime comunista, então liderado no país por Alexander Dubceck, resolveu dar uma guinada espetacular em direção à liberdade e à democracia, a um novo regime que foi qualificado por Dubceck como “socialismo de rosto humano”. Uma maneira, ofensa não pensada, de dizer que o outro socialismo não tinha rosto humano.

    A União Soviética mandou seus tanques, que esmagaram os estudantes que protestavam nas ruas e o “socialismo de rosto humano” de Dubceck, que foi preso, torturado e depois usado por um pouco de tempo para a montagem de uma farsa cínica pelos soviéticos, na tentativa de disfarçar a brutalidade indisfarçável.
  
  A linha predominante que guiava os manifestantes e os revoltosos na Tchecoeslováquia de 1968 era a mesma que predominava no movimento que se espalhava por vários países árabes – liberdade e democracia. Daí a justeza do apelido de Primavera Árabe.

    Quando o movimento libertário começou a espalhar-se, passando da Tunísia ao Egito, a Bahrain, assinalei neste espaço que havia motivos para comemorar, por ser um esforço dos árabes no sentido de se livrarem de suas ditaduras, várias delas ferozes, mas havia um grande risco envolvido – o desvirtuamento do movimento pelo fundamentalismo islâmico, com o eventual estabelecimento de regimes teocráticos, no modelo iraniano, por exemplo.

   Isso estaria dentro das possibilidades porque, entre os manifestantes, que faziam um movimento espontâneo e desorganizado, a única força organizada eram as facções radicais muçulmanas. Isso estava muito claro no Egito e o Egito é um país chave em toda a conjuntura regional, o maior e mais poderoso país árabe e com ampla fronteira com Israel.

   A Primavera Árabe está dando prova de força até surpreendente. Tirou Hosni Mubarack de uma presidência de três décadas no Egito, chegou à Líbia em meio a avaliações de que teria chances mínimas de enfrentar o regime do coronel Muammar Gaddafi, mas está aparentemente muito perto de vencê-lo, com providencial ajuda da Otan, autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU e extrapolando um pouco um mandato que recebeu desse órgão.

    O feito principal, no entanto, parece ser a erupção da Primavera Árabe na fechadíssima Síria, onde um regime ditatorial, que tem apoio da China e da Rússia, está muito próximo do totalitarismo e reprime de modo crescente e sempre com brutalidade genocida a população, mas não conseguiu até agora sufocar o movimento. A própria intensidade da repressão evidencia a resistência e ampliação do movimento contrário ao regime. Movimento que não conta com ajuda externa, salvo na área diplomática.

   Continua, no entanto, valendo aquela avaliação sobre o risco que a Primavera Árabe envolve. Uma radicalização puxada pelo fundamentalismo islâmico e mesmo por outros fatores e que faria de Israel seu alvo. O tratado de paz entre Egito e Israel neste momento já parece ameaçado e, se o Egito o desfizer, logo haverá cobranças para que a Jordânia também rompa o seu próprio tratado de paz com Israel. Assim, Israel voltaria a ficar totalmente sitiado por Estados adversos, salvo pelo mar.

   E a conjuntura estaria então a um passo da guerra em um lugar que é, notoriamente, o estopim do mundo.
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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia desta segunda.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.