Terça, 22 de julho de 2014
A nova caça às bruxas, chancelada publicamente pelo
ministro da Justiça Eduardo Cardozo, pode ser considerada a primeira grande
parceria entre governos federal e estadual após a posse do vice-governador
Pezão no Executivo fluminense. Trata-se de mostrar quem é o mais competente
para manter a ordem, nesta disputa eleitoral. E aí o heterogêneo e reduzido
grupo de perseguidos parece entrar como bode expiatório.
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Por Marco Morel em 22/07/2014 na edição 808
Estão armando a paródia de um novo Plano Cohen, com a habitual colaboração da
mídia. Os objetivos são, até agora, parcialmente nítidos. Desde 12 de julho de
2014, véspera do jogo final da Copa do Mundo, a cidade do Rio de Janeiro está
vivendo as características inquietantes de uma localizada experiência de
ditadura civil militar (embora boa parte da população não tenha se dado conta).
Após a prisão de duas dúzias de jovens militantes, agora batizados com o
polivalente apelido de “ativistas”, e com a repressão arbitrária e provocadora
da Polícia Militar às manifestações de rua ocorridas na mesma data próximas ao
Maracanã, criou-se um subsequente clima de terror e inquietação sobre cidadãos
ativos em defesa dos direitos civis. Vieram protestos de entidades como OAB,
ABI, Anistia Internacional, Justiça Global, entre outras.
Vale citar o verbete histórico do CPDOC/FGV sobre o
referido Plano Cohen:
“Documento divulgado à nação em 30 de setembro de 1937,
contendo supostas ‘instruções da Internacional Comunista (Komintern) para a ação de seus agentes
no Brasil’, segundo comunicado oficial do governo. Na realidade, tratava-se de
um plano simulado de ação comunista escrito como ‘hipótese de trabalho’,
segundo seu verdadeiro autor, o capitão Olímpio Mourão Filho, chefe do serviço
secreto da Ação Integralista Brasileira (AIB). Com base no Plano Cohen, o
presidente Getúlio Vargas solicitou imediatamente ao Congresso autorização para
decretar o estado de guerra pelo prazo de 90 dias. A aprovação da medida abriu
caminho para o golpe do Estado Novo, desfechado em 10 de novembro de 1937. A
fraude do Plano Cohen só foi revelada após a extinção do Estado Novo, em 1945.”
Evidente que, 77 anos depois, as proporções e o contexto
são outros. E os personagens também. Desta vez, ao invés do tragicômico Olímpio
(não se perca pelo nome) Mourão – o mesmo que precipitaria o golpe de 1º de
abril de 1964, já na condição de general – as figuras que surgem são:
Alessandro Thiers, titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática,
órgão que tenta parecer um esboço do extinto Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), para ficarmos na comparação com a Era Vargas. É de lastimar
que agentes desta delegacia, encarregada de solucionar crimes de fraudes
financeiras ou de pedofilia, por exemplo, estejam ocupados numa pantomima
macarthista. Há também o promotor Luís Otávio Figueira Lopes, “especializado em
crimes digitais (sic)”, segundo o G1 (veraqui). E, ainda no rol, o juiz Flavio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal,
cujas sentenças inusitadas se contrapõem ao espírito constitucionalista do
sólido liberalismo político do desembargador Siro Darlan, da 7ª Câmara
Criminal, que inicialmente concedeu habeas corpus aos prisioneiros diante da
precariedade das provas apresentadas pela polícia.
Caça às bruxas e aos votos
De acordo com informação veiculada na mesma edição do G1
(Organizações Globo), que teve acesso aos autos do processo antes mesmo dos
advogados da defesa, estaria em curso um violento plano parcialmente executado
por pequenas organizações de esquerda na capital carioca, que incluiria
incêndio ao prédio da Câmara Municipal, morte de policiais, fabricações de
armamentos, ataques a locais públicos, etc., etc. Professores do ensino público
são acusados de fabricar armamentos, que seriam distribuídos por uma
jornalista. A advogada Heloisa Samy, que defende os militantes, chegou a ser
encarcerada sob a acusação de... participar de manifestações. Hoje, na
clandestinidade, divulgou uma declaração (ver aqui).
Foram, ainda, incluídos pelas investigações (?) policiais
neste suposto grupo paramilitar de esquerda coeso: os dois infelizes jovens
acusados de deflagrar o rojão que matou o ainda mais infeliz cinegrafista
Santiago Andrade, os fantasmagóricos black-blocs, jovens punks, os integrantes
de pequenos grupos políticos diversificados, índios de diversas etnias da
Aldeia Maracanã que reivindicam a criação de um centro de cultura indígena no
antigo prédio do Museu do Índio... E por aí vai. Caberá aos advogados da
defesa, ao jornalismo independente e investigativo e, sobretudo, ao
posicionamento firme da sociedade civil, jogar luz sobre tal panorama e se
defrontar com as acusações da promotoria que, até o momento, não se mostraram
devidamente fundamentadas.
O grupo de autoridades locais encarregado de armar este
cenário, visto numa perspectiva ampliada, são peças menores de jogo um pouco
mais complexo, porém grotesco. As eleições se avizinham. No Rio de Janeiro,
pesquisas eleitorais apontam, até aqui, a supremacia dos candidatos Marcelo
Crivella e Anthony Garotinho, que se identificam ao eleitorado de perfil mais
conservador. A opção de preferência do governo federal (PT) é pelo atual
governador e candidato a reeleição Luiz Fernando Pezão, do PMDB. Ao mesmo
tempo, o governo Dilma quer evitar que o candidato presidencial do PSDB, também
com discurso conservador de chamada à ordem, tenha um palanque e mais votos no
Rio.
A nova caça às bruxas, chancelada publicamente pelo
ministro da Justiça Eduardo Cardozo, pode ser considerada a primeira grande
parceria entre governos federal e estadual após a posse do vice-governador
Pezão no Executivo fluminense. Trata-se de mostrar quem é o mais competente
para manter a ordem, nesta disputa eleitoral. E aí o heterogêneo e reduzido
grupo de perseguidos parece entrar como bode expiatório.
As críticas à maneira como foi organizada a Copa do Mundo
2014 geraram um inegável mal-estar (e crise de consciência) coletivo que foi
além, muito além, das vozes de milhares de pessoas que saíram às ruas em
protesto, mesmo acossadas pela truculência das polícias administradas por todos
os grandes partidos atuais, sem exceção. Houve um desgaste na imagem do
megaevento. Vai daí que as mesmas autoridades (e seus patrocinadores empresariais)
responsáveis pela “Copa das Copas”, acusando o golpe, resolveram assumir
atitudes golpistas, para recuperar o terreno perdido, numa demonstração de
força também para o público internacional. É o velho truque usado com
frequência pelos governos dos EUA: criar ou superestimar um inimigo, externo ou
interno, como maneira de se fortalecer e chamar à unidade em torno de um alvo
comum.
A criminalização da militância
Está claro que as acusações oficiais não surgiram do nada.
Trata-se de criminalizar a militância política e social (aliás, iniciativa com
apoio de autoridades que já foram vítimas de ditadura, mas que se especializam
em desmobilizar e cooptar movimentos sociais), isolando um grupo de jovens e
satanizando-os – talvez porque estejam entre os que provavelmente participaram,
como tantos cidadãos, dos protestos contra a farra da FIFA e outras
reivindicações sociais específicas que tocam amplos setores da população.
Os que hoje detêm o monopólio da violência – e estão longe
de serem pacifistas – demonstram tendência autoritária, porém não à maneira
soviética, chavista ou castrista, segundo velhos e novos jargões, mas, sim,
contra movimentos de transformações dos quais, paradoxalmente, tais autoridades
originaram sua legitimidade e experiência políticas. Usam de violências para
impressionar com o espantalho da violência.
Exemplo assustador do poder de criminalização da grande
mídia (o pontapé inicial partiu da infalível Veja
e de O Globo que daqui a 50
anos, se ainda existir, talvez faça autocrítica) é o que acontece com a jovem
Elisa de Quadros Pinto Sanzi, apelidada de Sininho. Não se sabe o que surgiu
primeiro, a perseguição da polícia ou a da grande mídia – mas ambas se
alimentam reciprocamente. O que está provado, afinal, contra esta moça? Qual a
dimensão da liderança que exerce – se é que exerce alguma? O que ela fez de
concreto além da militância que muitos de nós praticamos ou simpatizamos,
alguns poucos ainda conservam, outros nunca se aventuraram? Cercada por um
mecanismo de criação de celebridades, de viés perverso, a cidadã Elisa Quadros
vem passando por um assédio midiático e policial cujas consequências são
imprevisíveis para sua vida.
Os tribunais e os embates políticos vão decidir a eventual
culpabilidade e o destino destes jovens que hoje são caçados, execrados
publicamente e aprisionados como criminosos. Suas vidas estão afetadas. Porém,
como dizia Marc Bloch, o historiador não é juiz. O que inicialmente parecia uma
reprimenda focalizada da polícia para conter manifestações no entorno do
estádio Maracanã, vai se desdobrando em situações estranhas.
Na condição de pesquisador, já consultei documentos da
História do Brasil como os Autos das Devassas das Conjurações Mineira (1789) e
Baiana (1798), da República de 1817, Confederação do Equador (1824), Revolta
dos Malês (1835), Balaiada (1838), Rebelião Praieira (1848) e outras, como a
Revolta da Chibata (1910). Aparecem arrolados personagens de seu tempo, muitas
vezes anônimos ou pouco conhecidos, mortos, condenados, absolvidos ou anistiados.
Listas produzidas pelas forças repressivas com acusações horripilantes e
penalidades equivalentes – e que podem ser lidas e compreendidas de várias
maneiras.
Análise documental e distanciamento crítico são
características do trabalho historiográfico, o que não significa indiferença ou
neutralidade. Sabemos que a Independência foi realizada com a quebra da
legalidade da condição colonial, do mesmo modo que a República em relação à
monarquia. Para acabar com a escravidão foi preciso muito mais do que uma assinatura
da princesa reinante, como demonstraram os quilombos e resistências escravas e
abolicionistas. O massacre das populações indígenas foi muitas vezes revidado
por estas, em defesa de suas terras, culturas e vidas.
Farsas e factoides
É possível que o atual arremedo de Plano Cohen não venha a
ser tão trágico quanto sua matriz: triste farsa, factoide eleitoreiro, já causa
danos aos cidadãos acusados cujas vidas profissionais estão paralisadas e
prejudicadas. Não podem voltar em suas casas. Não podem falar ao telefone.
Vivem (vivemos) um estado de exceção que não pode se tornar regra. As forças
políticas que estão se posicionado ativamente contra este ataque à democracia
que se cuidem: mesmo a esquerda bem institucionalizada pode levar a sobra.
O que o episódio traz de novidade na conjuntura não é a
repressão de caráter social contra os de baixo na hierarquia social, que é
traço estrutural na sociedade brasileira (ver o cotidiano das favelas), mas a
tentativa de se punir e refrear as liberdades de expressão e manifestação,
orquestrada por governos que se afirmam democráticos e, aparentemente, adeptos
das regras do liberalismo formal. Mas quando a ordem é ameaçada ou somente
incomodada...
Os presos políticos do governo Dilma fazem parte deste
momento, como cada um de nós. A biografia da presidente da República poderá
ficar marcada por este episódio. Relatos e imagens nas redes sociais sobre
perseguições em julho de 2014 se parecem estranhamente com narrativas de meio
século atrás. Hoje, em escala menor, menos intensa e mais reduzida do que nos
idos de 1964. Mas com o mesmo espírito. A serpente, ainda filhote, parece sair
do ovo.
Talvez seja mania de historiador citar datas, nomes,
eventos... Muitos dos que já frequentaram as páginas da imprensa taxados de
“terroristas” ou “bandidos” hoje aparecem como excelências, bem situados no establishment político e cultural. Sem
que, no entanto, tenham ocorrido grandes mudanças na sociedade.
Além de não ser juiz, o historiador não é adivinho nem
futurólogo. Mas, num exercício para desconstrução do discurso policial
midiático estabelecido, apresento para uma possível releitura os nomes que hoje
marcam as páginas impressas ou eletrônicas acusados de criminosos ou
“foragidos” (clandestinos, dizia-se em outros tempos). Chama atenção os
apelidos que aparecem em alguns casos, neste registro policiático e midialesco
(os neologismos e as confusões às vezes são inevitáveis), como “vulgo Y”, numa
subliminar associação com delinquentes na linguagem do jornalismo policial (transcrição
do G1 aqui, em 20/7/2014):
>> Ativistas presos: Elisa de Quadros Pinto Sanzi,
vulgo “Sininho”, Camila Aparecida Rodrigues Jourdan, Igor Pereira d’Icarahy,
Fabio Raposo Barbosa, Caio Silva Rangel.
>> Ativistas com mandado de
prisão e foragidos: Luiz Carlos Rendeiro Junior, vulgo “Game Over”, Gabriel da Silva
Marinho, Karlayne Moraes da Silva Pinheiro, vulgo “Moa”, Eloisa Samy Santiago,
Igor Mendes da Silva, Drean Moraes de Moura Corrêa, vulgo “DR”, Shirlene
Feitoza da Fonseca, Leonardo Fortini Baroni Pereira, Emerson Raphael Oliveira
da Fonseca, Rafael Rêgo Barros Caruso, Filipe Proença de Carvalho Moraes, vulgo
“Ratão”, Pedro Guilherme Mascarenhas Freire, Felipe Frieb de Carvalho, Pedro
Brandão Maia, vulgo “Pedro Punk”, Bruno de Sousa Vieira Machado, André de
Castro Sanchez Basseres, Joseane Maria Araújo de Freitas, Rebeca Martins de
Souza.
>> Ativistas liberados: Gerusa Lopes Diniz, Tiago
Teixeira Neves da Rocha, Eduarda Oliveira Castro de Souza, Ricardo Egoavil
Calderon, vulgo “Karyu”.
***
Marco Morel é
historiador, jornalista e escritor