Quarta, 25 de junho de 2014
Do blogdaboitempo.com.br
Por Mauro Iasi
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Manifestantes organizam uma partida de futebol de rua em ato pela Tarifa Zero convocado pelo MPL em São Paulo no dia 19 de junho de 2014. |
O
capital se apropria de tudo, não seria diferente no caso do futebol. O
destino daquilo que é mercantilizado é ver seu ser transformado em
veículo de valor de troca, forma de expressão do valor, que passa a ser
primordial, relativizando seu valor de uso original.
Como
coisa de valor, sua vida passa a fluir no sentido da realização do
valor e no caso da produção capitalista de mercadorias, de mais valor.
Quando era um valor de uso, a realização se dava na fruição, no consumo
daquilo que se buscava para realizar o desejo do corpo ou do espírito.
No ato de se apropriar das propriedades da coisa para saciar nossa fome
ou sede, ao ouvir a melodia que nos acalma a alma ou desperta o corpo.
Como mercadoria, a realização se dá no ato da troca, na transformação da
coisa em equivalente geral monetário, enquanto o valor de uso subsumido
fica ali, relativizado, quando não esquecido.
É
por isso que a propaganda seduz para o ato da compra, sem que
necessariamente o consumo corresponda ao desejo ou a necessidade. Um
comercial de refrigerante transpira gotinhas de coisas geladas,
paisagens refrescantes, gente feliz em dias quentes, mas a coisa em si,
pode ser um xarope adocicado que vai de dar mais sede e te levar a
consumir outra vez o produto… que vai te dar mais sede ainda.
No
caso particular do futebol, a mercantilização ocorre não apenas pela
venda do espetáculo esportivo em si mesmo, mas em várias dimensões: no
“mercado de jogadores”, na venda dos direitos de imagem, como veículo de
propaganda, como empreendimento milionário de empreiteiras, bancos e
tantos outros. A velha arte de esfolar várias vezes o mesmo boi.
O
valor de uso originário fica soterrado sob montanhas de formas
mercantis que sobre ele buscam seu quinhão da valorização, muitas vezes
fictícia e parasitária. É por isso que muitas vezes depois de realizada a
farra do valor de troca, nossos estômagos e espíritos futebolísticos
permanecem famintos e sedentos.
No
entanto, age sobre a forma mercadoria a maldição do valor de uso. Isto
é, mesmo relativizado e subsumido, o valor de uso é incontornável. Não é
possível que haja uma mercadoria sem valor de uso – ainda que sob a luz
de uma certa racionalidade esquecida ele seja uma “utilidade inútil”.
Ninguém vai à padaria comprar cigarro almejando um câncer de traquéia.
Mas, só quem já fumou sabe o valor de uso de uma boa baforada.
O
valor de uso subsumido (mas incontornável) resiste ali onde não devia,
mesmo que na subversiva sensação de ausência: na sede e fome não
saciadas, na pobreza persistente no país que dizia tê-la abolida no
marketing político, na desigualdade da sociedade da igualdade, na falta
do sinal na sociedade do acesso total à comunicação 4G… em noventa
minutos de… nada.
O
futebol mercadoria e seu evento maior – a Copa – é montado para a
realização do lucro das grandes corporações. Esta Copa já aconteceu e a
FIFA S/A, a maior das corporações, já abocanhou seus lucros, assim como
as empreiteiras, os bancos, as empresas publicitárias, os empresários
que escalam jogadores no lugar de técnicos, já contabilizam seus lucros.
Se vai ter jogo ou não é um detalhe.
Mas
esta montanha de valor de troca tem que encontrar um valor de uso sob o
qual se agarrar. Assim como a abstração do espírito precisa do corpo, o
exu precisa do cavalo. Onze pessoas de cada lado e um apito do árbitro,
desperta o esporte e os garotos propaganda se esquecem, ou deveriam
esquecer, de seus contratos, das bugigangas que vendem, e a adrenalina
comanda os corpos no busca da bola, evitar o adversários, encontrar o
caminho da meta.
Cérebro,
nervos, músculos… uma coisa chamada ser humano, que já foi um sonho,
que já foi sacrifício, que foi entrega e dor, que quer ser conquista,
emerge dali de onde foi soterrado pela mercadoria. Um ser composto, uma
equipe, um time, se funde com milhares de pessoas que se desviam da
bola, tencionam seu músculo antes do chute no exato instante que o
jogador vai chutar a bola e em uníssono gritam, abraçam estranhos,
choram…
Marx
em sua monumental obra se refere a uma ciência que se chamaria
“merceologia”, que teria a tarefa de listar todas as formas possíveis de
mercadoria. Não sei se existe essa que descrevemos, não sei que valor
de uso é esse que consiste o ser do futebol. Posso apenas falar como
viciado desta substância. Ela leva um menino de seis ou sete anos a
colecionar botões com times de futebol para imitar o jogo sobre uma
mesa. Em estágios mais sérios de contágio, o moço passa a organizar
campeonatos e a registrá-los em livros. Grita, sozinho ou com amigos, em
certames disputadíssimos. Chega até a guardar os times de botão –
inclusive as caixas de fósforos encapadas com fita isolante, que serviam
de goleiros –, e os registros de anos de campeonato para tentar
infectar seus filhos.
Quanto mais amo o futebol, mais odeio o capitalismo.
A
Copa deles já ocorreu. Foi contra nós e eles venceram. Alguns
desavisados ou mal intencionados festejam. Mas está em curso uma
vingança, uma rebelião. Talvez várias. Uma nas ruas, onde exercemos o
sagrado direito de não sermos tratados como imbecis (alguns, é verdade,
se orgulham em ser imbecis e não foram às ruas – é um direito deles).
Ela continua e espero que um dia possamos vencer. Mas existe outra
rebelião. Neste tempo em que muita coisa anda despertando, acredito que
podemos estar vendo o despertar de um velho e tão maltratado conhecido: o
futebol.
Você pode até tentar produzir futebol em série, futebol fordista, ou como disse em seu maravilhoso texto,
nosso querido Pasolini, o “futebol prosa”. Mas o “futebol poesia”,
resiste, surpreende, desperta. Monarquias futebolísticas (e infelizmente
algumas reais) eliminadas e zebras pastando alegremente.
Enquanto
alguns correm para abraçar o valor de troca, a forma fetichizada e
desumana, prefiro beijar a face do valor de uso que renasce. É a
rebelião do valor de uso… preparem-se, pode não ser só no futebol.